quinta-feira, 8 de setembro de 2011

HOJE, DOMINGO


Vasta e resistente, a mesa é a espinha dorsal da família. Sete lugares vazios que posso usar da maneira que quiser. Cada dia em uma das cadeiras. Hoje, domingo, sento Afonso. Daqui posso enxergar as pequenas rachaduras (algo como finíssimas varizes) na nesga de piso descoberta entre o tapete e a cristaleira.

Sobre a mesa apenas o diário, um lápis com a ponta grossa, uma xícara vazia e migalhas de pão. Algumas tingidas pelo preto do café que, caído na toalha branca (última peça do enxoval), formou a imagem de um feto. Ao perceber isso, apalpo meu ventre despovoado, um aborto na minha idade, já pensou? Com o lápis começo a cutucar o feto. Tudo que consigo é furar a toalha sem tirar gota de sangue. Sentada Afonso, fico ao lado do lugar de Maria Augusta. Ingrata, não veio nem para o velório do pai, alegando que Rondônia é muito longe. Logo a filha de quem Afonso mais gostava.

Daqui também posso enxergar a foto sobre a cristaleira. Emoldurada de pó, a família dialoga longos silêncios.

Hoje, domingo. Meu almoço, café e torrada. A casa vai continuar em desordem até terça, dia da faxineira.

Uma das paredes, toda de vidro, me prende e me comunica com a paisagem da ruazinha de casas de quintais apertados. Deste segundo piso, posso acompanhar o movimento externo. A vizinha, com seus braços longos, lava as calçadas. Seus filhos brincam no pátio com um cão doméstico. Mas chegará o dia em que aprenderão a brincar com os pássaros.

Capricho na letrinha redonda, com a qual preenchi inumeráveis cadernos de caligrafia durante a infância. Para que tanto cuidado se ninguém vai ler estes diários? Mera terapia. Assentar pacientemente no papel o que te inquieta, me aconselhou o médico.

O diabo é que nada acontece. Tudo tão parado. Nem mesmo venta. Morto, o galho do chorão (derradeira companhia) não roça mais a vidraça.

Tudo que possuo, meu Deus: sete lugares vazios e a necessidade de preencher as horas, os meses, os anos.

Caqui verde, madurado à força, quem me provou ficou com o travo amarrento na língua. Por isso lançada num canto qualquer?

Nem fome tenho, vou agora me levantar, colocar cuidadosamente a cadeira sob a mesa e alisar os cabelos despenteados. E depois voltar para o quarto lembrando que amanhã, segunda, sentarei Maria Augusta.








MIGUEL SANCHES NETO


Miguel Sanches Neto nasceu em Bela Vista do Paraíso, interior do Paraná, em 1965. Doutor em teoria literária pela Unicamp (1998), é professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, colunista da Gazeta do Povo (Curitiba) e colaborador da revista Carta Capital. Autor, entre outros, de: Inscrições a giz (FCC, 1991 – Prêmio Nacional Luís Delfino), Venho de um país obscuro (Travessa dos Editores, 2000), Chove sobre minha infância (Record, 2000 – traduzido para o espanhol pela Poliedro em 2004) e Hóspede secreto (Record, 2003 – Prêmio Nacional Cruz e Sousa de 2002).

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