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Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos
elevam-se por léguas e léguas no sertão seco e bravio, como um deserto de
espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol
escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do
mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem esculturas
primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel e o jararacuçu, a jararaca
e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos e a coral. Silvam
ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos, ao calor do sol. Os espinhos se
cruzam na caatinga, é o intransponível deserto, o coração inviolável do
Nordeste, a seca, o espinho e o veneno, a carência de tudo, do mais rudimentar
caminho, de qualquer árvore de boa sombra e de sugosa fruta. Apenas as
umburanas se levantam, de quando em quando, quebrando a monotonia dos arbustos
com a sua presença amiga e acolhedora. No mais são as palmatórias, as favelas,
os mandacarus, os columbis, as quixibas, os croás, os xiquexiques, as
coroas-de-padre, em meio a cuja rispidez surge, como uma visão de toda beleza,
a flor de uma orquídea. Um emaranhado de espinhos, impossível de transpor. Por
léguas e léguas, através de todo o Nordeste, o deserto da caatinga. Impossível
de varar, sem estradas, sem caminho, sem picadas, sem comida e sem água, sem
sombra e sem regatos. A caatinga nordestina.
E através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja
uma inumerável multidão de camponeses. São homens jogados fora da terra pelo
latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que
descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêm de todas as
partes do Nordeste e na viagem de espantos, cortam a caatinga abrindo passo
pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os
pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os
corações em desespero. São milhares e milhares se sucedendo sem parar. É uma
viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os
anos os colonos que perderam a terra, os trabalhadores explorados, as vítimas
da seca e dos coronéis, juntam seus trapos, seus filhos e suas últimas forças e
iniciam a jornada. E enquanto eles descem em busca de Juazeiro ou de Montes
Claros, sobem os que voltam, desiludidos, de São Paulo, e é difícil, se não
impossível, descobrir qual a maior miséria, se a dos que partem ou a dos que
voltam. É a fome e a doença, os cadáveres vão ficando pelo caminho, estrumando
a terra da caatinga e mais viçosos nascem os mandacarus, maiores os espinhos
para rasgar novas carnes dos sertanejos fugidos. Famílias numerosas iniciam a
viagem e quando atingem Pirapora a doença e a fome as reduziu a menos de
metade. Ouvem-se, nessas cidades que bordejam a caatinga, as mais incríveis
histórias, sabe-se das desgraças mais tremendas, aquelas que nenhum romance
poderia conter sem parecer absurdo. É a viagem que jamais termina, recomeçada
sempre por homens que se assemelham aos que os precederam como a água de um
copo à água de outro copo. São os mesmos rostos de indefinida cor, os pés
gigantescos, de dedos abertos, sobrando das alpargatas, o cabelo ralo, o corpo
magro e resistente. As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas. Enchendo
o deserto da caatinga com suas vidas desesperadas, com seus ais de dor, seu
passo abrindo picadas que logo se fecham em espinhos.
Aqui, na caatinga, habitam os cangaceiros. Os soldados da
vingança, os donos do sertão. Não têm paz nem descanso, não têm quartel nem
bivaques, não têm lar nem transporte. Sua casa e seu quartel, sua cama e sua
mesa, são a caatinga para eles bem-amada. Os soldados da policia que os
perseguem não se atrevem a penetrar por entre os arbustos de espinhos, os pés
de xiquexique e croás. Ao lado das serpentes e dos lagartos, vivem os
cangaceiros na caatinga e também eles, por vezes, liquidam no tiro das suas
repetições os sertanejos que descem e que sobem na contínua migração.
E aqui surgem, no coração seco da caatinga, os beatos mais
famosos, aqueles que arrastam multidões dramáticas no seu passo, enchendo o
sertão de orações estranhas, de ritos supersticiosos, anunciando pela boca
repleta de profecias o fim do mundo e do sofrimento dos camponeses. Na caatinga
habitaram Lucas de Feira, Antônio Silvino, Corisco e Lampião, hoje habita Lucas
Arvoredo com seus jagunços. Na caatinga surgiram Antônio Conselheiro e o beato
Lourenço. Do mais distante do deserto surge agora, com as mesmas alucinadas
palavras de profeciais, o beato Estêvão.
Só os imigrantes são os mesmos, os nomes podem mudar, mas
são idênticos rostos, a mesma fome, o mesmo fatalismo, a mesma decisão no
caminhar. Atravessando a caatinga, sobre as pedras, os espinhos, as cobras, os
lagartos, para frente, indo para São Paulo onde dizem que existe terra de graça
e dinheiro farto, voltando de São Paulo onde não existe nem terra nem dinheiro.
Lá vão eles, são centenas, são milhares, na viagem de
espantos. Durante meses atravessam a caatinga. Os cadáveres vão ficando pelos
caminhos improvisados e nem mesmo eles modificam a paisagem desolada onde, ao
sol causticante, dormem indiferentes lagartos. Água, só lá embaixo, onde
termina a miséria da caatinga e começa a miséria do rio São Francisco.
***
Na frente iam João Pedro e Agostinho aparando os galhos mais
agressivos dos arbustos. Quem visse a estreiteza do caminho diria que há muito
não passava gente por ali. É que os espinheiros logo se entrecruzavam, fechando
a picada quase imediatamente depois da passagem dos homens. Havia rastros pelo
chão, muitos pés haviam pousado sobre as pedras e o pó daquela estrada. Por ali
cortavam caminho. Jerônimo, no tempo que trabalhava de boiadeiro acostumara-se
a percorrer todos esses atalhos da caatinga e os conhecia passo a passo durante
grande extensão. Caminhava logo após o irmão e o filho, tocando o jumento. As
mulheres iam atrás, em fila, porque a picada não dava para mais de um Dinah que
conduzia a criança pequena, defendia-se com o braço contra os espinhos.
Noca viajava agora num dos caçuás que Jeremias levava sobre
a cangalha. Haviam-no esvaziado e ali Jucundina colocara a menina doente,
sentada, o pé cada vez mais inchado, a febre cada vez mais alta. Parara de
gemer, numa indiferença por tudo, e era Gertrudes quem conduzia a gata. Nos
primeiros dias de febre, Noca ainda corria ao ver Marisca e gostava de levá-la
consigo, de acariciar seu dorso sedoso, de ouvir os seus miados. Mas, com o
suceder do tempo, foi caindo num torpor que amedrontava Jucundina. Ao demais,
desde a primeira noite de febre, Zefa não cessara de repetir aquelas palavras
como uma praga:
- Vai morrer...
Parecia ter esquecido todos os demais termos do seu pequeno
vocabulário de maldições e ameaças. Reduzira-se a essa previsão da morte de
Noca e a princípio foi intolerável para os viajantes o constante ressoar
daquelas palavras, era um agouro que todos desejavam afastar. Mas foram se
habituando e se convencendo. Desde a noite em que os gemidos de Noca acordaram
Jucundina, a menina só fizera piorar. Não havia mastruço nem chá que desse
jeito, "a ferida arruinara", como dizia Jerônimo. Dentro de cada um
deles as palavras de Zefa foram se transformando numa certeza indiscutível: vai
morrer. E ficaram à espera de que a hora chegasse, quando Noca fechasse os
olhos e deixasse de sofrer. Dois dias passaram parados junto a um poço numa
agonia diante da criança doente. E como ela nem melhorasse nem morresse,
resolveram no terceiro dia continuar a viagem pois não podiam gastar mantimento
inutilmente. E agora fazem por não se lembrar de Noca que vai no caçuá. Apenas
Jucundina e Marta chegam de vez em quando e dão uma espiada no rosto amarelo da
doente, de olhos semicerrados, a respiração arfante.
Zefa repete, não pensando mais sequer em Noca,
maquinalmente, as palavras agourentas. E os demais, depois de todos esses dias
de espera, já estão, cada um para si, achando que era melhor que ela morresse
logo porque está atrasando a viagem, têm que andar no passo mais lento, o
sofrimento se arrasta e a comida se acaba.
***
E naquele dia não houve água em todo o percurso. O sol
escaldava, as pedras da estrada mais pareciam brasas acendidas, as cobras
moviam-se entre os arbustos, João Pedro matou uma cascavel com o seu bordão e
Tonho apareceu correndo, branco de susto, certa hora, porque encontrara um
jararacuçu na estrada. Andavam com cuidado e a sede ia aumentando. A pouca água
que levavam, um moringue pela metade, Jucundina a reservara toda para Noca.
Em determinado momento foi necessário colocar Tonho em cima
da cangalha. O menino já não agüentava andar. E a marcha se fez mais vagarosa,
os olhos de Noca mais fechados, e o cansaço de todos cada vez maior.
Pelas três horas da tarde Dinah arriou:
- Não agüento mais...
Pararam todos, João Pedro e Agostinho baixaram os facões.
Nenhuma árvore nas proximidades, nenhuma casa à vista, nem uma clareira, nem um
descampado. Somente a caatinga, agressiva e inóspita. Até mesmo Zefa, a quem o
delírio sustentava, se deixou sentar e pediu de beber. Os homens se espalharam
em busca de água.
Agostinho aproximou-se do jumento, olhou a sobrinha no
caçuá:
- Não passa dessa noite...
E dizia com um alívio na voz.
(Seara vermelha, 1946.)
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