sexta-feira, 23 de maio de 2014

O pivete e o adolescente


Ambos moram no alto, com vista para o mar. Mas cada um tem uma visão bem diferente da vida.
O pivete desce do morro, é revoltado, o adolescente desce de seu apartamento de cobertura, mimado. Ambos se cruzam em uma avenida movimentada, trocam olhares. O que desce do morro olha para os olhos do que desce do apartamento com ar de intimidação, olha para os pés dele e vê um tênis que acende luzinhas, que lhe acendem o olhar de cobiça. O adolescente olha para os olhos do pivete com medo, olha para os pés dele e, com desprezo, vê um chinelo com tiras trocadas.
Um deles tem o cabelo pixaco, feito esponja de aço, a pele escura como café; o outro tem cabelo liso e louro, feito fio de ouro, a pele branca como leite.
O pivete pé-de-chinelo manifesta seu sentimento de revolta, passa uma rasteira no adolescente do tênis de luzinhas, engalfinham-se, rolam pelo chão. Um para defender o que lhe pertence; o outro para tentar tirar na marra o que pensa que deveria ter por direito. O pivete consegue tirar um pé do tênis. Ambos ficam com as roupas sujas e rasgadas.
Um policial que faz a ronda os vê e os detém. Coloca o loirinho e joga o negrinho no camburão.
O negrinho tenta falar algo, o policial o manda calar. O loirinho vai quieto.
O delegado é negro, não chega a ouvir o policial. Olha para o negrinho e fala:
— Seu pivete delinquente, você nesse caminho só pode chegar na cadeia ou no cemitério.
— Mas...
— Não tem mais nem menos. Eu também sou negro, nasci no morro, estudei... Fui tão ou mais pobre que você, seu pivete!
O delegado pede desculpas para o loirinho, entrega-lhe o outro pé do tênis e o libera.
Horas horas depois, com a chegada de um advogado negro, pai do adolescente! Escuta e bom tom a verdadeira historia da vitima do roubo e do preconceito! O delegado sem cor, desculpa-se, alegando apenas um mal entendido!
J.Damasio Oração de um quase descrente, 2006

J>Damasio

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