sábado, 31 de janeiro de 2015


- pessoas sem conteúdo, um não sei que em olhar obtuso, onde o manifesto e o assunto de perplexidade da vez - não é o personagem ou o trabalho- é a bunda da atriz que anualmente, mais ou menos, exibi em rede nacional: esperar o que num país machista e misoginista?ai que preguiça...


Adriana Zaparolli 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

a primeira dama caindo no choro

Luiz Felipe Leprevost

a primeira dama caindo no choro
o presidiário aprendendo a fazer tricô
o doutorando indo caçar ruas na madruga fria
o gótico cheirando rapé no cemitério ao meio-dia
um irmão encontrando alguém pra odiar fora da família
o latifundiário chegando no mar com um pranchão debaixo do sovaco
a jornalista ardendo de amor por um mundo que não volta tentando
atravessar a linha do horizonte que foge
o ator pornô fazendo sua festa de aniversário de 74 anos
o religioso fundamentalista prestando vestibular pra história
a costureira costurando um rasgo na própria carne
o mau hálito da manhã de uma cidade imutável
o ativista ecológico surrando os filhos bagunceiros
o governador tendo a cara pisada esmagada mijada por quinze mendigos selvagens
o prosador tradutor tatuador sofrendo a experiência de ser usado
o historiador abrindo a franquia de uma hamburgueria
o promotor público tendo a sua primeira crise de pânico
o rei do camarote perdido numa aldeia indígena que não aceita o seu cartão
o guardador de carros autopunitivo
o xerife secretário de segurança de vestidinho rosa levando forte no rabo e gritando é bala neles
o pai de santo recebendo a si mesmo
o turista pisando pela primeira vez numa capela mortuária
o poeta fazendo um bico de juiz de futebol no fim de semana
a estudante estudando guarani na praça de alimentação do shopping

o mau hálito da manhã de uma cidade aparentemente imutável

Espaço Vazio


Eu era ar e tempo
Eu era ar e tempo, espaço vazio, tempo
Eu era ar e tempo, espaço vazio
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim
Eu era ar e tempo
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Céu da boca, falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio, fazer cabeça
Não tinha onde tirar
Eu era espaço vazio
Eu não sei como é que pode formar uma cabeça
Um olho enxergando, nariz respirando
Boca com dentes
Orelhas ouvindo vozes
Pele, carne, ossos
Altura, largura, força
Pra ter força
O que é preciso fazer
Tomar vitamina
É preciso vitamina.

Stela do Patrocínio

(1941-1997)

Boçais

Luiz Felipe Leprevost



para saber o que causam esses animaizinhos de rosto engruvinhado, basta procurar seus efeitos nos que receberam sua ferroada e ficaram assim: Boçais feito os seguranças de um figurão mais o figurão, Boçais feito homenzinhos fardados, Boçais feito a secretaria de um senador mais o senador, Boçais feito carros-fortes (os Boçais se proliferam em casamatas, bunkers, bancos), Boçais feito os que exigem carteirinhas mais os que dão carteiradas, Boçais feito alguém que faz chamadas, confere, fere ou indefere etc etc etc. são apenas alguns exemplos, a lista é bem maior, claro. no mais, os Boçais, em sua maioria, como diz o jargão popular, são pessoas sem nenhuma bossa
Luiz Felipe Leprevost

Amoreco

Amoreco é uma coisa que só pode mesmo existir aos montes de tão estúpida. Amoreco é mais, assim, um estado de espírito dentro do microondas esperando o maridinho voltar do trabalho. Amoreco é uma febre colada com saliva no diário da namoradinha. Amoreco é um final de semana inteiro de tórridas tramas num Parque Aquático, num pesque e pague, na Feira de Filhotes. Amoreco é a obra da última das poetisas recebendo homenagem na Câmara dos Vereadores. sob os olhos grandes do ciúme, Amoreco espreita feito a lebre que perdeu o rosnar afiado. Amoreco é a mágoa que se empanturra em churrascos com pão de alho, a carne tem porque tem porque tem porque tem que ser Friboi
Sepultei dois mortos na última primavera.
Cavei minimamente suas covas brancas,
envolvi em lençóis de linho com óleos almiscarados.
Jamais voltarei aos seus túmulos.
Eles, que não se sabem mortos,
passeiam por paraísos com queixas
de anis.


Bárbara Lia


A última chuva / Mulheres Emergentes (2007)
Luiz Felipe Leprevost

os Silêncios

os Silêncios. o que falar dos Silêncios? que só os Silêncios são capazes de conceber filhotes de Silêncios, depois formá-los. há por aí alguns Silêncios estúpidos, não temo afirmar. também é quase banal encontrarmos cultos, doutos, catedráticos Silêncios badalando, como se diz, nos mais variados redutos intelectuais e não só. para nós, humildes alunos, seria bastante estimulante travar algum diálogo com alguns Silêncios. no entanto, a dificuldade de se compreender o modus vivendi de tais seres está justo na óbvia constatação de que os mestres e sábios dos Silêncios são absolutamente quietos, apesar de inquietantes. indagados, preferem deixar os principais conteúdos nas entrelinhas. a verdade é que os Silêncios não querem ou, na maior parte dos casos, não têm nada a dizer, e é assim que dizem
Luiz Felipe Leprevost

homens que explodem

um carro, o motor esfumaçado no meio da via rápida. os xingamentos, as bitucas do nervosismo jogadas na vala. e o suor debaixo da barba, no pescoço. ele espera o guincho. observe como o rosto dele é ingênuo: a cara de um homem que vai explodir. ele não é exatamente uma granada. no sangue não corre pólvora. ele não tem fios verde e vermelho que devam ser cortados por peritos do Grupo Tigre. ainda assim se pode afirmar: vai explodir. um ovo que cai da mão da cozinheira explode. e um baiacu fora d´água? uma garrafa de cerveja no congelador. um olho que presenciou decadência demais quer se rasgar em cegueira. o homem vai se estilhaçar. comemorações explodem. a bolha de sabão soprada pelos lábios rosados da menininha também estronda o seu nunca mais. sim, tantas as coisas arrebentam. e sempre serão torpes as mãos de um homem que
Luiz Felipe Leprevost


Minimalismo
o Minimalismo não é um inseto, não é necessário ser nenhum Darwin para saber isso. um Minimalismo geralmente só é bem educado quando do fato de ninguém o notar. os Minimalismos, via de regra, são mais sutis que as galinhas. sim, alguns Minimalismos têm asas, outros não, porém mesmo os que têm asas quase sempre optam por não voar na amplidão da indústria de shows. e é bem comum terem os bicos arrancados logo que nascem
...
a Preguiça

todo mundo sabe que a Preguiça fica pendurada um tempão. todo mundo já notou que a Preguiça não para de sorrir mesmo de saco cheio. também é deveras perceptível que qualquer movimento da Preguiça carrega a Eternidade. e quando a Eternidade chega ao fim, a Preguiça lhe finca aquelas garrinhas doloridas

IDADE DO OURO


Não aprendi nada com a vida.
Troco nomes, troco as pernas.
Me atrapalho com as etiquetas
e é com extrema dificuldade
que troco lâmpadas (portanto,
não vá querer agora que eu conserte esse chuveiro elétrico).
Mas ainda me fascino com as palavras
como se elas fossem coisas, bichos, pedras preciosas.
Ser poeta para mim não é destino
mas simplesmente continuar criança
em meio a uma multidão atarefada.
Não aprendi nada com a vida.
Mas, se você quiser, posso te ensinar
tudo aquilo que eu não sei.

Otto Leopoldo Winck

CORAL


As palavras de amor precisam de eco,
Um nome que se diz é matriz de outro
Se amam os pares, nomeados amantes.
Um nome dito sem par é concha aberta
Perdida no fundo do mar das cobertas,
Alfa triste, signo que não se liga a Beta.
Ao dizer teu nome, quero ouvir de volta
Com flores como escolta, o meu nome,
Do contrário, a palavra da boca se perdeu…
Se um nome aninha-se na palma do peito
Envolto nas sedas fitas de nobres carícias
É ideal que em teu peito, o meu esteja igual.
Se não há no espaço o eco de meu nome,
Todas as vezes que teu nome por mim é dito,
Faço bendito risco reto ao Pronome Pessoal.

Eleonora Marino

ANTIBUDISMO


Que me perdoem
os de bem com a vida
mas para fazer poesia
a dor é fundamental...
É fundamental
uma dor de corno,
uma ressaca brava,
uma angústia kierkegaardiana,
uma vontade súbita de se atirar no mar...
Só a dor transfigura
o asco, o travo, o amargo da boca
em pétala, em cântico, em salmodias...
Se tudo é dor,
e toda a dor vem do desejo,
eu quero todo o desejo que existir neste mundo.

Otto Leopoldo Winck

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

ABSCESSO


Meu coração, coitado,
guardei-o com tanto esmero.
Cuidei que não pegasse friagem,
se alimentasse bem,
voltasse cedo pra casa...
Não adiantou:
foi ele te ver,
desbordou, estourou, incendiou
as nuvens todas do crepúsculo.
Arrasto agora pelas ruas da cidade
este gigantesco abscesso, meu estigma, meu prodígio:
um coração que já não cabe em parte alguma.
Otto Leopoldo Winck


begônias silvestre


o sumiço da sua silhueta amiga
fez meu perfil baixar a cabeça
as cores da tarde, cinzas cinzas
as luzes da noite, negras negras
desaparecer não é pra qualquer um
só você, misto de mistério e dúvida
pode estar em lugar nenhum
e ainda me tocar, por música
Marcos Prado

(1961-1996)
Mania da imaginação em tentar assustar a gente! Ela veio de madrugada, entrou pela porta fechada, com uma risada satânica em brasa. Seu cheiro de enxofre não afastou nem os pernilongos, saí fora coisa ruim ! Sou ateu, não creio em Deus nem no Diabo. Eu lá tenho medo do capeta. Meu Deus! Será que já amanheceu para abrir os olhos e tirar o cobertor da minha cabeça...

Ave Maria cheia de graça... Pai nosso que estais no céu.. 
JD

Crônica do fim do mundo


No caminho havia uma parede. No desvio havia o muro do não. Na montanha uma pedra sagrada intocável que algum profeta deixou há quatro milênios ou mais. No rio uma barragem desaba no inferno. Na pista de dança os vidros pontiagudos no chão. Na piscina alguém polvilhou antraz. No poço do Paraíso um balde de arsênio. Na única árvore do deserto os frutos queimam o interior de quem os devora e corroem e deixam cada um como uma boneca inflada, de pele humana e oca. No jardim noturno as corujas são carnívoras. Na pradaria a grama cheira formol e a terra é o cadáver apodrecido que exala o odor virulento de nossas almas amaldiçoadas. Os beija-flores não querem o néctar das flores do último jardim querem as jugulares e voam eletrizados aos pescoços distraídos com o bico agulha e a sede de mil vampiros. As borboletas cantam e enlouquecem, pois é o desesperado canto de profundezas negras. Não nascem mais crianças e o último violino rebentou suas cordas e está atirado em um sótão sombrio. Apagaram as letras de todos os livros de Poesia e a mente de quem as decorou e não há mais o encanto da palavra para oxigenar o humano. Os livros contam apenas as carnificinas da humanidade e são tantos livros de todas as tragédias que duplicaram o número de bibliotecas. As bibliotecas tem uma aura densa, pois agora elas guardam os atos cruéis, libidinosos, satânicos, escritos por robôs alimentados pela própria História. Uma noite um homem com dons de recuperar memórias sonhou com um poema de Dylan Thomas “Rage, rage against the dying of the light” e enlouqueceu com a beleza do ritmo e das palavras e pela certeza de saber que já caminhava pela noite escura e não dava mais para dar um passo atrás e não penetrar as trevas dos séculos e sentiu raiva dos que entraram – delicadamente – na noite escura... O louco que conseguiu vislumbrar um verso, perfurou os olhos e comeu soda cáustica com batatas fritas e brindou com uma água bege que sobrou do envenenamento das nascentes e, ao vislumbrar um lugar possível, de lírios e alfazemas, perfume de manhãs, cascatas, cerrou os olhos docemente como um pássaro que bate, pela primeira vez, as asas.


Bárbara Lia _ 2015
Em minha última temporada de verão em Guaratuba eu era um mendigo velho desses que dormem próximos das pedras, dentro dos barcos fora de uso. todos me consideravam grotesco. minha aparência sugeria isso. mas minha fala era calma e preenchida de sabedoria. dois olhos não devem saber enxergar mais que o nariz. só voltava a falar quando estava novamente sozinho. nem sequer precisa mandar que fossem embora, ninguém aguentava ficar perto de mim mais do que alguns segundos. eu via o creme dos sorvetes jogados na areia se desmancharem. tinha muito tempo que caminhava pelos bairros perto da baía e era sempre como se eu tateasse sua decadência com o olfato. o vento que vinha do sul era o atirador, meus poros recebiam golpes que penetravam e corriam dentro. talvez na temporada anterior àquela tivesse sido uma espécie de criminoso, um brutamontes que sentia errado e demais. alguém em quem todos os sentidos foram nalgum momento lama e suplício. em temporadas ainda mais remotas, não sei, o inchaço de meu fígado devia ter desejado muito mais que rezas, cocaína ou a lua equilibrada feito um comprimido na ponta da língua. quem sabe ainda apenas costurar a tristeza assim como os médicos costuram barrigas esfaqueadas nas emergências dos hospitais públicos. quem sabe o odor das flores eram somente fóssil no rochedo dos pulmões. eu tinha sido um maníaco comedor de cigarros. a vida era desse jeito, flores lavadas com trezentos e quarenta doses de pinga por semana do lado de fora dos bares abarrotados, na rua da amargura, na pracinha central da desesperança. além dessas, devo ter vivido ainda noutra espectral época anterior, bem antes de eu vir a me transformar nesse velho fedendo a suor e urina, nem sei se exatamente como um mendigo em minha última temporada de verão
Luiz Felipe Leprevost


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Guilherme Gontijo Flores

Juiz: Qual é a sua profissão?

Brodsky: Escrevo poemas. Faço traduções. Suponho...

J.: Guarde as suposições para o senhor! Porte-se de modo adequado! Não fique em cima do muro! Olhe para o tribunal! Responda de modo conveniente a uma corte! (para mim) Para imediatamente de fazer notas, ou expulsarei a senhora daqui! (Para Brodsky). O senhor tem um trabalho regular?

B.: Eu pensei que se tratasse de um trabalho regular.

J.: Responda a questão!

B.: Escrevo poemas. Pensava que seriam publicados. Suponho...

J.: Não nos interessam as suas suposições. Responda à questão: por que o senhor não trabalhava?

B.: Eu trabalhava. Escrevia poemas.
[...]

J.: De modo geral, qual é a sua especialidade?

B.: Eu sou poeta. Poeta-tradutor.

J.: Quem decidiu que o senhor era poeta? Quem o classificou entre os poetas?

B.: Ninguém. (Sem qualquer desafio) E quem me classificou no gênero humano?

J.: E o senhor estudou com tal objetivo?

B.: Qual objetivo?

J.: De se tornar poeta. Não tentou fazer os estudos superiores para se preparar... para aprender...


B.: Eu não pensava que seria possível aprender isso.

NAS NUVENS


-Vem cá na janela!
-Fala vozinha..
-Vem rápido, Bruninho! Estou vendo um elefante branco.
- Onde, onde, vó?
-Lá em cima, no céu!
-...
-Ele está andando , que maravilha! Está se transformando em uma girafa branca, agora num...
-Verdade,agora estou vendo, também tem outros animais, olha lá aquele jacaré flutuando no ar. A senhora está melhor? Tomou o remédio? Esse vento pode fazer mal. Bença vozinha, estou atrasado pra ir na escola.
-Deus te abençoe, meu querido...
-Bruno, você não tem que dar aula hoje? Que faz tanto tempo parado na janela, amor?
-Tenho sim, já estou indo, minha amada! Só estava mostrando pro nenê o céu e o elefante branco brincando com a vovó!

JDamasio
"Só os amores verdadeiros se acabam" (Jamil Snege)

Epitáfio


Folha de plátano
baila ao sol
Acha crepitante
desaba no solo triste
Epitáfio da folha:
Não desapareço
feito espuma nas ondas
Regenero o solo
com ternura feroz
Para colorir azaleias,
gardênias e girassóis

Bárbara Lia
vivo a espalhar cacos de mim
deus a recolher com cuidado
como quem recolhe pedaços
de uma estrela sem bússola
perdida de sua constelação
vivo a rasgar pedaços de mim
ao ritmo da gargalhada do pai
que tatuou em minhas costelas
aquele verso de Vicente de Carvalho
a eterna dúvida sobre a felicidade...
"Existe, sim: mas nós não a alcançamos"

Bárbara Lia


Respirar (2014)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

DEPOIMENTO DO POETA E TRADUTOR GUILHERME GONTIJO FLORES

vivo a espalhar cacos de mim
deus a recolher com cuidado
como quem recolhe pedaços
de uma estrela sem bússola
perdida de sua constelação
vivo a rasgar pedaços de mim
ao ritmo da gargalhada do pai
que tatuou em minhas costelas
aquele verso de Vicente de Carvalho
a eterna dúvida sobre a felicidade...
"Existe, sim: mas nós não a alcançamos"
Bárbara Lia

Respirar (2014)
e eu aqui, ocupada com essa
poeira besta, o mijo de cachorro
na sala, a garrafa verde que o gato
acrobata estilhaçou no chão
e o arroz, o arroz, o arroz!
esse grão cotidiano
que disfarcei com açafrão e
por pouco não deixei queimar.

[em meio às leituras, teorias, exegeses
eu, esse outro, essa outra,
somos o nada]


*Vássia Silveira

ESCRITURAS



a vida não tem sentido
tem sentidos
que mudam a cada momento
com o vento

ontem por exemplo
eu queria ser um grande escritor
hoje já me basta
escrever meu nome
na tua alma
a ferro
a fogo
a fio
como um grande amador


Otto Leopoldo Winck

ESCRITURAS - II


Com um canivete
escrevo teu nome
na minha epiderme.
E descubro, rubro:
meu Deus, como sangram
a escritura e o amor!

Otto Leopoldo Winck

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Falecimento de Ruben Esmanhotto


Neste dia onze de janeiro
Curitiba ficou no breu
Pois de um jeito traiçoeiro
Ruben Esmanhotto faleceu

Um ônibus sem freios bateu
Em sua moto em plena rua
Assim tudo se escureceu
Tirando o brilho da Lua

Ele pintava casas coloniais
E sonhos de outros astrais

Sua esperança era um pincel
Que tirava tudo o que era cruel
Agora, Ruben Smanhotto está no céu

Onde as nuvens formam sua melhor tela
Pois, agora, ele tem a moldura mais singela
Com certeza o artista Rubem Smanhotto
Foi um homem com alma inocente de garoto.

Luciana do Rocio Mallon

Almanárquico

avoengo
a mão do avô
escolhe as cebolas
no supermercado
a voz do avô
repente enverba
em couro de provérbio
o avô havido
refuga transitar
em sépia no retrato
escapa a galope
aprumado na sela
|quem vai na garupa
não mexe na rédea|
a cidade não cessa
o avô quer voltar
no cavalo de sombra
resgatar seu lugar
e não há mais
e sim um
eu

Luiz Roberto Guedes, Almanárquico, Coleção Leve Um Livro, Fundação Municipal de Belo Horizonte, 2015).

Borboleta da Poesia Espetada no Quadro do Destino



A borboleta da suave poesia
Voava pelo misterioso jardim
Suas asas batiam com maestria
Num magistral vôo sem fim!

Porém num dia cinzento
Surgiu um brabo caçador
Mal humorado e rabugento
Que pegou a borboleta com dor

Com a rede da realidade
Ele roubou esta borboleta
Somente por maldade
De sua alma xereta!

Com uma injeção de amônia
Ele feriu a borboleta da poesia
Em nome da realidade demônia
Ele brindou à depressiva agonia!

Ele espetou a borboleta colorida
No quadro do travesso destino
Fazendo da estrofe uma ferida
No seu próprio desatino!

Mas a borboleta tornou-se eterna
Com suas asas feitas de versos
E suas rimas doces e fraternas
Que não morrem em alfinetes perversos.

Luciana do Rocio Mallon

domingo, 11 de janeiro de 2015


Ah, a minha, a tua, a nossa São Francisco!
Como frequentadora que sou da rua há mais de três décadas, tenho a declarar que o espaço nunca esteve tão saudável, tão cosmopolita, tão feliz!
Despreparo à felicidade talvez seja o diagnostico à ação ocorrida ali.
Policia para quem precisa de policia, não para quem se ocupa em sanar seu entorno pelo simples ato de cidadania.
Onde frequento, com meu neto e amigos, não precisa de ações com balas de borracha e truculência gratuita.
Mais respeito!


Lina faria 
uns lençóis baratos recobrem meu silêncio.
um ananás do passado mostra a lucidez do meu corpo.
não vim ser anjo,
vim ser estardalhaço!"

RR

BEBE SEM PRESSA


Bebe sem pressa o teu vinho.
Estenda a mão e colhe o que te é dado:
um naco de pão, o último raio do sol, a mulher ao teu lado.
Em breve será noite e não mais terás olhos para ver
nem mãos para palpar. Recolhe, portanto, no aprisco te tua choupana,
o pequeno rebanho que tu não mais tosarás (outro o fará).
Guarda o teu cajado e a flauta de pã
que ninguém mais ouvirá na colina.
Senta-te à janela e, se quiseres, chora,
pois ninguém te devolverá a mocidade morta.
Os dias de ser feliz já estão longe
e tu os desperdiçaste. Contempla o céu
onde morre o sol e de onde virá a noite
que te ignora. Depois deita com a mulher ao teu lado
e a ama pela última vez. Mas não faças nenhuma oração.
Nenhuma. Os deuses não a ouvirão.

Otto Leopoldo Winck

sábado, 10 de janeiro de 2015

CONGESTIONAMENTOS


(LF Leprevost)

andarilhos bicicletas
automóveis a mil por hora
caminhões com carga viva
vem vão
placas de contramão
cartas de habilitação e
congestionamentos
todos os congestionamentos
os congestionamentos
vão virar um único
estacionamento
acostamentos e pedágios
chapeludos e seus tratores
plantações na terra roxa
vem vão
sem pressa no coração
volto pro meu Nortão, mas
congestionamentos
todos os congestionamentos
os congestionamentos
vão virar um único

estacionamento
Lina Faria

Tiros na São Francisco?
Puxa, que triste.
Sem romantismo, é claro que existe resistência ao novo, à alegria até, existe resistência.
Claro que o grupo dos não felizes existem e estão de plantão.
Que os traficantes que permeiam o entorno existem e têm que ser punidos,
Não é o barulho alegre da São Xico que incomoda a vizinhança.
È a incapacidade de ser feliz, mesmo.
E esse ruído interno só se agrava, quando desafiado pelo prazer.
Triste!

Os Curitibanos e a Liberdade de Expressão


- Zequinha, estes dias eu fui atravessar a Travessa da Lapa, no Centro de Curitiba,  e um expressão vermelho me atropelou.
- O expressão estava certo!
- Por que?
- Ele só estava exercendo a tão famosa liberdade de expressão, onde é possível atropelar o outro, sem freios, em nome do próprio acelerador.

( Descobertas da Tia Lu )


Luciana Do Rocio Mallon

OCUPADO


-Por favor! Você pode me dar atenção?
- Agora, não! Estou ocupado!
- Mas é muito importante!
- Não me perturbe! Já falei, é final de tarde, não posso! Estou me ocupando na partida do sol e em ouvir a festa dos passarinhos com a chuva que vai cair!
JDamasio

NOTURNO PARA MAYSA


Esta ausência não te cala
somente migra a canção:
como a brisa adormecida
entre pétalas de mágoas
da nascente dos sorrisos
num paraíso de lágrimas.
Tua ausência não se cala
somente migra a paixão:
é a luz brilhando deitada
feito sombra despertada
aguardando a esperança
com saudade da canção.
Tua ausência não se cala
como as páginas viradas
das histórias esquecidas
tal meu coração me diz:
toda ausência só se cala
se o amor for mais feliz.

Afonso Estebanez


(Para Maysa Uma Paixão)

HINO AO HUMORISTA

Claudio Daniel


Funambulesco;
cospe-às-frinchas;
escorço ao revés —
negror de escárnio;
borra-de-tranca-rua;
resvala-nádegas;
refugo, rebotalho;
regurgita lúmpen
parvoíce intermitente
em voz de batráquio;
símile de bonifrate:
baboso, linguarudo;
engole uma, duas,
três, quatro, cinco,
seis moscas e mergulha
atoleimado no atoleiro.


2014

Mão Boba


-Minha menina, você anda tão sedutora, nossa! Essa blusa vermelha lhe deixa sensual, o decote está...!
-Tire essa mão boba daí! Daqui a pouco, os netos chegam da escola e pegam a gente! Vai arrumar o que fazer, tem a goteira da torneira do banheiro, a grama pra cortar... mas depois da novela... você podia levar aquele vinho pro quarto... Não esqueça as taças, meu menino levado!
JDamasio

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O Chocolate Vai Acabar



Ontem deu no Jornal Nacional
Uma triste e trágica notícia
Que me fez passar muito mal
Com sinceridade e sem malícia

O locutor, tão sério, falou pelo ar
Que o chocolate pode acabar!
Mas o bom-bom é o único alimento
Que retribui o meu sentimento!

Agora eu rezo ao deus Quetzcoalt
Para que não falte nenhum cacau
Pois num lindo dia de primavera
Ele lançou suas sementes na Terra!

Sempre me faltou o amor de um companheiro
Porém, para isto, realmente nunca liguei
O que não pode faltar é um chocolate verdadeiro
Que do meu coração, é um nobre rei!

Até a Britney Spears com todo o nexo
Disse que chocolate é melhor que sexo
Reza a lenda que a culpa deste tormento
É do perigoso e cruel desmatamento

Estão matando as surucucus para o mal
Porque elas são predadoras dos roedores
Que alimentam-se do valioso cacau
Causando, deste jeito, muitas dores!

Ontem a notícia anunciou ao ar
Que o chocolate pode acabar.

Luciana do Rocio Mallon

Pau de Selfie

Na terra, no ar ou até no mar!         

Comigo, seu braço estendido
Nunca aparece na fotografia
Seu retrato não fica oprimido
Pois é a mais pura harmonia!

Um dia, neste mundo sem lei
Eu, simplesmente, me apaixonei
Numa magnífica tarde de Sol
Por uma vara de pescaria
Que usou a mais linda poesia
Como um prateado anzol
Que me hipnotizou com maestria

Agora tiro fotos de uma lagoa
Onde vivo uma paixão boa
Com minha vara de pescar
Que, ás vezes, vira outro pau de selfie
Em noites mágicas de luar
No ritmo do balanço do reggae.

Luciana do Rocio Mallon
Escrever é pôr um pouco de método na loucura.
 [olw]

ANANDAIÊ


© Cláudio B. Carlos

Havia um bolo sobre a mesa. Redondo e pequeno. Eles cantaram parabéns e eu soprei as velinhas. Mamãe cortou o bolo. A primeira fatia pra mim, a segunda pro papai e a terceira e última pra ela. Papai comeu de pé, escorado na parede de madeira, ao lado da cristaleira, e bebeu cerveja. Mamãe comeu à mesa comigo e tomamos guaraná. Depois eles foram pro quarto e trancaram a porta. Acho que sentiam dor. Gemiam. A dor devia ser muito forte. Se contorciam na cama. Dava pra escutar o ranger das molas do colchão. Eu fiquei sentada olhando pro bolo com as mãos como que em oração, postas no regaço do vestidinho florido. Havia cinco velinhas no bolo. Era março de 1977.


Do livro “Um arado rasgando a carne” – 3ª edição, 2012.
Escrever é inventar uma ordem -- ainda que aleatória -- para o caos do mundo.
OLW
Bárbara Lia


O Islã não tem nada a ver com isto. Preocupa esta retaliação contra árabes. Nem todo árabe é muçulmano. A maioria esmagadora dos muçulmanos prima pela paz, e não aprova extremistas. Existem estas células que radicalizam e vestem o nome de Alah... As religiões são a chaga do mundo, em nome delas alguns se acham no direito de legislar em nome de Deus. Pudesse implodia todas as instituições... Os profetas não imaginavam que sua fala moveria o mundo milênios depois, e Maomé, o último profeta, que re-ligou tudo que é sagrado e exaltou os profetas anteriores e atou ao seu reverenciar os profetas que os judeus amam, e à mãe de Cristo... Este é o menos compreendido, seu legado usurpado por radicais... Que não unam estas barbáries a qualquer árabe do mundo, aos muçulmanos que não são responsáveis por mentes extremistas nadando em ódio... Jovens em buscas de um lugar no mundo recrutados por milicias religiosas, esta é a via a ser trilhada, clarear o caminho da juventude, pois estes homens partem para missões em nome de algo que eles nem conhecem, que seus olhos e alma acolheram de mentes que deturparam a essência... Momento delicado este. Preocupa estes ataques contra mesquitas e muçulmanos, e penso em Gandhi: Olho por olho e o mundo acabará cego.

L’AMOR CHE MOVE IL SOLE E L’ALTRE STELLE


Teus olhos me iniciaram no espanto de viver:
fiquei perplexo quando descobri que não havia limites para o encantamento.
Ao caminhar pela praia,
debaixo da última lua da história,
eu compreendi que o beijo
é o pacto que une céus & terra & oceanos & povos & raças & línguas.
Teus pés me indicaram um novo caminho
enquanto teus dedos apontavam as estrelas do céu e os grãos de areia da praia do mar.
Podemos contá-las?
Fundaremos uma nova civilização?
Morreremos na última guerra?
As perguntas são tantas
que a única resposta é o amor.
Mas o momento supremo
foi quando dois seios me revelaram
que todos os poemas do mundo
cabem na palma de uma mão.


Otto Leopoldo Winck
Alexandre França

O que nos dá a impressão de alma é o movimento
e a singularidade de sua continuação.
não importa se ele vem de uma inteligência artificial
ou de corpos injetados de sangue.
portanto dane-se o que se passa na cabeça de quem dança, por exemplo,
temos apenas a superfície ao alcance das mãos.
(a bailarina pode estar pensando na morte da bezerra e dançando
a sagração da primavera - tanto melhor para a bailarina, dependendo do caso:
isto poderá tornar o seu trabalho ainda mais leve e despoluído)
Valery estava certo "o mais profundo é a pele"
e o som da palavra "alma" é, sem dúvida,

mais belo do que os seus muitos significados.
Bárbara Lia


Em um tempo em que o mundo vive convulsionado e rude, é preciso que alguma beleza rara, que não brilha mais em parte alguma, nasça... Renasça. Quero crer que algum dia, em algum lugar, homens e mulheres experimentaram o absurdo êxtase da dádiva humana... Ou não? Conexão com infinita paz, alegria de pisar chão molhado, odor de flores selvagens e o Amor. Esta matéria misteriosa, ignorada, confundida... Pensar em uma possível paz em algum lugar, para cobrir Paris em dor, minha cidade de tiroteios rumo a uma galopante aura de insegurança, São Paulo alagada, aviões submersos, a Poesia quase impossível de retirar meio a detritos... tudo traz esta insana vontade de crer em Paraísos, não em paraísos além, mas, aqui, onde reconheço o céu - na grama molhada, na memória abismada de um platônico amor, no olhar da criança mais amada, na paz que há em cada amanhecer...

SOLA GRATIA


De repente,
no meio da praça,
uma pontada
no peito
e um passo em falso
me lembram
que tudo passa.
Tudo.
Inclusive a graça
que esta manhã,
num relance,
eu contemplei
nos teus olhos.

Otto Leopoldo Winck

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Por que recordar as flores
da extinta primavera
quando o verão que escaldeia
já amadurece os frutos
que, não colhidos a tempo,
apodrecerão em breve?

[olw]

VENTO E CINZA


O que com custo se apreende
se desaprende facilmente,
e do mesmo modo é vão
o que com muito sacrifício
se decora, pois sem demora
na vã memória se descora
(a vitória de anteontem
amanhã nem será história:
tombam-se os heróis e a sua glória
com o tempo em fumo se transforma).

Otto Leopoldo Winck
"Vento que é vento
não inventa
simplesmente venta
viver bem todo mundo quer
Todo mundo tenta
feliz daquele que puder
olhar para trás
e rever as maravilhas
dos seus melhores
momentos
em câmara lenta"

Antonio Thadeu Wojciechowski

Credo


Acredito
logo insisto.
Creio
por isso existo.
...
Cada qual crê
na sua autêntica existência
(como se fosse evidência).
Enquanto isso é preciso provar
que estamos aí...
E vamos lá!

MARCELLINO, Walmor. Todas as forças cintilantes. Curitiba: Ed. do Autor, 2006.

ADIVINHA - II


o que é o que é:
está do outro lado do verso
e não é prosa
está do outro lado do conto
e não é ponto
está do outro lado da linha
e não é rima?
não é nada não
é só minha vontade
de estar aí e dizer
bateu uma puta saudade

[olw]

● cansamos da antiga caverna ●
● com aquelas fogueiras cansativas ●
● aqueles escravos alimentando o fogo ●

● aquelas pedras negras e sujas ●
● aquelas goteiras aqueles morcegos ●
● o frio o cheiro de queimado a treva ●
2
● cansamos de tudo aquilo ●
● mandamos nossos escravos cobrirem ●
● com espelhos as paredes da caverna ●
● espelhos de todos os tipos ●
● jogar fora a madeira o carvão a cinza ●
● acendendo luzes em todos os lugares ●
3
● so não tocamos nos escravos ●
● q continuam como sempre rindo ●
● muitas vezes dançando e cantando ●
● como se fossemos seus deuses ●
● como se a vida fosse assim mesmo ●
● como se a escravidão fosse boa ●
4
● agora nossa caverna é um paraiso ●
● tem agua corrente tem quartos e salas ●
● tem cozinhas banheiros e lixeiras ●
● da antiga caverna nem o chão ●
● agora vivemos inteiros na verdade ●
● sabendo q essa é a unica verdade ●
5
● dificil so todos esses espelhos ●
● q multiplicam variam e deformam ●
● tornando tudo nitido claro demais ●
● os rostos os corpos os desejos ●
● as dores se multiplicam a fome ●
● se tornou insuportavel e sem fim ●
6
● o gozo dilacera arranca pedaços ●
● cada prazer é um abismo um talho ●
● de lamina de fio afiado demais ●
● os escravos riem dançam gargalham ●
● trotam pela caverna com desdem mas ●
● continuam a cantar e a cuidar de nos ●
7
● tudo foi se tornando infinito ●
● com tantos espelhos tantos escravos ●
● tantas salas tantos quartos e dores ●
● tamos assim paralisados no centro ●
● da caverna tamos paralisados no centro ●
● no centro da caverna como sempre ●

Alberto lins caldas 

ADVINHA


o que é o que é:
está do outro lado do mundo
e não é céu
está do outro lado da vida
e não é breu
está do outro lado de tudo
e não é nada?
vai ver é Deus
que mal se foi
e se voltou
foi pra dizer adeus

[olw]

FESTA DE ANIVERSÁRIO


Era uma criança! Pelas frestas da janela seus olhos arregalados corriam pela rua para contar os poucos carros, três, estacionados para comemorar seu aniversário, noventa aninhos, e vê-la com dificuldade apagar as velinhas sobre o bolo. Meses depois, uma fila de carros dobrava a esquina. Olhos fechados. As duas velas acesas à cabeceira do caixão apagavam insistentemente, sopradas pelo vento..

JDamasio
"Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito." Nietzsche
Se queres ser escritor, escreve com o teu sangue – e não com essa tinta aguada com que se enchem inutilmente tantos livros. Escreve com o teu sangue, com a tua alma, com o teu fígado, com as tuas vísceras. Não te preocupes com que os outros vão dizer, com o mercado, com a glória, com a posteridade. Escreve como se te fosse impossível não fazê-lo. Escreve como um ato de fé, um gesto de vingança, um grito de escárnio: contra o mundo, contra o tempo, contra tudo. Só é escritor aquele que escreve como quem corta os pulsos, aquele que escreve como quem sabe que é Deus, aquele que se lança no jogo de sua própria escritura e, neste salto, constrói ou tenta construir o sentido que a tudo escapa. Se queres ser escritor, portanto, escreve como quem fecunda um corpo novo, como quem funda uma nova linhagem e inventa um novo código de significações. Se queres ser escritor, ama o silêncio, cultiva a solidão e, vez ou outra, algumas doses de angústia com limão e gelo. Não é das festas e dos salões que nascem os grandes livros. Os grandes livros nascem de um profundo sentimento de incompatibilidade com o mundo, de uma revolta surda diante do absurdo, de um adentrar-se constante no vazio de si. O escritor é sempre aquele deslocado, que chegou cedo ou tarde demais, aquele que falhou em tudo, mesmo quando bem sucedido. Aquele que se afasta da multidão e, quando vão procurá-lo, está na sacada, contemplando a lua. Se queres ser um escritor, amigo, o tinteiro será o teu coração e tudo que vieres a escrever terá a coloração, a textura e o adocicado sabor do sangue.

Otto Leopoldo Winck
Queima, fogos e luzes
Nem praia, nem vila
Ao longe, barulho de fogos
anunciam que mais um janeiro me alcança
Meus cães se refugiam em minhas pernas,
cavalos relincham,
há gritos de outros bichos.
Só as galinhas dormem tranquilas.
Bebo um frisante suave moscato
para não perder o costume
e sorrio maleficamente
pensando no sucesso
do fogo no balão e
na queima completa (ou quase)
das vespas
qua ameaçavam o galinheiro.
Um chuvisco e nuvens
não deixam as estrelas se mostrarem.
Porém a luminosidade delas
foram substituídas por dezenas
de vagalumes
anunciando à bicharada e a mim
que hoje é uma noite de verão!
Feliz 2015 a todos
seres animados e inanimados!!!
Amo-vos e sou grata!

Deisi perin 

O RÁDIO E AS XÍCARAS


Eu e o fogo das constelações extintas há milênios
andamos entre o rádio e as xícaras do dia findo.
Dentro de mim, depois de tantas mortes,
o rádio adormece sob as águas do aquário.
Enquanto o fogo das constelações extintas há milênios
escuta bolero no rádio,
eu, para que a lâmina da morte me esqueça,
sorvo água de sereno das xícaras.
Dentro de mim, com a simplicidade silenciosa do wabi,
escuto, não o som, mas a imagem que tenho do som:
escuto, não a pedra, mas o nome mental da pedra.
Não há nada de rádio no som da palavra rádio,
não há nada de águas no som da palavra águas
não há nada de aquário no som da palavra aquário:
o rádio acorda sob as águas do aquário.


Texto de Fernando José Karl

domingo, 4 de janeiro de 2015


TREM

Adriana Sydor

minhas malas estão prontas
sei que não voltarei mais
nunca mais.
arrumei tudo,
shampoo, escova e tamanco
aquele vestido de borboletas
e a bolsa azul.
etiquetei a bagagem
meu nome, meu sangue
toda minha história e dois cadeados
três cartas de lembrança
e o velho anel.
pesam muito minhas malas
a vida inteira ali dentro
mais a saia reta e o scarpin marrom
dois amuletos,
a fotografia dos meus pais
e as anotações para o futuro.
não voltarei mais
nunca mais
e levo na bagagem a certeza
da vida que passou
a camisa de gola rolê
os cartões para colocar no correio
e todas as esperanças.
embarcarei no trem das oito
as duas malas prontas
a vida inacabada
e a certeza que não voltarei
não me falta nada
carrego o creme para as mãos,
a calça de botões dourados
e o crucifixo no pescoço.
na partida, nada ficará de mim
não haverá traço, marca ou memória.
passagem nas mãos
os documentos guardados
a coleção de lenços,
o casaco de frio, a imagem do santo
e a certeza que não voltarei mais.
voarei livre e leve
como se não tivesse comigo
as partituras da nossa música
a camisa verde de chiffon
e a maquiagem provisória.
levo tudo comigo
as malas cheias de vestidos
papeis antigos
e um biscoito para o caminho
e a certeza que não voltarei

que não voltarei nunca mais.

REFLEXOS


No betume
do céu
– vaga, vaga, vaga –
luz uma estrela
sozinha.
(Em torno a mim,
na noite alta,
recende
um perfume
de jasmim.)
No negrume
do pasto
– vago, vago, vago –
luz um coleóptero
sozinho.
(Em torno a mim,
no mato alto,
trescala
um forte cheiro
de estrume.)
Assim é a vida,
quiçá a poesia:
um vagalume
que, no breu da terra,
reflete
um vago lume
no negror do céu.
(Tudo isso
em meio ao odor
de estrume
e jasmim.)

Otto Leopoldo Winck

ISTMO - I


Entre o dito
e o interdito,
o mito.
Entre o grito
e o rito,
o ricto.
(Bendito
o caminho
restrito
do homem.)
Omito o nome?
Ótimo
limite:
o muito
não é
o bastante.

Otto Leopoldo Winck

amo janeiro, a cidade desocupada, as ruas vazias, o silêncio... é comum iniciar um livro em janeiro, ou revisar poemas antigos inacabados, como quem reencontra o amor mais lindo em uma esquina da memória - engavetado - beber a beleza cristalina de olhos grandes, sorriso inacreditável... poemas são amados aos quais a gente volta e fica feliz, como quem recupera um encanto por belezas nunca propaladas... janeiro é incrível, é como se fosse concedido a quem escreve a hora ideal, aquela parada para recomeçar...

entre ossos e catedrais
na relva da casa clara
vento evaporado - ópio metafísico
bailava narinas da menina
na relva da casa clara
cheiro da grama cauterizava
primeiros rasgos da alma virgem
hoje o escuro vento obscuro
arrasta-me ao inferno
entre ossos e catedrais


Bárbara Lia

VIUVEZ


Assim como eu colho a água
deste tanque de pedra
com minhas mãos em concha,
e o que me sobra dela,
no exato instante em que,
súbito, as ergo em pânico
ante um pressentimento,
uma recordação,
(teu rosto? tua voz?
o cheiro do teu corpo?),
são somente estas palmas
trêmulas e banhadas;
assim, de nossa história,
dos risos, beijos, gestos,
dádivas generosas
de um tempo já distante,
o que fica é a memória
– lápide, urna mortuária –
que secará um dia
como secou você.

Otto Leopoldo Winck
Nossos pés sabem mais longe...Deve ser a vigésima vez que me acontece algo inusitado, quando permito que meus pés guiem e programem meu caminho, assim, totalmente sem comando, livres, soltos e alegres, sem hora para voltar. Nesta ocasião, na praia de Itapoá, meus pés me levaram até o Mercado Barrão, despropositadamente, mesmo porque nem levei dinheiro para comprar algo. É ali que descobri uma mina de bons livros para empréstimo para os leitores da hora, digo, da melhor hora, porque praia e leitura combinam muito bem.

Glória kirinus 

DESACORDE


Acordo em total desacordo
comigo, de acordo
com o ricto sutil no espelho
e o desacorde dos dias.
– Bom dia – saúdo o vizinho,
sabendo que o dia é avaro
e o bem é restrito.
Na valise que arrasto nas ruas
há um deságio de sonhos
e esperanças vencidas.
Acordo em total desacordo
comigo. Mas de acordo
com todos. – Bom dia – responde
o imbecil do vizinho.

Otto Leopoldo Winck
a um passo da eternidade...
amar é sempre um nó
amar um amigo
é um nó de marinheiro
amar é sempre uma viagem
barco bêbado alma boêmia
na última onda
simplesmente me abrace
até à eternidade

Bárbara Lia

IMPERMANÊNCIA


A minha palavra
– lábil tatuagem
na pele do tempo –
pede licença
para permanecer
por um instante
e depois,
suavemente,
desaparecer,
sem deixar marca
ou cicatriz
– como no corpo
o trigo do verão.

Otto Leopoldo Winck

sábado, 3 de janeiro de 2015

Margarida Faro

Estou a pensar que está na hora de sair de aqui, largar as cusquices, comer qualquer coisa e sentar-me a ver as minhas séries de televisão, todas repetidas, claro - episódios bastante baralhados no que tocam as temporadas, porque isto é como ter uns papelinhos com números dentro de um chapéu e ir tirando ao calhas.
Igual a todo o consumidor, sujeito-me (de facto, obrigam-me) ao pagamento de uma prestação, não tão baixa quanto isso, por programas velhos relhos, mais do que vistos e revistos, porém, com dinheiro novo todos os meses. A situação encanita-me um grandessíssimo bocado. Ainda não encontrei substituto para o serviço de modo que pago. Mas, bufo quanto posso!

Até amanhã. Durmam bem.

LOUCO DE LUZ


Que o sol tirasse sal da face doce
E o céu em semi-círculos se mostrasse
Que a noite de seu ser se repetisse
E os astros de seu sonho orientassem.
Um dia a grande graça aparecesse
Da pedra, um fino fio lhe acontecesse
E o brilho breve quase lhe cegasse.


Altair de Oliveira - In- O Lento Alento

papa.pão
bicho pega
leva lixo
carneirinho, carneirão.
penso no bicho inocente,
afago o bicho-papão.
lixo pega
leva bicho
camburinho camburão.
sou mais um bicho que pensa

no bicho que pensa em vão.

Madhu Maretiore

PARTILHA


O mundo é belo demais para um só homem
Olhem comigo o dia que nos coube, tomem,
me deixem repartir tanta luz derramada,
que se eu ficar sozinho, eu vou ficar sem nada.


Paulo Hecker Filho

Poesia Reunida de Paulo Hecker Filho, organizado pelo poeta  Alexandre Brito e pelo poeta Celso Gutfreind.

ISTMO - II


Entre o fato
e o boato,
o lapso.
Entre o medo
e o enlevo,
o enredo.
(Maldito
o caminho
estreito
do homem.)
Que faço da fome?
Péssimo
sinete:
o pouco
não é
o começo.

Otto Leopoldo Winck

Por que te Vás?


Luiz Felipe Leprevost

pode que seja coisa muito minha isso de falhar à beira do precipício e fazer novamente todo o percurso de retorno, muitas vezes me arrastando mas até com um certo orgulho, ao lugar supostamente seguro de onde parti. "supostamente" é a palavra exata porque, além de nunca ser possível voltar àquele mesmo lugar de antes, chegando ao outro lado sempre também há um precipício lá, digo, aqui

NUDEZ


Espelho, espelhas-me – fatalmente.
E diante dos meus olhos eu não minto.
E nem ouso sorrir. Apenas olho-te
refletir-me em silêncio: exato, cruel.
Por quê? – pergunto. E meu rosto crispa-se.
Espelho, espelhas-me. E o dia espalha-se
fatal
e rotineiro.
Olho-me nos olhos. E agora sem pavor
abro a torneira e lavo o rosto.
Não sou parecido comigo – pondero
enquanto faço a barba. Como vão me reconhecer?
Pela janela entra o gume arguto da manhã,
o rugido realista do tráfego.
Agora está tudo claro, claríssimo:
– não me conheço.
Otto Leopoldo Winck



BALADA DE ANO NOVO

Luiz Felipe Leprevost


é de tarde e os pássaros são os únicos que abalam o silêncio aqui em Santa Felicidade. às vezes o motor de uma moto ao longe. mais ao fundo ainda alguns poucos fogos no ar. na sala badala o relógio na parede.

tudo começa com a vontade de escrever um poema, com ter que escrever quando eu deveria ir com os preparativos para hoje a noite

é o último dia do ano e eu sei que vou abraçar meus pais mais o filho do meu irmão e a sua mãe que estará conosco hoje a noite. para isso, não preciso me preparar, dar e receber abraços é algo que sabemos desde sempre

entendo a mitologia das cores e devo ir à festa de camisa rosa, a mais romântica delas. embora eu saiba que vou me sentir gordo, meio palerma e fora de ambiente para as fotografias

sem contar o tormento do verso da canção do Djavan, que tem anos insiste em grudar na minha mente sempre que o festejo se aproxima. é um verso que me parece estar entre o risível e o bonito. risível pela afetação. bonito pelo inesperado, pelo surpreendente da imagem. eis: quando o grito do prazer açoitar o ar, reveillon

açoitar o ar. quer saber, eu trocaria todo o barulho, a euforia dos fogos e o espocar das champanhes por algumas horas de paz dormindo encaixado em você, saciado, assistindo você dormir como se não fosse um mundo cheio de injustiça, solidão e desespero o que está lá fora. mas juntos provaríamos o contrário. e assim, sem palavras, falaríamos sobre o entendimento humano.

o tempo cura ou não cura as feridas? é em nossa corrente sanguínea que o tempo se renova. gosto de saber do sol que o meu rosto já foi para algumas pessoas. gosto de ter notícias da sinceridade terna que vez por outra enxergam em meus olhos

de todos que já acreditei ser não sei bem com qual dos Luiz Felipe termino este ano. mas sei com qual deles começo, começo sem começar, é verdade, porque a coisa toda só continua, não tem nada disso de zerar, tudo é um fluxo e ninguém deixa de ser o que é de um dia para o outro. o que tem de bonito nesta data é mais uma das invenções dos homens, que organizaram o tempo em meses e anos para ter onde se segurar. tem a ver, imagino, com um tipo de organização da vontade. tem a ver com crença. tem a ver com invenção, que talvez esteja entre o que temos de melhor nessa fodida vida. por isso afirmo que começo com aquele que acredita. com o que acredita. pois a esperança ainda tem de ter o tamanho dos meus amigos. a esperança ainda tem de ter o tamanho da minha família. o tamanho do meu amor. bom, por que ter medo desses lugares comuns se eles ajudam a viver e, apesar deles, haverá ainda muito mistério, muita surpresa, muita mudança, muitos passos no escuro pela frente. querer eu quero ser especial, mas sou como toda a gente que vive neste planeta, falível, imperfeito e cheio de planos. querendo acreditar e me movimentando para que daqui em diante as coisas todas sejam melhores

de qualquer maneira, são os 15 primeiros anos deste século percorridos. é o século debutando. um adolescente é este século. estejamos, pois, abertos para tudo


daqui algumas horas chegará o momento de algo novo nascer? tomara. hora de o mar levar oferendas de quem ousar molhar os pés. hora de ferir o céu com nossa alegria que explode. e se por ventura existir algum deus no céu dos céus, nesta noite ele não conseguirá dormir, mas saibamos que será tanto barulho que também não poderá escutar nossas promessas e pedidos. daí que, como diz a canção cafona mas tão verdadeira, tudo passará a depender, como sempre, mais uma vez de nós, somente de nós

A Flor da Pimenteira


A brava e vermelha pimenteira
É faceira e muito traiçoeira!       
Só uma flor pode salvar
A sua triste alma ao luar!

A pimenteira é perigosa
Quando fica perto do jardim
Pois ela tem inveja da rosa
E muito ciúme do jasmim

Mas quando a egoísta pimenta
Descobre que pode gerar uma flor
Com aroma refrescante de menta
Seu espírito transforma-se em amor

A meiga flor da pimenta
Tem pétalas leves e macias
Que tiram tudo o que atormenta
Esta planta repleta de agonias!

A flor da pimenta é uma estrela branca
Que, na escuridão, fica toda cintilante
Graças a sua alma doce e franca
Mais rara que um nobre diamante!

A flor da pimenta vira um querubim
E suas pétalas transformam-se em asas macias
Quando a flor brota no jardim
Através das aves e suas melodias

Pimenteira carmim com flor branca ao vento
Transforma-se em uma linda dançarina espanhola
Bailando, ao som da brisa, com sentimento
Acompanhada de uma cigana viola!

Porém quando a pimenteira
Continua cruel sem nenhum tom
A flor desta planta feiticeira
Torna-se murcha e marrom!

A brava e vermelha pimenteira
É faceira e muito traiçoeira!       
Só uma flor pode salvar
A sua triste alma ao luar.

Luciana do Rocio Mallon

BARROCO


É urgente
o apelo desta tarde:
o sol que arde,
o vento que bate,
e passos que traçam
caminho algum.
É ingente
o desejo desta tarde:
seixos rolados,
templo vazio
e uns olhos arregalados
de pedra-sabão.
Agora é tarde.
O sonho, tardo,
revelou-se torto
– ou falho.
O sol-posto
deixa um travo de sangue
no horizonte.
(Todos os caminhos são nenhum.)
Ao fim da ladeira,
um anjo barroco
– o último –
cerra as janelas
de um velho sobrado
em Mariana.

Otto Leopoldo Winck

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

rondó da velha no outono


a velha varre o quintal
e o vento espalha as folhas.
que mundo perdido!
mas na vila o sino soa
ninguém vem ver a velha:
um trabalho à toa.
a velha varre o quintal
e o vento espalha as folhas
se ouvisse a voz de um filho...
cada cabeça uma escolha.
solidão, estrela, pedra,
a noite sem fim escoa.
a velha varre o quintal

mk

O MAPA

- Mário Quintana


Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...).
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...