terça-feira, 31 de outubro de 2017

A Pátria

- Olavo Bilac



Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!

Criança! não verás nenhum país como este!

Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!

A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,

É um seio de mãe a transbordar carinhos.

Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,

Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!

Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!

Vê que grande extensão de matas, onde impera

Fecunda e luminosa, a eterna primavera!



Boa terra! jamais negou a quem trabalha

O pão que mata a fome, o teto que agasalha...



Quem com o seu suor a fecunda e umedece,

Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!



Criança! não verás país nenhum como este:

Imita na grandeza a terra em que nasceste!




somos quase um todo
apesar da vivência
com medo de chorar
a sensibilidade amiga
eu busco você

essa loucura poética
faz parte da gente
como nos procuramos
nesse caminho comum
eu busco você

eu um boêmio
poeta sem letras
da vida vaga
sem casa para morar
sou uma esperança
querendo se encontrar
na vasta caminhada
de sonhos a viver
eu busco você

em passos livres
dos pensamentos vividos
no animal no racional
o certo o incerto
essa equação sem fim
talvez exista uma razão
na simples maneira de conviver
eu encontro você


POETA MILTON GAMA

Relógios demais


Há relógios demais nas esquinas do mundo.
Também nas vitrinas
em todos os pulsos
em cada corpo
em cada cômodo da casa
nas repartições aeroportos e hospitais.
Alguns têm rubis
outros são de ouro e diamante
e há os que não obstante a ansiedade do instante
têm os horários vários
em todos os quadrantes.

Tantos relógios!
como se não bastassem
a clepsidra em nossas veias
o relógio do Sol em nossas testas
e os carrilhões da consciência
lembrando que atrasados estamos
com o bilhete equivocado
no vôo
para a inabarcábel eternidade.

Há relógios demais atando
o peito e o pulso
da angústia humana
ruas inteiras vitrinas ostensivas
na Quinta Avenida, Corrientes, na Gran Via de Madrid,
Regent Street em Londres
e nos boulevares de Paris
sem falar nos formidáveis shoppings
de Tóquio e de Pequim.

De que valem seus alarmes
e despertadores se
não mais despertamos se
não nos alarmamos
com o horror
que neste instante explode
na dupla face do mundo
e chegaremos sempre tarde
para salvar o outro da bala
do vírus
e da fome de amor?

De Affonso Romano de Sant'Anna


A ampulheta de cinzas



Teu estômago, teu pâncreas, teu baço,
Teus ossos, teu esôfago, teus rins,
Teus pulmões, teus intestinos, teu cérebro,
...Teu coração, teu diafragma, tua genitália,

Teus cabelos que acariciavam mãos,
Tua pele e os abalos sísmicos de teu ser,
Teus olhos que assistiam pessoas,
Tuas mãos que mudaram parcamente o mundo,
Tuas palavras, que me ensinaram todo o peso da bondade.

Tudo isso, agora, é tua ausência que escorre em meu presente.

Tuas cinzas, que escorrem de meus dedos, agora,
Peregrinam por entre tuas queridas plantas, como sonhaste.
Serão o adubo de tua sagrada e verdadeira terra santa.

Mas eu, egoísta, guardarei um pouco de tuas cinzas,
Guardarei um punhado de ti, transubstanciado às avessas.

Mandarei construir uma ampulheta.

Colocarei tua essência sólida lá dentro, no lugar da areia.
E em teu movimento calmo, cinza, sério,
Compreenderei, finalmente, o mistério
Que consagra cada momento da finita passagem das horas.

Serás meu relógio morto que mede a vida,
A metáfora mais bela da sensata e necessária fluidez,
O mais grandioso símbolo de toda humana e transitória pequenez.

André de Castro


Néctar a dois



Nem brilho,
Nem estribilho,
Nem quem,

Efervilha qual ilha
Qual quem, ninguém
Levita seres do além
Tao

Se mal, se bem
Se azul, escarlate ou refém
Sem quem, em mim, ajuíza
Ou não,

Lembrarão, lembrei
Porque não sou lei
Tampouco remo palavras
Em busca da margem

Não submerjo ao coração
Não guio pela mão
Não esfrio o quentão, não

Em calafrios da extensão
Subsumi amor ao eterno galardão
Pressuposto
Na adoração, no verbo,
Na arte, destarte pão
Suave
Grave
Ou canhestra mestra,
A atividade clichê
Das teclas em expressar
Ego e putrefação.

Sim, já naufraguei no
Pior chavão

Sim já me deliciei na sintaxe
Desenlace de uma saga
Prosa formosa
Em brasa edição.

Quando o universo que trago
No bolso do paletó para te
Dar
Sentido puro
(Rede Globo e risos fáceis)
Ao sol dos meus olhos
Castanhos
Enxergaria teus rentes sonhos
Da virtual conexão.

Meus trabalhos se enlutam
Pelo amor
Também

Revelo expressões indeléveis
Da tua aurora aos inconscientes
Coletivos, múltiplos totens
Sintaxe da auto comiseração

Minha poesia, meu mel
Doce, tão, poesia

Valeria o espaço, ó musa da sedução,
Entoar os versos reversos da virtual
Comunicação?

Aquém de todo olhar, pois
Teu julgar, ufanar, ou remediar
Não
Remediarão meu pragmatismo
Engolido nas horas de solidão
Em doses de isopor
Vazio

E prece pelo perdão.

Sou ética dos trópicos,
Rapsodo no cárcere do coração
Em luas virtuais navego sóis
Orbito a significância do totem
Dos olhos dos deuses
Inventados

Ao quadrado o verbo
Somado e subtraído o ângulo
De minha dor,
Estipulam pernas que caminham
E olhos que choram
E coração
Que aguarda,
A farda da precisão, enlutar
O adeus que me remeteu
Não-ateu
Ao estrelato da mais longínqua
Galáxia
Buscando o retorno do brilho
Estribilho

Da minha canção.
Voa voa voa
Povoa a Terra com os olhos
Indagando ao centro da atenção
Se nas paragens ermas das horas
Sobrevivo, matemática da real ilusão
Em nuances do bravo revolucionário
Conjugo verbo ordinário a elucubrar
Sentinelas semânticas da cordial
Expressão literária

Pois águia hibernada
Pois cativa palpitação

"Sorve o amargo da minha ausência
A cor do arco-íris negro de nossa angústia
Dual"

Ligo a TV e vejo os patetas saltimbancos
O voo do beija-flor não me causa espanto
O mais doce amor não me enluta o peito
No sepulcro das horas
Em que mãos e mãos percorreram
A aurora
Dos cabelos de outrora
Conjugados pela fiel
Correspondência
E norteados
Pela real metafísica querela
Em remediar o ego
Palavras, palavras, prosas
Epopéias

Rapsódia minha no encalço
De um olhar

Epopéia de nós
Ou

Último ofegante poema
Limitado ao espaço dos passos

Meus erros crassos
Sempre em tua consideração.

Pois me banho de cores
E me perfumo com estrelas
E canto a música de Deus

E dos anjos, nós,
O frenesi dos jornais
Em fogo.

E nós néctar e ambrosia.


ACM

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

"A literatura não nasceu no dia em que um menino chegou correndo e gritando 'lobo, lobo', vindo de um vale neandertal com um grande lobo cinzento em seus calcanhares: a literatura nasceu no dia em que um menino chegou gritando 'lobo, lobo', e não havia nenhum lobo atrás dele".

Vladimir Nabokov

PEQUENO CONFESSIONÁRIO ADMIRATÓRIO


Eu escrevo sobre mulheres, pois acho lindo imaginá-las majestosas e donas de seus corpos, caminhando em direção a um pôr do sol, sumindo no horizonte dos sonhos.
Acho gentil a poética de seus ventres quando as trompas de transformam em galhos cheios de flores. Existe tanta beleza na anatomia das ancas arredondadas, uma arquitetura sutil dos desníveis.
Admiro a deformação de seus rostos quando sentem; me encanta a euforia de suas vozes e o silêncio de suas dores. São seres que não passam incólumes pela cerca viva e espinhosa da grade de suas próprias costelas.
São jeitos de quem aprendeu sobre os contornos da existência, que enfrentou os desvios necessários das lâminas, que sobreviveu aos abismos diários das pequenas mortes.
Eu escrevo sobre mulheres para descobrir os segredos do mundo.

Samantha Abreu

Bilhete



Se tu me amas,
ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.
Deixa em paz a mim!
Se me queres, enfim,
.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,
.....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda



  (Mário Quintana)

SAMBA DA MORTE



Minha fuga é o meu prazer
Um covarde prazer onde me encontro
Um doce querer e encanto
Encanto que limpa o meu pranto

E se já não sinto culpa
Ah! Me desculpa
Não foi por querer desejar

É que hoje a noite é tango
E danço sem o pranto
Que sempre esteve no meu olhar

Hoje meu olhar é estrela
Que brilha toda faceira
Fazendo a tristeza cantar

Hoje não sinto saudade
O tempo que foi...tempestade
Agora é só festejar

Pois o carnaval vem chegando
E terei que abandonar o meu tango
E ir pra avenida sambar

Mas se não der tempo pro samba
E a morte vier me espreitar
Lembre que o tempo é guerreiro
Não pára o ano inteiro
Nem pro meu bloco passar

Se a vida me foi um engano
Valeu mesmo assim meu amor
O sorriso que escondeu meu pranto
Só fez diminuir minha dor

Mas peço ao dono do tempo
Um pouquinho de argumento
Pra poder festejar

Não vou deixar essa vida
Sem uma emoção passageira
Sem ter sido a primeira estrela
A ver o sol raiar

E nessa vida de dança
Com essa estrela que canta
O tempo estancou ligeiro
Para que eu pudesse passar

E deixei pro vento do tempo
Toda culpa, toda fuga
Toda covardia e todo pranto

Agora sou destaque do encanto
Agora vou festejar
Com a liberdade no peito
Cerro os meus olhos
Vendo o meu samba ecoar!

Larissa Fadel


ILÍCITO



Abra a porta - Sou eu,
A voz acalma o seu olhar
no olho mágico;
Trágico desejo.
Posso entrar na sua casa,
Mas não posso morar lá.
Destinos desfeitos,
Clamores clandestinos.
Ao sofá afã de sofismas...
Tão a fim de fins e meios...
Ficamos Nós, Sós, Após.


CRISTIANA MOURA

DAS UTOPIAS


Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

Mário Quintana

Frases de Jorge Amado


"Para fazer uma coisa que não me diverte tenho que fazer um esforço muito grande."

Obs.: Em 1991, sobre como a militância no PCB lhe tomava o tempo da literatura. [ Jorge Amado]
"É sério, mas é surrealista."
Obs.: Em 1995, comentando a afirmação atribuída ao ex-presidente francês Charles de Gaulle de que o Brasil não é um país sério. [ Jorge Amado ]

"Um instrumento anti-social e extremamente elitista."
Obs.: Em 1986, sobre a obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista. [ Jorge Amado ]

"Continuo batendo com dois dedos e errando muito. Devo dizer que sou um dos homens mais incapazes do mundo. A lista de minhas incapacidades é enorme."

Obs.: Em 1988, quando questionado porque não trocava sua velha máquina de escrever mecânica por uma eletrônica. [ Jorge Amado ]

"Na realidade, o tema da infelicidade tem engendrado montanhas de livros horríveis, umas masturbações insuportáveis."

Obs.: Em 1988, quando perguntado se o motor da criação literária é a infelicidade. [ Jorge Amado ]

"Acho que você não deve fazer nada que não o divirta, lhe dê prazer. Também não deve exercer um ofício, uma profissão para a qual é incompetente."

Obs.: Em 1988, sobre o fato de divertir-se escrevendo seus livros. [ Jorge Amado ]
"Eu vou te responder. A minha resposta é a seguinte: eu acho prêmio em geral uma bestice."

Obs.: Em 1988, sobre o Nobel não ter sido concedido a escritores brasileiros. [ Jorge Amado ]

"O socialismo não depende de você, nem de mim, nem de ninguém. O socialismo é a marcha inexorável da humanidade que marcha pra frente." [ Jorge Amado ]
"Sem democracia não há socialismo." [ Jorge Amado]
"Eu sou muito otimista, muito. O Brasil é um país com uma força enorme. Nós somos um continente, meu amor. Nós não somos um paisinho, nós somos um continente, com um povo extraordinário." [ Jorge Amado ]
"Eu acho que o escritor verdadeiro é aquele que escreve sobre o que ele viveu." [ Jorge Amado ]
"Eu me sinto mal. Porque eu acho que deviam ter 50 escritores mais lidos no Brasil."

Obs.: Em 1988, sobre como se sentia sendo o escritor mais lido do país. [ Jorge Amado ]

"A novela leva a milhões de pessoas a imagem de personagens de romance, que ficariam restritas a públicos bem menores." [ Jorge Amado ]
"Vejo somente uma solução para a dívida externa no Brasil. Não pagar. Não vejo outra." [ Jorge Amado ]
"Infelizmente eu não posso escrever um livro no Brasil. Para trabalhar eu preciso fugir."

Obs.: Em 1988, sobre o assédio que sofria na Bahia e o impedia de escrever. [ Jorge Amado ]

"Histórias engraçadas e histórias trágicas. Porém, como tenho uma visão alegre da vida, guardo, sobretudo, a memória das coisas divertidas que me fizeram rir."

Obs.: Em 1991, sobre o que iria contar em seu romance inacabado "Boris, O Vermelho". [ Jorge Amado ]

"O capitalismo conserva-se o mesmo sistema frágil e injusto, produtor de guerras, de miséria, baseado no lucro, na ânsia do dinheiro. São razões muito miseráveis."

Obs.: Em 1991, sobre sua confiança no socialismo após a queda do muro de Berlim. [ Jorge Amado ]

"Mais difícil do que publicar um livro é escrever um bom livro."

Obs.: Sobre a dificuldade de publicação para um jovem autor. [ Jorge Amado ]

"Aprendi, nos anos em que estive exilado na Europa, de 48 a 52, uma coisa que o brasileiro sabe pouco, que é responder cartas. Me custa muito tempo, mas ainda hoje faço um esforço para responder."

Obs.: Em 1992, sobre a correspondência com seus leitores. [ Jorge Amado ]

"Na Europa, chamam-me de mestre, mas é caminhando pelas ruas de Salvador que eu me sinto à vontade." [ Jorge Amado ]

"O que está acontecendo no Brasil é como uma coceira, muita gente pensa que é lepra, mas é só uma coceira, vai acabar."

Obs.: Em 1992, ao responder se o Brasil tem condições de mudar para melhor. [ Jorge Amado ]

"A coisa pior que pode acontecer a um escritor é ficar cavando prêmios."

Obs.: Em 1992, ao responder se aspirava ao Prêmio Nobel de Literatura. [ Jorge Amado ]

"Só na Bahia poderia se ver tanta gente festejando um homem que não é político, fazendeiro, rico, cardeal ou general."

Obs.: Em 1992, sobre o show em homenagem aos seus 80 anos. [ Jorge Amado ]

"Um escritor aos 80 anos está começando a aprender a escrever."

Obs.: Ao completar 80 anos, sobre o ofício de escrever. [ Jorge Amado ]

"Sou filho da cultura popular da Bahia e da cultura francesa. Esta é uma das minhas misturas."

Obs.: Em 1992, sobre a exposição em sua homenagem no Centro Georges Pompidou, em Paris. [ Jorge Amado ]

"A gerente, que nos conheceu bolcheviques convictos e marginalizados, não entende nada quando vê o Mario presidente e outros, ministros e escritores famosos."

Obs.: Em 1993, sobre a convivência com Mario Soares na época do exílio, quando viviam em um hotel em Paris. [ Jorge Amado]

Pobres dos escritores que não se derem conta disso: escrever é transmitir vida, emoção, o que conheço e sei, minha experiência e forma de ver a vida."

Obs.: Em 1995, comentando não escrever para ganhar prêmios quando da sua escolha para o Prêmio Camões. [ Jorge Amado ]

"Mas creio que na França há mais respeito pela privacidade das pessoas. No Brasil existe carinho, muito carinho, nenhum respeito."
Obs.: Em 1995, sobre sua mudança para Paris em busca de tranqüilidade para escrever um novo romance. [ Jorge Amado ]

"Acho que o socialismo é o futuro. A queda do muro significou o fim de ditaduras medonhas, que existiam em nome do comunismo, mas não eram comunismo na realidade. Acredito no avanço do homem em direção a um futuro melhor."

Obs.: Em 1995, quando perguntado se continuava comunista. [ Jorge Amado ]

"Nossas elites são, de fato, extremamente preconceituosas, não merecem grande atenção."

Obs.: Sobre o preconceito das elites intelectuais brasileiras com relação à sua obra. [ Jorge Amado ]

"A vida me deu mais do que pedi e mereci. Não me falta nada. Tenho Zélia e isso me basta."

Obs.: Em 1996, ao completar 84 anos. [ Jorge Amado ]

"Aceitei o convite com muita satisfação. O Cacá é um diretor muito talentoso. A Sônia é minha filha três vezes."
Obs.: Sobre sua participação no filme "Tieta", estrelado por Sônia Braga. [ Jorge Amado ]

"Eu não corrigia nada, escrevia apressadamente, essas coisas de juventude. Mas os revisores colaboravam bravamente."

Obs.: Em 1996, sobre os erros que foram corrigidos por sua filha, Paloma Amado, em sua obra. [ Jorge Amado ]

"Não escrevi meu primeiro livro pensando em ficar famoso. Escrevi pela necessidade de expressar o que sentia..." [ Jorge Amado ]
"Que prêmio a mais pode querer um escritor cuja obra é lida em mais de 30 idiomas."

Obs.: Em 1997, sobre o fato de nunca ter ganho o Prêmio Nobel. [ Jorge Amado ]

"Eu continuo firmemente pensando em modificar o mundo e acho que a literatura tem uma grande importância." [ Jorge Amado ]
"Isto faz com que eu seja hoje um homem muito tranqüilo diante da vida e diante das coisas, otimista como sempre fui."

Obs.: Em 1988, sobre sua experiência de vida e seu convívio com grandes artistas e escritores. [ Jorge Amado ]

"Pode haver muita deficiência no livro de um jovem, mas haverá também nele uma coisa fundamental - a força da juventude." [ Jorge Amado ]

"A juventude é um bem imenso que você não prolonga. A juventude se acaba, nem que você queira iludir-se com esse negócio de jovem de espírito. Jovem é jovem, ponto final."

Obs.: Em 1988, sobre escrever menos conforme o avanço da idade. [ Jorge Amado ]

"Nenhum crítico ensina ninguém a fazer romance."

Obs.: Em 1988, quando perguntado se aprendeu alguma coisa com a crítica. [ Jorge Amado ]

"Eu tive mais da vida do que mereci, do que pedi. Sou um homem muito feliz com a vida."

Obs.: Em 1988, sobre se não merecia o Prêmio Nobel de Literatura. [ Jorge Amado ]

"Hoje, ser de outra religião que não a católica é um negócio ótimo, você até pode ser proprietário de rede de televisão..."

Obs.: Em 1991, sobre lei de sua autoria, garantindo liberdade de culto quando deputado constituinte em 1946. [ Jorge Amado ]

"Quando você morre em um país sem memória, imediatamente eles te esquecem. Quando eu morrer, vou passar uns 20 anos esquecido."

Obs.: Em 1991, sobre o ostracismo da obra de Érico Veríssimo e a produção literária brasileira atual. [ Jorge Amado ]

"Não acredito em literatura latino-americana, acho este termo muito colonialista. Mas cada país do continente tem sua literatura, muito boa, por sinal."

Obs.: Quando de sua participação no júri do prêmio União Latina, em 1991. [ Jorge Amado ]

"É necessário que os países do Primeiro Mundo entendam que é preciso preservar também cidades como Salvador, não apenas Roma ou Paris."

Obs.: Em 1991, sobre a má conservação do Pelourinho em Salvador. [ Jorge Amado ]

"O humor não é coisa da juventude. O jovem tem força criadora, elã, paixão, entusiasmo e ímpeto, uma coisa que depois você tem menos. Depois você tem a experiência, e o humor é da experiência."

Obs.: Em 1992, sobre a presença do humor na sua obra tardia. [ Jorge Amado ]

"Mas enquanto houver miséria, enquanto houver Terceiro Mundo, pode ter certeza, meu amigo, que não haverá paz no mundo." [ Jorge Amado ]

"Acho que o mais terrível foi a degradação do caráter. Em relação a duas coisas. Você teve a tortura. Em segundo lugar, a ditadura institucionalizou a corrupção. Hoje, esse mal faz parte dos costumes."

Obs.: Em 1992, sobre as conseqüências da ditadura no Brasil. [ Jorge Amado ]

"Para mim, o sexo sempre foi uma festa. Aos 82 anos, a festa é muito diferente do que era aos 20, aos 50, mesmo aos 60: é uma festa que é feita da experiência, do refinamento."


Obs.: Em 1994, aos 82 anos. [ Jorge Amado ]

A VELA


A vela tremula sobre o castiçal,
A cera que dela escorre esculturas estranhas vai... formando,
Como gotas, como lágrimas descendo...
Ao final do pavio a luz chora,
Trêmula e apegada aos últimos instantes antes de ser apagada,
Não porque lhe falta o ar, o fogo, a chama...
Sim porque lhe converte o tempo a cera em lágrima derretida.
A luz vai embora.
E a escuridão que dela fica, nem um milhão de luzes iluminam,
Porque até uma vela em sua curta vida se faz única.
E no castiçal onde foi erguida,
Escultura e enigma;
Ascendem mil outras chamas,
Desta feita num ciclo ininterrupto,
De vela a vela... Chama a chama...
Onde...
Escultura, cera e lágrima se depositam,
Umas sobre as outras... Ascendendo e apagando,
Vindo e indo, infindamente...
Ou até que o castiçal por um descuido ou intempéries do intercurso
Extinga-se.
E nele nem luz, nem treva,
Nem forma nenhuma mais se converta...
Como supõe no mundo o fim de tudo.
Ou o início silencioso e pacífico
Ao que regressam as almas quando despertam...
Além das luzes, num salto quântico...
Livres.


CRISTIANA MOURA

Esfarrapado e imundo



(...)

dei de cara com ele, enfim,

mendigo extraviado

que implora pra ser notado.

Eis o amor,

despejado

humilhado

não vive em estrelas

nem mar profundo,

nem no limite do mundo,

está sempre no meio do caminho

pedra

poema

estirado

cão sublime à espera

de um dono franciscano

que o acolha

com todas as chagas

e enganos.


Bárbara Lia
fragmento da poesia - sonhos em preto e branco

Findo o inverno


Chegou o fim do inverno
Aquelas noites serão esquecidas
Onde braços e bocas se entendiam
Findo o tempo, quando almas e corpos
Flutuavam num único pensamento.

Chegou o fim do inverno
Resta-nos a primavera
Quando florescerão as flores
E os amores, que entre cores
Desenharão sonhos... Quimera.

A saudade repousa junto ao mar
Junto ao fogo da nossa incandescente lareira
Onde nossos corpos se uniram
Se derretendo, formando gotas
De vida de uma imponente cachoeira.

Por que fomos tão rápido,
Do paraíso ao inferno?
Ou foi pequeno nosso empenho
De inverter as estações
De mudar a posição dos astros
E perpetuar nossa paixão

Em eterno inverno?


Evan Do Carmo 

PRÁXIS


Escrevo
para pacificar fantasmas
inquilinos da alma.

Para extrair
cores & ritmos

das emoções imprecisas.


Ricardo Mainieri           

CORPO


se minha boca

chama teu nome

sobram-me

a noite insone

e a ausência de teu corpo

que já não toco

já não beijo

e fica este desejo

de te amar

em vão


  (Cristina Desouza)


Senhores da guerra


Parem,com a industria da guerra,
Desistam do oficio de matar,
Dêem um pouco de paz a terra,
E por favor,vão trabalhar
X
Cavar batatas,
Sujeitem-se,a humildade,
Dexem-se la de bravatas,
Haja um pouco,de dignidade
X
Já chega de escravatura,
E de pobreza,
E de ditadura,
De tanta tristeza
X
Gentalha medonha,
Deixem o poder,
Tenham vergonha,
Como deve ser
X
Falsos moralistas,
Tão preocupados,
Seus cabroes fascistas,
Tão bem mascarados
X
Donos do dinheiro,
E tão pobres são,
Roubam no mundo inteiro,
Nação por nação
X
E eu volto a dizer,
Ate me cansar,
E ate morrer,
Vos hei-de gritar
X
Parem,com a industria da guerra,
Desistam do oficio de matar,
Dêem um pouco,de paz a terra,
E por favor,vão trabalhar.




 Antonio Pinto L             

João do Afeto Triste



(conto do livro Alucinário - José Marins)

Apelido infeliz dei ao João. O Afeto Triste mandou chamar,
disse o mensageiro. Fui. Está mal o João, e pede para contar a
história da morena da boca perfeita.
Ele chegava e pedia: escuta essa. Sempre histórias boas.
Guarda ela pra mim. Escreva num caderno, João. Aí perco de vez.
Você sabe os floreios de contador, dizia. Fiquei sendo seu fiel
depositário. Quando aparecia no boteco, eu recontava algumas.
Seu gozo era ouvir quieto, as histórias dele, imagine. Corrigia
algum detalhezinho. O pessoal pedia mais. Afetos tristes, dramas
de nossa infelicidade geral.
Agora, morrendo, João pede para contar a história da morena

da boca perfeita, e eu não me lembro... Juro!

SOBRE A INFANCIA DE JORGE AMADO,POR ELE MESMO:


INFÂNCIA

Pouco me recordo de meu pai. Ficamos muito crianças eu e minha irmã, eu com cinco anos, quando ele morreu. Lembro-me apenas que minha mãe soluçava, os cabelos caídos sobre o rosto pálido e que meu tio, vestido de preto, abraçava os presentes com uma cara hipócrita de tristeza. Chovia muito. E os homens que seguravam o caixão andavam depressa, sem atender aos soluços de mamãe, que não queria deixar que levassem o seu marido.

Papai, quando vinha da fábrica, me fazia sentar sobre os seus joelhos e me ensinava o ABC com a sua bela voz. Era delicado e incapaz, como diziam, de fazer mal a uma formiga. Brincava com mamãe como se ainda fossem namorados. Mamãe, muito alta e muito pálida, as mãos muito finas e muito longas, era de uma beleza esquisita, quase uma figura de romance. Nervosa, às vezes chorava sem motivo. Meu pai tomava-a então nos seus braços fortes e cantava trechos musicais que faziam com que ela sorrisse. Nunca ralhavam conosco.

Depois que ele morreu, mamãe passou um ano meio alucinada, jogada para um canto, sem ligar aos filhos, sem ligar às roupas, fumando e chorando. Tinha ataques por vezes horríveis. E enchia de gritos dolorosos as noites calmas do meu Sergipe.

Quando após esse ano ela voltou ao estado normal e quis acertar os negócios de papai, meu tio provou, com uma papelada imensa, que a fábrica era dele só, pois meu pai — afirmava com o rosto vermelho e as mãos levantadas num gesto de escândalo — meu pai, meio louco e meio artista, deixara unicamente dívidas que meu tio pagaria para não se desmoralizar o nome da família.

Mamãe silenciou, coitada, e nos apertou nos seus braços, pois nós tremíamos toda a vez que meu tio aparecia com a sua cara vermelha, a sua barriga cultivada, a sua roupa de brim e aqueles olhos pequenos e perversos.

Vivia passando as mãos pela barriga. O meu tio... Mais velho que meu pai dez anos, cedo se tocara para o Rio de Janeiro, onde levou muito tempo sem dar notícias e sem que se soubesse o que fazia. Quando os negócios de meu pai estavam prósperos, ele escreveu a queixar-se da vida, dizendo que queria voltar. E veio, logo após a carta. Papai deu-lhe sociedade na fábrica.

Veio com a esposa, tia Santa, santa de verdade, pobre mártir daquele homem estúpido.

Papai vivia inteiramente para nós e para o seu velho piano. Na fábrica conversava com os operários, ouvia as suas queixas, e sanava os seus males quanto possível. A verdade é que iam vivendo em boa harmonia ele e os operários, a fábrica em relativa prosperidade. Nunca chegamos a ser muito ricos, pois meu pai, homem avesso a negócios, deixava escapar os melhores que lhe apareciam. Fora educado na Europa e tivera hábitos de nômade. Esquadrinhara parte do mundo e amava os objetos velhos e artísticos, as coisas frágeis e as pessoas débeis, tudo que dava idéia ou de convalescença ou de fim próximo. Daí talvez a sua paixão por mamãe. Com a sua magreza pálida de macerada, ela parecia uma eterna convalescente. Papai beijava as suas mãos finas devagar, muito de leve, com medo talvez que aquelas mãos se partissem. E ficavam horas perdidas em longo silêncio de namorados que se compreendem e se bastam. Não me recordo de tê-los ouvido fazer projetos.

Nós, eu e minha irmã, éramos como que bonecos para papai e mamãe.

Quando meu tio chegou mudou tudo. Ele não fora à Europa e se parecia muito com vovó, que fizera dos dezoito anos de vida em comum com meu avô uma dessas tantas tragédias anônimas e horríveis que nascem do casamento da estupidez com a sensibilidade. Dava nos filhos dos operários, o que não admirava, porque, como murmuravam pela cidade, ele espancava a esposa.

Pobre tia Santa! Tão boa, amava tanto as crianças e rezava tanto que tinha calos nos dedos, provocados pelas contas do rosário. Morreu, e a doença foi o marido. Meu tio deflorara uma operária e fora viver com ela publicamente. Santa não resistiu ao desgosto e morreu com o rosário entre as mãos, pedindo a papai que não abandonasse o miserável.

A fábrica prosperou muito. Nunca consegui compreender por que o salário dos operários diminuiu. Papai, fraco por natureza, não tinha coragem de afastar titio da fábrica e um dia, quando tocava ao piano um dos seu trechos prediletos, teve uma síncope e morreu.

[...]

Quando meu pai morreu e após meu tio declarar a nossa miséria, fomos morar numa casinhola no começo de uma ladeira. Eu fiquei muito mais perto do proletariado da "Cu com Bunda" do que da aristocracia da decadente São Cristóvão.

Acostumei-me a jogar futebol com os filhos dos operários. A bola, pobre bola rudimentar, fazia-se de bexiga de boi cheia de ar. Tornei-me camarada de um garoto Sinval, rebento único de uma operária, cujo marido morrera em São Paulo, metido numas encrencas com a polícia, não sei bem por quê. Sei que os operários falava dele como de um mártir. E Sinval desancava os patrões o que mais que podia. Franzino, os ossos quase a aparecer, possuía no entanto uma voz firme e um olhar agressivo. Chefiava a gente nos furtos às mangas e cajus dos sítios vizinhos. E toda vez que meu tio passava, cuspia de lado. Dizia que apenas completasse dezesseis anos embarcaria para São Paulo, para lutar como seu pai. Só muito depois é que eu vim compreender o que significava tudo isso.

Freqüentamos, eu e Elza, a escola. Mamãe fazia rendas e seus pais ajudavam o nosso sustento. Quando fiz quinze anos fui trabalhar na fábrica. Eu era então um rapazola forte, troncudo. O menino anêmico que eu fora se transformara em um adolescente de músculos rijos treinados em brigas de moleques.

Aparentava muito mais idade do que tinha realmente. Vivera sempre entre molecotes pobres da cidade, pobre que eu era como eles. Agora ia ser igual a eles completamente, operário da fábrica. Sinval não me diria mais com seu sorriso mofador:

— Menino rico...

Cinco anos aturei na fábrica a brutalidade do meu tio. Sinval, aos dezessete, vendera o que possuía em roupas e móveis e tocara para as fábricas ou para as fazendas de São Paulo. A primeira e última notícia que tivemos dele foi dois anos depois. Estava metido numa greve e esperava ser preso a qualquer momento. Depois nem uma carta, nem um bilhete, nada. Os operários afirmavam:

— Seguiu o destino do pai — e cerravam os punhos enraivecidos. Mas a fábrica apitava e eles se curvavam, magros e silenciosos.

Minhas mãos estavam então calejadas e meus ombros largos. Esquecera muito do pouco que aprendera na escola, mas em compensação sentia um certo orgulho da minha situação de operário. Não trocaria meu trabalho na fiação pelo lugar de patrão. Meu tio, o dono, estava bem mais velho e mais vermelho e mais rico. A barriga era o índice da sua prosperidade. À proporção que meu tio enriquecia ela se avolumava. Estava enorme, indecente, monstruosa. Poucas fortunas em Sergipe igualavam nesse tempo à sua. Dava esmolas unicamente ao convento (onde papava jantares) e ao orfanato. A este ele dava esmolas e órfãs. Não se podia contar pelos dedos, nem juntando os dos pés, o número de operárias desencaminhadas por meu tio.

Paixão que tive aos catorze anos por uma rameira gasta e sifilítica, com a qual iniciei a minha vida sexual. Amor, aos dezoito, platônico, por uma loura pequena do orfanato que foi ser freira, e enfim aos vinte, o pensamento de me amigar com a Margarida, operária como eu. Isso deu maus resultados. Meu tio andava também de olho na Margarida, que ostentava uns seios altos e alvos, junto a um rosto de criança travessa. Margarida um dia me contou que o patrão andava a apalpá-la. E ria, cínica. Eu acho que foi o seu riso que me fez ir às fuças de meu tio. Estraguei-lhe a cara hipócrita. Fui despedido.

São Paulo parecia à minha mãe e a Elza o fim do mundo. Por nada deixariam que eu fosse para lá. Eu comecei a falar em Ilhéus, terra do cacau e do dinheiro, para onde iam levas e levas de emigrantes. E como Ilhéus ficava apenas a dois dias de navio de Aracaju, elas consentiram que eu me jogasse, numa manhã maravilhosa de luz, na terceira classe do "Murtinho", rumo à terra do cacau, eldorado em que os operários falavam como da terra de Canaã.

Mamãe chorava, Elza chorava, quando me abraçaram na tarde em que segui para Aracaju — tomar o vapor. Eu olhei a velha cidade de São Cristóvão, o coração cheio de saudade. Tinha certeza de que não voltaria mais à minha terra.

Os filhos dos operários jogavam futebol com uma bexiga de boi cheia de ar.


CACAU



No sul da Bahia cacau é o único nome que soa bem. As roças são belas quando carregadas de frutos amarelos. Todo princípio de ano os coronéis olham o horizonte e fazem as previsões sobre o tempo e sobre a safra. E vêem então as empreitadas com trabalhadores. A empreitada, espécie de contrato para colheita de uma roça, faz-se em geral com os trabalhadores, que, casados, possuem mulher e filhos. Eles se obrigam a colher toda uma roça e podem alugar trabalhadores para ajudá-los. Outros trabalhadores, aqueles que são sozinhos, ficam no serviço avulso. Trabalham por dia e trabalham em tudo. Na derruba, na juntagem no cocho e nas barcaças. Esses formavam uma grande maioria. Tínhamos três mil e quinhentos por dia de trabalho, mas nos bons tempos chegaram a pagar cinco mil-réis.

Partíamos pela manhã com as compridas varas, no alto das quais uma pequena foice brilhava ao sol. E nos internávamos cacauais adentro para a colheita. Na roça que fora de João Evangelista, uma das melhores da fazenda, trabalhava um grupo grande. Eu, Honório, Nilo, Valentim e uns seis mais, colhíamos. Magnólia, a velha Júlia, Simeão, Rita, João Grilo e outros juntavam e partiam os cocos. Ficavam aqueles montes de caroços brancos de onde o mel escorria. Nós da colheita nos afastávamos uns dos outros e mal trocávamos algumas palavras. Os da juntagem conversavam e riam. A tropa de cacau mole chegava e enchia os cacauais. O cacau era levado para o cocho para os três dias de fermento. Nós tínhamos que dançar sobre os caroços pegajosos e o mel aderia aos nossos pés. Mel que resistia aos banhos e ao sabão massa. Depois, livre do mel, o cacau secava ao sol, estendido nas barcaças. Ali também dançávamos sobre ele e cantávamos. Os nossos pés ficavam espalhados, os dedos abertos. No fim de oito dias os caroços de cacau estavam negros e cheiravam a chocolate. Antônio Barriguinha, então, conduzia sacos e mais sacos para Pirangi, tropas de quarenta e cinqüenta burros. A maioria dos alugados e empreiteiros só conhecia do chocolate aquele cheiro parecido que o cacau tem.

Quando chegavam ao meio-dia (o sol fazia de relógio), nós parávamos o trabalho e nos reuníamos ao pessoal da juntagem para a refeição. Comíamos o pedaço de carne seca e o feijão cozido desde pela manhã e a garrafa de cachaça corria de mão em mão.

Estalava-se a língua, e cuspia-se um cuspe grosso. Ficávamos conversando sem ligar para as cobras que passavam, produzindo ruídos estranhos nas folhas secas que tapetavam completamente o solo. Valentim sabia histórias engraçadas, e contava para a gente. Velho de mais de setenta anos, trabalhava como poucos e bebia como ninguém. Interpretava a Bíblia a seu modo, inteiramente diverso dos católicos e protestantes. Um dia contou-nos o capítulo de Caim e Abel:

— Vosmecês não sabe? Pois tá nos livros.

— Conte, véio.

— Deus deu de herança e Caim e Abel uma roça de cacau pra eles dividirem. Caim que era home mau, dividiu a fazenda em três pedaços. E disse a Abel: esse primeiro pedaço é meu. Esse do meio meu e seu. O último, meu também. Abel respondeu: não faça isso meu irmãozinho, que é uma dor do coração... Caim riu: ah! é uma dor do coração? Pois então tome. Puxou do revólver e — pum — matou Abel com um tiro só. Isso já foi há muitos anos...

— Caim deve ser avô de Mané Frajelo.

— Anda. A avó de Mané Frajelo era rapariga no Pontal.

— Você sabe, Honório?

— Sei. A mãe morreu de fome quando não pôde mais trepar com home. O fio nem aí...

— Miserave.

— Mas ele tinha vergonha da mãe.

— Mãe dele...


(Cacau, 1933.)

A CAATINGA



1

Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas no sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem esculturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel e o jararacuçu, a jararaca e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos, ao calor do sol. Os espinhos se cruzam na caatinga, é o intransponível deserto, o coração inviolável do Nordeste, a seca, o espinho e o veneno, a carência de tudo, do mais rudimentar caminho, de qualquer árvore de boa sombra e de sugosa fruta. Apenas as umburanas se levantam, de quando em quando, quebrando a monotonia dos arbustos com a sua presença amiga e acolhedora. No mais são as palmatórias, as favelas, os mandacarus, os columbis, as quixibas, os croás, os xiquexiques, as coroas-de-padre, em meio a cuja rispidez surge, como uma visão de toda beleza, a flor de uma orquídea. Um emaranhado de espinhos, impossível de transpor. Por léguas e léguas, através de todo o Nordeste, o deserto da caatinga. Impossível de varar, sem estradas, sem caminho, sem picadas, sem comida e sem água, sem sombra e sem regatos. A caatinga nordestina.

E através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja uma inumerável multidão de camponeses. São homens jogados fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêm de todas as partes do Nordeste e na viagem de espantos, cortam a caatinga abrindo passo pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os corações em desespero. São milhares e milhares se sucedendo sem parar. É uma viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os anos os colonos que perderam a terra, os trabalhadores explorados, as vítimas da seca e dos coronéis, juntam seus trapos, seus filhos e suas últimas forças e iniciam a jornada. E enquanto eles descem em busca de Juazeiro ou de Montes Claros, sobem os que voltam, desiludidos, de São Paulo, e é difícil, se não impossível, descobrir qual a maior miséria, se a dos que partem ou a dos que voltam. É a fome e a doença, os cadáveres vão ficando pelo caminho, estrumando a terra da caatinga e mais viçosos nascem os mandacarus, maiores os espinhos para rasgar novas carnes dos sertanejos fugidos. Famílias numerosas iniciam a viagem e quando atingem Pirapora a doença e a fome as reduziu a menos de metade. Ouvem-se, nessas cidades que bordejam a caatinga, as mais incríveis histórias, sabe-se das desgraças mais tremendas, aquelas que nenhum romance poderia conter sem parecer absurdo. É a viagem que jamais termina, recomeçada sempre por homens que se assemelham aos que os precederam como a água de um copo à água de outro copo. São os mesmos rostos de indefinida cor, os pés gigantescos, de dedos abertos, sobrando das alpargatas, o cabelo ralo, o corpo magro e resistente. As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas. Enchendo o deserto da caatinga com suas vidas desesperadas, com seus ais de dor, seu passo abrindo picadas que logo se fecham em espinhos.

Aqui, na caatinga, habitam os cangaceiros. Os soldados da vingança, os donos do sertão. Não têm paz nem descanso, não têm quartel nem bivaques, não têm lar nem transporte. Sua casa e seu quartel, sua cama e sua mesa, são a caatinga para eles bem-amada. Os soldados da policia que os perseguem não se atrevem a penetrar por entre os arbustos de espinhos, os pés de xiquexique e croás. Ao lado das serpentes e dos lagartos, vivem os cangaceiros na caatinga e também eles, por vezes, liquidam no tiro das suas repetições os sertanejos que descem e que sobem na contínua migração.

E aqui surgem, no coração seco da caatinga, os beatos mais famosos, aqueles que arrastam multidões dramáticas no seu passo, enchendo o sertão de orações estranhas, de ritos supersticiosos, anunciando pela boca repleta de profecias o fim do mundo e do sofrimento dos camponeses. Na caatinga habitaram Lucas de Feira, Antônio Silvino, Corisco e Lampião, hoje habita Lucas Arvoredo com seus jagunços. Na caatinga surgiram Antônio Conselheiro e o beato Lourenço. Do mais distante do deserto surge agora, com as mesmas alucinadas palavras de profeciais, o beato Estêvão.

Só os imigrantes são os mesmos, os nomes podem mudar, mas são idênticos rostos, a mesma fome, o mesmo fatalismo, a mesma decisão no caminhar. Atravessando a caatinga, sobre as pedras, os espinhos, as cobras, os lagartos, para frente, indo para São Paulo onde dizem que existe terra de graça e dinheiro farto, voltando de São Paulo onde não existe nem terra nem dinheiro.

Lá vão eles, são centenas, são milhares, na viagem de espantos. Durante meses atravessam a caatinga. Os cadáveres vão ficando pelos caminhos improvisados e nem mesmo eles modificam a paisagem desolada onde, ao sol causticante, dormem indiferentes lagartos. Água, só lá embaixo, onde termina a miséria da caatinga e começa a miséria do rio São Francisco.

***

Na frente iam João Pedro e Agostinho aparando os galhos mais agressivos dos arbustos. Quem visse a estreiteza do caminho diria que há muito não passava gente por ali. É que os espinheiros logo se entrecruzavam, fechando a picada quase imediatamente depois da passagem dos homens. Havia rastros pelo chão, muitos pés haviam pousado sobre as pedras e o pó daquela estrada. Por ali cortavam caminho. Jerônimo, no tempo que trabalhava de boiadeiro acostumara-se a percorrer todos esses atalhos da caatinga e os conhecia passo a passo durante grande extensão. Caminhava logo após o irmão e o filho, tocando o jumento. As mulheres iam atrás, em fila, porque a picada não dava para mais de um Dinah que conduzia a criança pequena, defendia-se com o braço contra os espinhos.

Noca viajava agora num dos caçuás que Jeremias levava sobre a cangalha. Haviam-no esvaziado e ali Jucundina colocara a menina doente, sentada, o pé cada vez mais inchado, a febre cada vez mais alta. Parara de gemer, numa indiferença por tudo, e era Gertrudes quem conduzia a gata. Nos primeiros dias de febre, Noca ainda corria ao ver Marisca e gostava de levá-la consigo, de acariciar seu dorso sedoso, de ouvir os seus miados. Mas, com o suceder do tempo, foi caindo num torpor que amedrontava Jucundina. Ao demais, desde a primeira noite de febre, Zefa não cessara de repetir aquelas palavras como uma praga:

- Vai morrer...

Parecia ter esquecido todos os demais termos do seu pequeno vocabulário de maldições e ameaças. Reduzira-se a essa previsão da morte de Noca e a princípio foi intolerável para os viajantes o constante ressoar daquelas palavras, era um agouro que todos desejavam afastar. Mas foram se habituando e se convencendo. Desde a noite em que os gemidos de Noca acordaram Jucundina, a menina só fizera piorar. Não havia mastruço nem chá que desse jeito, "a ferida arruinara", como dizia Jerônimo. Dentro de cada um deles as palavras de Zefa foram se transformando numa certeza indiscutível: vai morrer. E ficaram à espera de que a hora chegasse, quando Noca fechasse os olhos e deixasse de sofrer. Dois dias passaram parados junto a um poço numa agonia diante da criança doente. E como ela nem melhorasse nem morresse, resolveram no terceiro dia continuar a viagem pois não podiam gastar mantimento inutilmente. E agora fazem por não se lembrar de Noca que vai no caçuá. Apenas Jucundina e Marta chegam de vez em quando e dão uma espiada no rosto amarelo da doente, de olhos semicerrados, a respiração arfante.

Zefa repete, não pensando mais sequer em Noca, maquinalmente, as palavras agourentas. E os demais, depois de todos esses dias de espera, já estão, cada um para si, achando que era melhor que ela morresse logo porque está atrasando a viagem, têm que andar no passo mais lento, o sofrimento se arrasta e a comida se acaba.

***

E naquele dia não houve água em todo o percurso. O sol escaldava, as pedras da estrada mais pareciam brasas acendidas, as cobras moviam-se entre os arbustos, João Pedro matou uma cascavel com o seu bordão e Tonho apareceu correndo, branco de susto, certa hora, porque encontrara um jararacuçu na estrada. Andavam com cuidado e a sede ia aumentando. A pouca água que levavam, um moringue pela metade, Jucundina a reservara toda para Noca.

Em determinado momento foi necessário colocar Tonho em cima da cangalha. O menino já não agüentava andar. E a marcha se fez mais vagarosa, os olhos de Noca mais fechados, e o cansaço de todos cada vez maior.

Pelas três horas da tarde Dinah arriou:

- Não agüento mais...

Pararam todos, João Pedro e Agostinho baixaram os facões. Nenhuma árvore nas proximidades, nenhuma casa à vista, nem uma clareira, nem um descampado. Somente a caatinga, agressiva e inóspita. Até mesmo Zefa, a quem o delírio sustentava, se deixou sentar e pediu de beber. Os homens se espalharam em busca de água.

Agostinho aproximou-se do jumento, olhou a sobrinha no caçuá:

- Não passa dessa noite...

E dizia com um alívio na voz.

(Seara vermelha, 1946.)



Jorge Amado

sábado, 28 de outubro de 2017

45 anos

Foi preciso boiar no dilúvio para atear fogo às vestes. Foi preciso certa flacidez nos músculos para mandar as tiraniazinhas às favas. Foi preciso tomar meu rumo calculando as discordâncias da teoria à prática na curva. A vida em carne viva uivando nos Tímpanos , eco seco de galhos retorcidos, praia invernal , risos de criança , perfume que ainda se debate no ar incrédulo das madrugadas lisas. Foi preciso deixar o hábito às ervas nos jardins  desordenados da palavra, para colher os verbos que destilam ácido sentido. Do fundo sentimento percorrer a sinuosa arquitetura. Foi preciso dar nome aos cães e às larvas para desfrutar o que me parecia imperecível.

Ledusha. Risco no Disco. FSP. Mais ! 28 /03/1998.

A partida


Estendi-me a mão
Mansamente, me levantei da tristeza
Tirei a poeira de solidão do peito
Enxuguei os olhos com tiras de esperança
E encontrei os seus
tomados de um sorriso profundo
Nos demos a alma e
Lado a lado, silenciosamente amados
Partimos, para não mais voltar



Maria Regina Alves       



Um pensamento deve ter convicção e dúvida. A dúvida alarga, a convicção erige; aquela é o eixo horizontal, esta, o eixo vertical. A propósito, uma fórmula: a convicção é igual à certeza menos a verdade (c = C - V).

De Francisco Bosco

CÁRCERE QUASE PRIVADO


Refém de mim mesmo
meu eu me detém.

Enquanto você
apesar de me ter

não me contém.

Renan Sanves   
A glória mundana
não é senão
Sopro de brisa
que ora vem daqui
ora dacolá,
muda de noma
conforme muda de lado.

Dante Alighieri

TODOS OS NOMES DE DEUS


Descalço
as sandálias. Prostro-me.
Murmuro: Adonai, El-Shaday, Oxalá, eu já vou.
Insisto: Braman, eu-tu., meu amado.
Continuo, em êxtase: Paradigma. Origami. Rosácea. Exulto,
estulto. Choro. Bebo minhas lágrimas.
Visto-me de saco, cubro-me
de cinzas.
Não posso.
Quem sou? Menos
que nada. E este fascínio me devora.
Não me decifro. Sou uma cifra? Um pano de chão? Pouco
mais que louco.
Ousei dizer-te, pronunciando-me, mudo. O sol que vejo
sou eu. A lua a meus pés, arrasto
as estrelas. Todas as eras, as margaridas esmigalhadas, as ilusões adquiridas
são minhas.
Descalço
as sandálias. Bebo, como.
Gargalho, vomito, danço.
Danço, danço, danço...
Sou todas as coisas: o mito, o nada, o tudo.
Imobilizo-me na areia,
vergado, prostrado,
em cruz.
Nu como vim ao mundo.
Nu como partirei um dia,
locupletado
de
memórias.

Otto Leopoldo Winck

TODOS OS NOMES DO AMOR


Traduzo
as formas da noite
– cavalos, espelhos, iconostases –
na pele branca da aurora:
tatuagem
em teu cóccix, pinturas rupestres, barulho da chuva.
Traduzo
teu nome impenetrável
na linguagem dos surdos.
Sou teu discurso, teu código de honra, tua suma teleológica,
a mais terrível revelação.
Todos os mundos são meus.
e as órbitas incontroláveis
das partículas elementares.
O amor não ousa
a palavra
que quebraria o encanto...
Traduzo
teu nome, os usos, as bulas, a lâmina de sílex,
a descoberta da graça, a confissão auricular.
Penitência: minha língua em teu púbis, suave flagelação.
Todas as raças irão nos servir.
Não haverá fome esse dia
nem a necessidade de cartões magnéticos.
Traduzo
teu nome
noturno e o transcrevo no dorso da aurora,
no muro, no paço, na carne
do movimento operário.
Sou o fim do prenúncio, o sábado, a chaga transfigurada.
Este é o meu corpo:
tomai, comei.
(Me digas se teremos tortas de maçã para o jantar.
Se chegas para o mês.
Se morres de amor.)
Silêncio. Quando o sol nascer
eu quero ser encontrado
nu,
genuflexo,
na mais perfeita adoração.

Olw
Tem noites
que quero esconder o meu rosto,
não na fronha ou nas cobertas,
mas no meio
das tuas pernas
abertas. A vergonha é tanta
por ter nascido
que só o retorno às fontes
me pode salvar
do colapso dos dias.
Tem noites
que quero beber de meu próprio poço
até o fim, morrer, renascer
como um broto,
um pássaro,
um arquipélago azul.
Toda a vida é espanto.
Todo amor é perjúrio.
De ti nascerei de novo
como um homem
pronto a chorar
como da primeira vez.


Otto Leopoldo Winck
Por que levantar o braço
para colher o fruto?
A máquina o fará por nós.
Por que labutar no campo, na cidade ?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar , imaginar ?
A máquina o fará por nós
Por que fazer um poema ?
A máquina o fará por nós
Por que subir a escada de Jacó ?
A máquina o fará por nós
Ó máquina, orai por nós.

Cassiano Ricardo

A vida é esta

A vida é esta , é um segundo que  se vai depressa
Todos nós temos o nosso nascimento
e depois dele só o esquecimento.

Ary Barroso

Sorte

Todo mundo aposta
no jogo incerto da vida
pouca gente acerta

Helena Kolody
Espero um sinal. Um mísero
sinal. De balsa, de lanterna, de farol.
A noite é linda
mas tão vazia. Não tem sentido
tanta estrela nem tanta concha
na praia infinda. O mar é cego
e caminhar sem rumo,
sem rima, sem sol
é minha sina. Um sinal.
Apenas um sinal. E tudo
que é noite
se ilumina.

Otto Leopoldo Winck
Deixa em teus lábios
imprimir meu nome;
aperta-me em teu seio !
acolhe-me um momento !

 Machado de Assis

O 'peixe-cachorro


Era um peixe esquisito pra cachorro:
Cruza de lobisomem com tapera?
Filho de jacaré com cobra-d'água? Ou
Simplesmente cachorro de indumentos?

Era muito esquisito para peixe
E pra cachorro lhe faltava andaime.
Uma feição com boca de curimba
E o traseiro arrumado para entrega.

Se peixe, o rabo empresta ao liso campo
Um andar de moreia atravancada.
Sendo cachorro não arranca a espada?

Difícil de aceitar esse estrupício
Como um peixe; ainda que nade.
Pra cachorro não cabe no possível.


De Manoel de Barros

Caminhos de retalho


Caminho por caminhar
Sou pedaço, sou retalho
E diante de tanto descaso
Sinto-me um palhaço
Sem circo pra brincar

Caminho pra ver o sol
Pra enxugar as minhas lágrimas
Pois diante de tanta mágoa
De uma democracia farsa
Sinto-me um navio sem farol

Caminho pra ter futuro
Pra livre pode pensar
Pois a massa não pensa
Basta um prato de comida
Que o cabresto emenda...
Realidade fria e sedenta...
Só não lhe peça pra pensar.

Nelson Rodrigues de Barros


O amor antigo



O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.


 De Carlos Drummond de Andrade

Atrás dos olhos das meninas sérias




Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do adultério. Separatista protestante. Melindrosa basca com fissura de verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o primeiro side-car anfíbio nos classificados de aluguel. No flanco do motor vinha um anjo encouraçado, Charlie's Angel rumando a toda para o Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro. Pulo para fora (mas meu salto engancha no pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás. Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê novela de verdade e meu manto azul dourado mais pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e pernalta.

De Ana Cristina Cesar

Ode fragmentária


Se há muito o que inventar por estes lados
O que sei com certeza são meus fados
Exigindo verdades e punindo
Os líricos enganos da beleza.

À procura da rosa tenho andado
Causando às criaturas estranheza.
(Se me encontrares
Terei um jeito de flor
E um não sei quê de brisa
Nos seus ares.
Hei de buscar a rosa
- A dos altares -
E sinto a graça nos pés
Leveza nos andares)

"Não temes
As deidades atentas da memória
Os gnomos secretos, a loucura,
A morte?"

De Hilda Hilst


Será, o Ego, um esfíncter psíquico entre o Isto [que Sou] e o Real? Sendo o Real um conceito de espaço e o Isto [que Sou] um conceito de tempo?


Ricardo Pozzo

O sol número 2

Para Mazisi Kunene

O Sol em si
não existe
uma casa na estrada campo
aberto
só a noite existe
apesar do azul
claro o sol
não existe
intervalo de
objetos
vasta noite
ondas
raios
sol luz perto
da morte
eco de formigas
existe e não
existe
luz parece sol
à vista

Régis Bonvicino
Paris, II- 95


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

poema-hálito

A seguir, um poema-hálito, por mais insólito que lhes possa parecer, sobre uma questão que nos diz muito respeito: a vida, a eternidade que a compreende. A hipótese-poema que não deixa o poeta, a hipótese-delírio sobre o existir, muito bonita, imagem forte, de muita vibração: batimento de "medusas" (na mitologia grega, Medusa é a única mortal das górgonas), filha de deuses marinhos, criatura mortal, assim como nós, com serpentes na cabeça, assim como nós, de olhar que petrifica tudo que encontre à sua frente, à sua mira, assim como nós, "medusas" engolfadas, engolidas, por um abismo oceânico, como nós, engolidos pelo abismo-morte, que não imaginamos onde vai dar. Ou, então, a hipótese-delírio sob a forma de campânulas fluorescentes, flores silvestres coloridas, de colorido forte, consumindo o tempo em suas tarefas mundanas, assim como nós consumimos, enquanto um tempo maior, tempo do "correr da vida", as consome, tal qual acontece conosco. O desde sempre mesmo movimento da eternidade: as coisas consumindo o seu tempo no "estar-no-mundo" enquanto um tempo maior as atira para dentro de um abismo de onde nunca se consegue sair. 

Paulo Sabino


Soneto sentimental


O que você chama de amor é isso?
Essa perda do parco tempo e espaço
que ainda te restam, esse desperdício
de esperma? Esse viver sempre em compasso
de espera, sempre com o mesmo desfecho
que te faz dar o que te falta mais?
Que amor mais besta --- uma espécie de peixe
palerma, que nada, nada e não sai
do lugar --- é isso? Esse diz-que-diz
que não te deixa louco por um triz
e só te inspira mesmo ódio e horror?
Que te machuca tanto que no fim
não dá pra perdoar? É isso? Sim,
é isso que você chama de amor.



PAULO HENRIQUES BRITTO