terça-feira, 31 de outubro de 2017

A ampulheta de cinzas



Teu estômago, teu pâncreas, teu baço,
Teus ossos, teu esôfago, teus rins,
Teus pulmões, teus intestinos, teu cérebro,
...Teu coração, teu diafragma, tua genitália,

Teus cabelos que acariciavam mãos,
Tua pele e os abalos sísmicos de teu ser,
Teus olhos que assistiam pessoas,
Tuas mãos que mudaram parcamente o mundo,
Tuas palavras, que me ensinaram todo o peso da bondade.

Tudo isso, agora, é tua ausência que escorre em meu presente.

Tuas cinzas, que escorrem de meus dedos, agora,
Peregrinam por entre tuas queridas plantas, como sonhaste.
Serão o adubo de tua sagrada e verdadeira terra santa.

Mas eu, egoísta, guardarei um pouco de tuas cinzas,
Guardarei um punhado de ti, transubstanciado às avessas.

Mandarei construir uma ampulheta.

Colocarei tua essência sólida lá dentro, no lugar da areia.
E em teu movimento calmo, cinza, sério,
Compreenderei, finalmente, o mistério
Que consagra cada momento da finita passagem das horas.

Serás meu relógio morto que mede a vida,
A metáfora mais bela da sensata e necessária fluidez,
O mais grandioso símbolo de toda humana e transitória pequenez.

André de Castro


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