segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A CAATINGA



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Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas no sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem esculturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel e o jararacuçu, a jararaca e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos, ao calor do sol. Os espinhos se cruzam na caatinga, é o intransponível deserto, o coração inviolável do Nordeste, a seca, o espinho e o veneno, a carência de tudo, do mais rudimentar caminho, de qualquer árvore de boa sombra e de sugosa fruta. Apenas as umburanas se levantam, de quando em quando, quebrando a monotonia dos arbustos com a sua presença amiga e acolhedora. No mais são as palmatórias, as favelas, os mandacarus, os columbis, as quixibas, os croás, os xiquexiques, as coroas-de-padre, em meio a cuja rispidez surge, como uma visão de toda beleza, a flor de uma orquídea. Um emaranhado de espinhos, impossível de transpor. Por léguas e léguas, através de todo o Nordeste, o deserto da caatinga. Impossível de varar, sem estradas, sem caminho, sem picadas, sem comida e sem água, sem sombra e sem regatos. A caatinga nordestina.

E através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja uma inumerável multidão de camponeses. São homens jogados fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêm de todas as partes do Nordeste e na viagem de espantos, cortam a caatinga abrindo passo pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os corações em desespero. São milhares e milhares se sucedendo sem parar. É uma viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os anos os colonos que perderam a terra, os trabalhadores explorados, as vítimas da seca e dos coronéis, juntam seus trapos, seus filhos e suas últimas forças e iniciam a jornada. E enquanto eles descem em busca de Juazeiro ou de Montes Claros, sobem os que voltam, desiludidos, de São Paulo, e é difícil, se não impossível, descobrir qual a maior miséria, se a dos que partem ou a dos que voltam. É a fome e a doença, os cadáveres vão ficando pelo caminho, estrumando a terra da caatinga e mais viçosos nascem os mandacarus, maiores os espinhos para rasgar novas carnes dos sertanejos fugidos. Famílias numerosas iniciam a viagem e quando atingem Pirapora a doença e a fome as reduziu a menos de metade. Ouvem-se, nessas cidades que bordejam a caatinga, as mais incríveis histórias, sabe-se das desgraças mais tremendas, aquelas que nenhum romance poderia conter sem parecer absurdo. É a viagem que jamais termina, recomeçada sempre por homens que se assemelham aos que os precederam como a água de um copo à água de outro copo. São os mesmos rostos de indefinida cor, os pés gigantescos, de dedos abertos, sobrando das alpargatas, o cabelo ralo, o corpo magro e resistente. As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas. Enchendo o deserto da caatinga com suas vidas desesperadas, com seus ais de dor, seu passo abrindo picadas que logo se fecham em espinhos.

Aqui, na caatinga, habitam os cangaceiros. Os soldados da vingança, os donos do sertão. Não têm paz nem descanso, não têm quartel nem bivaques, não têm lar nem transporte. Sua casa e seu quartel, sua cama e sua mesa, são a caatinga para eles bem-amada. Os soldados da policia que os perseguem não se atrevem a penetrar por entre os arbustos de espinhos, os pés de xiquexique e croás. Ao lado das serpentes e dos lagartos, vivem os cangaceiros na caatinga e também eles, por vezes, liquidam no tiro das suas repetições os sertanejos que descem e que sobem na contínua migração.

E aqui surgem, no coração seco da caatinga, os beatos mais famosos, aqueles que arrastam multidões dramáticas no seu passo, enchendo o sertão de orações estranhas, de ritos supersticiosos, anunciando pela boca repleta de profecias o fim do mundo e do sofrimento dos camponeses. Na caatinga habitaram Lucas de Feira, Antônio Silvino, Corisco e Lampião, hoje habita Lucas Arvoredo com seus jagunços. Na caatinga surgiram Antônio Conselheiro e o beato Lourenço. Do mais distante do deserto surge agora, com as mesmas alucinadas palavras de profeciais, o beato Estêvão.

Só os imigrantes são os mesmos, os nomes podem mudar, mas são idênticos rostos, a mesma fome, o mesmo fatalismo, a mesma decisão no caminhar. Atravessando a caatinga, sobre as pedras, os espinhos, as cobras, os lagartos, para frente, indo para São Paulo onde dizem que existe terra de graça e dinheiro farto, voltando de São Paulo onde não existe nem terra nem dinheiro.

Lá vão eles, são centenas, são milhares, na viagem de espantos. Durante meses atravessam a caatinga. Os cadáveres vão ficando pelos caminhos improvisados e nem mesmo eles modificam a paisagem desolada onde, ao sol causticante, dormem indiferentes lagartos. Água, só lá embaixo, onde termina a miséria da caatinga e começa a miséria do rio São Francisco.

***

Na frente iam João Pedro e Agostinho aparando os galhos mais agressivos dos arbustos. Quem visse a estreiteza do caminho diria que há muito não passava gente por ali. É que os espinheiros logo se entrecruzavam, fechando a picada quase imediatamente depois da passagem dos homens. Havia rastros pelo chão, muitos pés haviam pousado sobre as pedras e o pó daquela estrada. Por ali cortavam caminho. Jerônimo, no tempo que trabalhava de boiadeiro acostumara-se a percorrer todos esses atalhos da caatinga e os conhecia passo a passo durante grande extensão. Caminhava logo após o irmão e o filho, tocando o jumento. As mulheres iam atrás, em fila, porque a picada não dava para mais de um Dinah que conduzia a criança pequena, defendia-se com o braço contra os espinhos.

Noca viajava agora num dos caçuás que Jeremias levava sobre a cangalha. Haviam-no esvaziado e ali Jucundina colocara a menina doente, sentada, o pé cada vez mais inchado, a febre cada vez mais alta. Parara de gemer, numa indiferença por tudo, e era Gertrudes quem conduzia a gata. Nos primeiros dias de febre, Noca ainda corria ao ver Marisca e gostava de levá-la consigo, de acariciar seu dorso sedoso, de ouvir os seus miados. Mas, com o suceder do tempo, foi caindo num torpor que amedrontava Jucundina. Ao demais, desde a primeira noite de febre, Zefa não cessara de repetir aquelas palavras como uma praga:

- Vai morrer...

Parecia ter esquecido todos os demais termos do seu pequeno vocabulário de maldições e ameaças. Reduzira-se a essa previsão da morte de Noca e a princípio foi intolerável para os viajantes o constante ressoar daquelas palavras, era um agouro que todos desejavam afastar. Mas foram se habituando e se convencendo. Desde a noite em que os gemidos de Noca acordaram Jucundina, a menina só fizera piorar. Não havia mastruço nem chá que desse jeito, "a ferida arruinara", como dizia Jerônimo. Dentro de cada um deles as palavras de Zefa foram se transformando numa certeza indiscutível: vai morrer. E ficaram à espera de que a hora chegasse, quando Noca fechasse os olhos e deixasse de sofrer. Dois dias passaram parados junto a um poço numa agonia diante da criança doente. E como ela nem melhorasse nem morresse, resolveram no terceiro dia continuar a viagem pois não podiam gastar mantimento inutilmente. E agora fazem por não se lembrar de Noca que vai no caçuá. Apenas Jucundina e Marta chegam de vez em quando e dão uma espiada no rosto amarelo da doente, de olhos semicerrados, a respiração arfante.

Zefa repete, não pensando mais sequer em Noca, maquinalmente, as palavras agourentas. E os demais, depois de todos esses dias de espera, já estão, cada um para si, achando que era melhor que ela morresse logo porque está atrasando a viagem, têm que andar no passo mais lento, o sofrimento se arrasta e a comida se acaba.

***

E naquele dia não houve água em todo o percurso. O sol escaldava, as pedras da estrada mais pareciam brasas acendidas, as cobras moviam-se entre os arbustos, João Pedro matou uma cascavel com o seu bordão e Tonho apareceu correndo, branco de susto, certa hora, porque encontrara um jararacuçu na estrada. Andavam com cuidado e a sede ia aumentando. A pouca água que levavam, um moringue pela metade, Jucundina a reservara toda para Noca.

Em determinado momento foi necessário colocar Tonho em cima da cangalha. O menino já não agüentava andar. E a marcha se fez mais vagarosa, os olhos de Noca mais fechados, e o cansaço de todos cada vez maior.

Pelas três horas da tarde Dinah arriou:

- Não agüento mais...

Pararam todos, João Pedro e Agostinho baixaram os facões. Nenhuma árvore nas proximidades, nenhuma casa à vista, nem uma clareira, nem um descampado. Somente a caatinga, agressiva e inóspita. Até mesmo Zefa, a quem o delírio sustentava, se deixou sentar e pediu de beber. Os homens se espalharam em busca de água.

Agostinho aproximou-se do jumento, olhou a sobrinha no caçuá:

- Não passa dessa noite...

E dizia com um alívio na voz.

(Seara vermelha, 1946.)



Jorge Amado

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