paulo sandrini (30 de abril de 2013)
Ainda tenho essas unhas sem corte
Tentando arrancar profundidade à superfície
Ainda tenho esses olhos envenenados
Destilando compaixão e falta de apetite
E esses cabelos que encanecem
A cada minuto que se passa no breu da brutalidade
Ainda tenho ossos rígidos como estacas
Fincadas em corações pétreos
Ainda os tenho
Ainda tenho essa voz desgastada
A gritar palavras de paz e de ódio
Que buscam exclusivamente a paz e o rancor
E também esses dentes gastos
Prontos a romper os vasos sanguíneos
as carnes da indiferença
E a cuspir depois todos os nossos despojos
Tenho calcanhares de Aquiles
Sempre a me derrubar em batalhas já perdidas
Tenho moscas a rondar
Prevendo esse fim que é de todos
De todos isoladamente
Tenho músculos fracos que me sustentam
Numa terreno movediço
E pernas prontas a ficar aqui
Mas que correm ao menor sinal de estabilidade
Tenho roupas e equipamentos próprios
ao salto à beira do abismo
Mas que só serviram em outros tempos
Os tempos agora são de queda livre
Sem livre escolha
Tenho minha ossatura como grades
A me encarceram num tempo de tortura
Tenho você e não tenho
Tenho todos e ninguém
Como você não tem
Nos meus tímpanos ouço
As vozes da credulidade
Recoberta de dúvidas
Além de tudo
Tenho dúvidas recobertas
Por dádivas de um deus que nos dá e tira
Tenho dedos cravados nos limites
Do seu corpo
Que não discute a dor nem as carícias
Tenho um poder descomunal
E frágil
Que nem eu mesmo descobri a que serve
Muito menos ainda os homens do meu tempo
Encarcerados em suas certezas rígidas
Feito ossos de terneiro:
Uma rigidez típica dos homens confeccionados
numa era de gelatina incolor
que nunca se decide por cor alguma.
Belo arsenal perceptivo. Invoca a si mesmo em ritual da forma interior. Oferendas de elogios ruminados, oferendas de falsidades também ruminadas nessa alquimia de elementos sem significação, eternamente. Isso aí que não tem significância aprende a significar o ser em essência.
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