segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Humilde surdina


Deixa falar, deixa falar:
basta o mistério do amor,
minha ternura tão mansa
e o teu jeito de querer.
Nós seremos como os pequenos:
sabem tanto, sem saber.
Voa o olhar no fundo olhar,
mão na mão, o amor pousou.
Tarde boa, morre calma...
Brinca o sino da igrejinha.
Alguém diz palavras velhas
como um sonho que passou.
Meu amor, a vida é grande
quando o olhar encontra o olhar:
mão na mão, o amor chegou.

- Augusto Meyer, em “Poesias (1922-1955)". Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.

http://www.elfikurten.com.br/2013/08/augusto-meyer-o-modernista-lirico-dos.html
Si habla, tendrá desempleo.
Si camina, tendrá violencia.
Si piensa, tendrá angustia.
Si duda, tendrá locura.

Si siente, tendrá soledad.

Eduardo Galeano

sábado, 20 de setembro de 2014




DESENCANTO


Manuel Bandeira

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.

Teresópolis, 1912
O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhamposse
Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da Lua
Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:
- dá licença?
Setembro 1983

Mia Couto (Raiz de Orvalho e Outros Poemas - editora Caminho)
organizando livros na sala, poesia + poesia + poesia
No desanimo em que vivo,
Nem teu desdem
Se o procuro me socorre.
A cantar me vou ficando.
- E a minha alma é como o cysne,
Canta melhor quando morre

António Botto (Bagos de Prata - Antologia Poética - Editora Olavobrás)
"O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores,
Canta por entre as margens do Dilúvio!"
Sorriso Interno, do Cruz e Sousa.


De A Cinza das Horas (1917)


"Filho de pai imigrante sírio e mãe sertaneja baiana, nasceu na cidade de Jequié, Bahia, em 03 de setembro de 1943.

A memoria é uma ilha de edição—um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?"

[Memory is an editing dock—a nameless
passerby says, in a nonchalant manner,
and immediately hits delete as well as
the meaning of what he wanted to say.
The self spent, what is left is the wonder of the world
without being swept along in the rush of things.
Where and how to store the color of each instant?
What stroke to retain from the translucent dawn?
To set ablaze the dry wood of shriveled friendships?
The scent, perhaps, of that faded rose?]

[tradução Maryam Monalisa Gharavi]


Carta do vidente

"Eu digo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente.
O poeta se faz vidente por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, ele exaure em si mesmo todos os venenos, para então guardar apenas as quintessências. Inefável tortura na qual necessita de toda a fé, toda a força sobre-humana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito – e o supremo Sábio!"
Arthur Rimbaud, “Carta do vidente”, 15 de maio de 1871.



O texto que disponibilizo abaixo, de autoria dos professores Egon Bockmann Moreira e Heloisa Fernandes Câmara, publicado na Gazeta do Povo no último dia 14 de setembro, faz uma crítica consistente, sobretudo em questionamentos, à proposta de Constituinte exclusiva para mudar o sistema político, proposto inicialmente pela presidente Dilma e posteriormente defendida por mais de duas centenas de entidades e movimentos sociais de todo o país (e por mim aqui no blog).

Vale a pena ler.

Faço aqui um breve resumo do texto e, posteriormente, minhas considerações.

Sobre o texto de Egon Bockmann e Heloisa Câmara:
Os autores defendem uma posição que chamam de “cautelosa”, pela manutenção da atual ordem constitucional e contra “soluções mágicas” (Constituinte), a partir de algumas premissas:
a) Não reconhecem a legitimidade de uma nova Constituinte, ainda mais uma que seja restrita à Reforma Política.
b) Não acreditam que os problemas apontados pelos movimentos sociais em relação à política se resolvem com mudanças no texto constitucional.
c) Entendem que uma nova Constituinte coloca em risco as conquistas da Constituição promulgada em 1988, sobretudo as cláusulas pétreas.
Os autores encerram o texto alertando aos leitores que não se trata de uma posição conservadora e reconhecem que há problemas na atual representação política.
Entendem, portanto, que a única solução legítima, segura e real para solucionar os problemas do sistema político seria a aprovação de projetos de lei pelo atual Congresso Nacional, sem necessariamente alterações no texto constitucional, tendo em vista que os problemas seriam exógenos às instituições políticas.
Rebatem, assim, a tese de que o atual Congresso não vai se auto-reformar, defendida pelos movimentos sociais, alegando que os deputados constituintes eleitos também seriam escolhidos sob o mesmo sistema eleitoral, o que tornaria sua representação tão deformada quanto a dos atuais mandatários.
Minhas considerações (começando pelo fim):
1) É verdade que se os congressistas constituintes forem eleitos sob as mesmas regras dos atuais, nada mudará. Assim, parto da premissa que a manutenção da atual ordem constitucional (estruturas políticas) e das atuais regras eleitorais impedirá soluções reais para os problemas de representação, tão reivindicadas nas ruas desde junho de 2013. Esse Congresso, portanto, de fato, não vai se auto-reformar. Por isso, propomos que, para a Constituinte, seja definido o financiamento público da campanha e a distribuição igualitária de recursos entre todos os candidatos.
2) Por se tratar de uma constituinte temática, na qual se debateria os artigos que concentram a organização e o funcionamento das instituições políticas do país, não estaríamos debatendo direitos individuais. Não há espaço para questionamentos sobre maioridade penal, pena de morte e demais temas que provocam temor nos setores mais progressistas da sociedade.
3) Quanto à legitimidade de uma nova constituinte exclusiva e temática, não há nenhum golpe à Constituição, tendo em vista que não há nenhum empecilho no texto constitucional à realização de uma Constituinte parcial, para resolver, com o mais amplo debate na sociedade, problemas que não podem ser tratados isoladamente ou numa miríade de PLs e PECs que tramitam no Congresso. Propomos um processo democrático de decisão, através de um plebiscito oficial prévio para aprovação da Constituinte e a possibilidade de um referendo posterior, permitindo assim que a soberania popular prevista no texto constitucional se manifeste verdadeiramente.
4) Os autores reduzem a crítica dos movimentos sociais ao modelo eleitoral, quando, na realidade, há uma proposta de mudança da estrutura das instituições políticas, cerne dos problemas da representação. Não há como mudar apenas as regras do pleito eleitoral ao Senado, por exemplo, sem discutirmos a necessidade ou não da representação bicameral. Ou mesmo, não há como debater o modelo eleitoral do Congresso Nacional sem que antes discutamos o problema do voto de um eleitor de Roraima valer 10 vezes o que vale um de São Paulo. Como afirma o dirigente da CUT, Julio Turra, “a regra elementar da democracia, um eleitor, um voto, no Brasil, no plano nacional, não existe”.
5) A Constituinte proposta pelos movimentos sociais hoje é justamente o que pode impedir o avanço das ideias mais retrógradas que se proliferam na sociedade e apresentar uma saída positiva para o grito por mudanças expresso nas jornadas de junho do ano passado. Sem mudanças nas instituições políticas, as mudanças estruturais não virão, encurralando a massa de brasileiros num beco sem saída. Ao não encontrarem alternativas, as pessoas acabam capturadas pelas ideias que parecem resolver facilmente os problemas sociais do país: “ao invés de eliminar a pobreza, se elimina o pobre”. Já estamos vivendo esse processo, não é mesmo? O golpe às cláusulas pétreas da Constituição, temido pelos autores, não tardará a ocorrer, de fato, caso não encontremos uma alternativa política real, sem rodeios para justificar a inércia, a partir de uma agenda positiva de transformações sociais estruturais, respondendo à insatisfação popular expressa nas ruas em 2013.
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Artigo de opinião publicado na Gazeta do Povo - em 14/09/2014
Poder constituinte e reforma constitucional: até onde se pode ir?
Egon Bockmann Moreira e Heloisa Fernandes Câmara
Dentre outros efeitos, os protestos de junho de 2013 estimularam o debate a propósito do que se pode entender por participação democrática. Um de seus pontos de síntese foi a representatividade política e a insatisfação com as pautas adotadas pelos poderes constituídos. Como resposta, a Presidência da República apresentou a proposta da “constituinte exclusiva” – que só alterasse os direitos políticos da Constituição. Inicialmente, a sugestão foi abertamente criticada. Entretanto, depois foi encampada por movimentos sociais que elaboraram um “plebiscito popular” sobre a constituinte exclusiva para a reforma política. O que torna fundamental retomar a ideia de processo constituinte e as possibilidades de criação/alteração constitucional.
Poder constituinte é o poder com capacidade de fazer a nova Constituição. Supõe-se democrático e se manifesta em períodos de necessidade de mudança do sistema, como os revolucionários (muito embora possa advir de negociações e transições). Em tese, esse poder constituinte – dito originário – é ilimitado. Porém, ele não existe sozinho, mas vive ao lado do poder constituinte derivado, que é a criação que permite que se façam alterações na própria Constituição. Esta modalidade é permanente (de titularidade do Congresso Nacional), mas limitada (a Constituição possui conteúdos que não podem ser nem sequer reduzidos, as “cláusulas pétreas”).
Assim, a constituinte exclusiva soa deslocada de nossa tradição. E a pergunta que deve ser feita diz respeito aos limites estabelecidos pela própria Constituição: estaria tal constituinte obrigada a segui-los? Em outras palavras: a constituinte exclusiva deve respeito à Constituição? Se respondermos positivamente, a proposta assume caráter meramente simbólico, pois a possibilidade de mudanças é igual àquela de que hoje o Congresso dispõe. Mas, se a resposta for negativa, teremos um problema fundamental: seria possível suprimir cláusulas pétreas? Mais ainda: tal mudança não poderia caracterizar um golpe contra a ordem constitucional? A questão é fundamental, pois se as cláusulas pétreas expressam proteção à Constituição, não é possível alterá-las na vigência de um estado de normalidade sem configurar grave violação à própria estabilidade constitucional.
Mas, a despeito das questões jurídicas, são as questões políticas que trazem maiores dúvidas. O diagnóstico trazido pelos movimentos que apóiam a constituinte é o de falta de representatividade política, tanto em sentido geral como falta de representação de gênero e raça; abuso do poder econômico; necessidade de reformas estruturais etc. É muito difícil discordar que devemos ampliar a participação democrática, mas convém questionar exatamente como uma constituinte conseguiria resolver esses males.
Afinal, se o Congresso não nos representa, o que garante que a eleição para uma constituinte seria representativa? Será que os problemas de participação política decorrem prioritariamente do texto da Constituição ou de fatores exógenos? A alteração do texto e a negativa do processo que a construiu não colocam em risco as conquistas da Constituição promulgada em 1988?
Devemos ter cautela ao usar processos constituintes como um deus ex machina, especialmente porque nossa história está plena de exemplos de apropriação do conceito de poder constituinte como forma de “flexibilizar” – ou, melhor, de “endurecer” a ordem constitucional. E lembremos sempre: defender cautela ou questionar soluções mágicas não significa defender o conservadorismo.
Egon Bockmann Moreira, advogado e doutor em Direito, é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Heloisa Fernandes Câmara, advogada e mestre em Direito, é professora do curso de Direito do Unicuritiba.
A necessidade da constituinte exclusiva e temática: considerações sobre o texto de Egon Bockmann...
O texto que disponibilizo abaixo, de autoria dos professores Egon Bockmann Moreira e Heloisa Fernandes Câmara, publicado na Gazeta do Povo no último dia 14 de setembro, faz uma crítica consistente, sobretudo em questionamentos, à proposta de Constituinte exclusiva para mudar o sistema político, proposto inicialmente pela presidente Dilma e posteriormente defendido por mais de duas centenas de entidades e movimentos sociais de todo o país (e defendido por mim aqui no blog).


BLOGDOANDREMACHADO.COM.BR

Helena Sut

Paixão é um espelho narcisista. Descobrir no outro o que busca em si e não encontra, cobrir em si o que falta e já não procura... A completude de ser no outro, a inquietação de não ser... Paixão é sentimento "tarja preta" - causa dependência!



DAS CAVERNAS!

Lina Faria 

Funciona assim: moram na periferia ou nem lá.
Acumulam seu ‘patrimônio”, safra,, féria,
nos bueiros das ruas de Curitiba.
Ontem esses dois resolveram retirar a colheita de não sei quanto tempo.
Numa breve DR ( discussão de relação ), começam a retirar de dentro
do bueiro dezenas, centenas de latinhas de aluminio.
Impressionante, não parava mais de sair.
Mais e mais, logo um deles aborda a gari e lhe pergunta se tem um saco, um recipiente para juntar tudo aquilo.
Se chove? De nada adianta o espaço de escoar água pois ele estará cheio e de ressaca, log, logo, de novo!



a noite é escura só por fora
a luz própria vem de dentro
o amor que sinto agora
é coisa do pensamento
o catavento lá fora
espera um novo vento
que venha a felicidade
se não vier eu invento


luiz rettamozo primavera de 2014
enterrem
meu coração
na areia
do parquinho
da 415 sul
e deixem
meu corpo
boiando
no paranoá


Nícolas Behr (Poesília - poesia pau-brasília)

Quando eu morrer


mesmo em tristeza devastada
morrerei de alegria de terem sido possíveis:
o amor a tristeza e a aventura de ser carne
em meio a tantas pedras


Iracema Macedo 

in Lance de Dardos (Edições Estúdio 53 - 2000)


Irei embora mesmo com o coração partido.
Vou juntar os poucos apetrechos que tenho
Vou seguir rumo a uma grande jornada
Vou por uma linha reta
Vou esquecer a minha velha morada
Vou ao encontro do mundo
Vou cruzar estado e terra de chão
Vou passar por grandes invernadas
Vou tentar deixar para trás a minha dor no coração
Largarei para trás todos os meus bens.
Que briguem por eles na hora de minha partida
Pois sei se eu não voltar mais
É porque ninguém sentiu a minha ida
Quando na adolescência
Sai de casa com uma trouxa na mão
Hoje saio novamente
Por uma grande desilusão
A minha mãe de tanto sofrer junto com os seus familiares
Para o mundo também desandou
E eu com quase sessenta anos hoje acho...
Que está sina ela de herança para mim deixou.
Luiz Carlos Brizola

Curitiba - Paraná - Brasil
Júlio Alves
tenho um mal-humor
que me faz feliz
essa ditadura de estar alegre
não me prende
há dias que acordo feliz
certas noites festivas
entristeço
bem solto

rio

Semiótica


Se o mar
A água
O sol
Ainda são utopias
Indecifráveis
Serei Eu
O grau do bang,
Deste ininteligível
12/09/41

Fred Roberty

O outro Lado de Tudo


Por que choras, menino?
Não sabes que a vida é assim?
Às vezes, pedras no teu caminho;

outras, flores no teu jardim.

Gaston Leonardo Stefani 

Parasitiana

Marina Tadeu

Não sei conjugar
mas suspeito
que no princípio era depois
de tempo o corpúsculo
derivado de uma incerteza
parecida com um homúnculo
tão apaixonada pelo dizer
(falava uma infinitude de línguas em múltiplos de sete)
que se esqueceu de ganhar músculo
de fomer, coder, tocar trompete
ou até braguesa
tendo-se extinguido na resina
de um âmbar de gelatina

que lhe sugava a impureza.

Quantos rostos cabem dentro do seu?
Os buracos negros de todos os olhos
Num só sol - na pele brilhante dos
Seus olhos e a explosão de anos atrás
Soldando luas em suas córneas
A face da multidão tem o sorriso
De tudo o que mora aí dentro
Na superfície de qual planeta
O contorno dos seus olhos
Me bota para sonhar?
Onde me reconheço

Nas dunas de areia do seu pensamento?

Alexandre França

terça-feira, 16 de setembro de 2014


Uma mulher pode ser libélula
Ter olhos nas costas
Voar com asas transparentes...
Pode?
Pode.
Bárbara Lia

Respirar (2014)
Marcia Barbieri


Acho muito curioso quando escuto ou leio declarações como "A literatura está morta" ou "Não existe literatura contemporânea". Nunca presenciei tanta literatura como no momento atual, tantos e tantos escritores de enorme talento, que realmente não consigo tempo hábil para acompanhar... Na minha opinião, esse tipo de declaração é um atestado de ignorância e falta de competência para olhar o novo e aceitar que o "novo sempre vem"... É preciso coragem para dizer sem se escorar em padrões fixos e confortáveis. É preciso coragem para andar na corda bamba. Tenho visto poucos malabaristas e muitos palhaços...
Adriana Zapparoli
- nas cataratas vitória um crocodilo pesca um babuíno e umas flores murchas... e enquanto pássaros tagarelas se espremem entre os poleiros, ele toma chá e observa o zinabre entre a fumaça ...

veja, querido, há mais um pouco de terra em cima das quedas da água.até lá, a vida aqui é boa.
Alice ou A última mensagem do cosmonauta a uma mulher que um dia ele amou na antiga união soviética
pra lá de onde estou

procuro as luzes de moscou
sei que vou voltar
nem que seja cinza em pó
esqueceram de mim 2
passa em looping
na escotilha da cosmonave
por mais voltas na terra
que eu percorra
não permita deus que eu morra
sem que precise acreditar
pra te encontrar
me rebaixarei ao mais fundo do mar
pedirei suas pistas
aos tais monstros abissais
que me dirão
que você está encalhada
num submarino nuclear
de um país que não existe mais
daqui do meu negro
a terra é azul
outubro, vermelho.

(Roberto Prado e Sergio Viralobos)

Jaboc

Otto Leopoldo Winck

Mais fragmentos de Jaboc (capítulo II)

Pôr do sol, ocaso, crepúsculo, poente - tantas palavras para a mesma coisa. O de ontem, por exemplo: estupendo. Tons alaranjados, rubros, róseos. Alguns laivos lilases. Uma tela impressionista sobre a cidade alheada. Transeuntes apressados, um casal de namorados, uma puta com varicoses. Eu, sentado num banco do parque, um livro aberto nos joelhos, os céus abertos, a súbita compreensão. À minha frente, o lago. Vermelho. Ocidente ensanguentado.
(...)
Hoje fez outro pôr do sol daqueles. De repente, diante de tamanho esplendor, eu me sinto pequeno, minúsculo, um grão. Que palavra, que poema, que canção tornaria o crepúsculo mais belo e a vida menos breve? Não somos, nunca seremos nem mesmo uma nota de rodapé à obra da natureza. Obra, esta, cega, surda, mas em algumas ocasiões – hoje foi uma delas – de uma beleza tão estupefaciente que parece que tudo faz sentido.
Foi uma vez. Lá por março de 2006, eu e o Sergio Viralobos fizemos esta letra de canção, especialmente concebida para um espetáculo teatral do mesmo nome dirigido pelo Felipe Hirsch.
Creio que seria (ou foi) musicada pela dupla múltipla Rodrigo Barros Del Rei e Luiz Antonio Ferreira.

Não sei se os versinhos foram ou não utilizados na peça ou ainda vagam pelo vácuo, mas que foi divertido foi.
a vida me deu você
a vida me deu você
você me deu um verso
sempre que te vejo
de poesia fico imerso
as palavras me procuram
a inspiração me sorri...
as rimas é que me curam
quando estou doente de ti


Renata Jardim e Luiz Rettamozo


Que Selene sede meus olhos.
Que teça uma teia sobre minha alma.
Que seque minha sede de sono....

(Texto e imagem: Susan Blum)
Iriene Borges

Ganhei há bastante tempo dois volumes intitulados "Homem, mito e magia". Hoje, depois de usá-los como peso para encadernação, resolvi dar uma lida. ´Quando o primeiro parágrafo lido revelou que em 1645 uma tal Alice Warner confessou haver mandado maus espíritos infestarem de piolhos duas mulheres e a verificação do tribunal aferiu de que fato elas eram piolhentas, a despeito de supor a moça na fogueira,não pude evitar uma gargalhada tão mundana que só pode ser diabólica. No quarto parágrafo a afirmação categórica de que "a magia negra é anti-social, oposta aos valores instituídos, do contra" me tomou de assalto através do velho hábito de começar a ler revistas do final. Agora relendo, vejo significados mais profundos do que o ritual de leitura "do contra, oposto aos valores instituídos, anti-social"...e as gargalhadas continuam


( Licença poética, só. Depois o texto melhora e o conteúdo fica até interessante; rsrs)
O homem que media terras media também o céu. Apontava constelações. Nas noites claras colocava o teodolito no quintal e focalizava a lua azul. Depois, erguia os filhos um a um para que os olhinhos astutos chegassem mais perto das reentrâncias suaves de uma lua serena, azulada, transportada diante de nós.
As mãos dele tomavam quase todo o meu peito e minhas pernas balançavam no ar como quem nada em um mar de segredos.


Paraísos de Pedra (Editora Penalux) / Bárbara Lia
Página 99
Andréia Carvalho Gavita

14 de setembro às 11:09 ·


Eu cursava Geografia na UFPR e em uma das atividades curriculares fomos passear pela cidade para uma aula arqueológica ao vivo. Lembro do professor explicando que a maior parte da região central por onde caminhávamos "sequinhos e seguros" já tinha sido água pura (o Rio Belém). Quando chegamos ao Passeio Público ele nos explicava que o parque foi o primeiro projeto de saneamento ambiental da cidade. Era uma aula de "geografia pura". Eu pensava em seguir a carreira de geógrafa, estudando mapas bolorentos ou talvez mapas espaciais. Mas então chegamos até a ponte pênsil e a cruzamos chegando até a Ilha da Ilusão, no reduto onde repousa o busto de Emiliano Perneta. O professor contou do pomposo dia da coroação do poeta como o "Príncipe dos Poetas Paranaenses". E discorreu sobre a importância do movimento simbolista nesta cidade. Por isto, assim como abandonei os ossos e moléculas do curso de Biologia, abandonei os mapas e cálculos de vento, percebendo o que me completaria: a literatura. Não, não me matriculei em mais um curso acadêmico (o óbvio seria cursar Letras). Resolvi flanar periodicamente pelo passeio público, invocando uma luz para os ossos de pedra do príncipe simbólico. Bem, ele me deu bem mais que uma chama de fogo-fátuo, me deu coordenadas fosfóreas e vértebras de caminhos para os roteiros pineais de minhas rótulas escriturárias. E aqui estou, sem diplomas na parede, mas com muitos papéis nefelibatas, em trânsito perpétuo pelos signos dos dândis. Bendito dia arqueológico, projetado no hoje santuário que vislumbro.

MEMORABILIA


Olhar o rio e compreender que o tempo
é um rio que flui e não retorna, e, se retorna,
será, num tempo outro, um outro rio.
Olhar o rio e compreender também
que, se as suas águas as nossas mágoas
levam, é nesse rio, além da foz,
além do mar, além da noite extrema,
que as nossas lágrimas se transfiguram,
iluminadas não das mágoas mortas,
que destas já não há nenhum remédio,
mas daquelas que ainda surgirão,
pois se há fluir, se há correr, se há viver,
sempre haverá sofrer, e pena, e mágoa.
Olhar o rio e compreender que o tempo
é o rio sem fim em que nos batizamos,
irremediavelmente naufragados,
todo dia, toda hora, a todo instante.
Olhar o rio e aceitar que não podemos
nos agarrar aos ramos e às raízes
da encosta – e que os barrancos nem sequer
a fantasia da estabilidade
nos podem, despencando, transmitir.
Olhar o rio e compreender enfim
que, se a sina de todo rio é o mar,
o fim de toda gente é navegar,
ai, sem cartas, sem ferros, sem correntes,
em direção do insofismável mar,
na imensa noite que da noite outra
cai, silente, solene, generosa.
Olhar o rio e, mais que compreender,
reconhecer que o fim, no fim de tudo,
é se deixar levar por essas águas,
sem reservas, sem medos, sem paixões,
até que, num rio outro, além da noite última,
possamos vir à tona, como arcanjos,
nas águas límpidas do não-ser.

Olw

SACRILÉGIO


Me aproximo de ti
como quem se aproxima da polpa do silêncio:
com gestos pausados e passos medrosos.
O mundo lá fora é muito grande,
os caminhos tão numerosos e loucos
que será inevitável o adeus.
Quando chove, contemplo as vidraças
e vejo teu rosto: envelheceste – penso em dizer-te.
Mas as palavras frequentemente são duras
e resta sempre uma paisagem vazia
onde nossos sonhos deixaram sulcos.
Me aproximo de ti
como quem se aproxima do nome de Deus:
com gestos medidos e passos de dança.
Se eu gritasse, sei que ninguém me ouviria.
Se eu dançasse, o universo implodiria.
Estive dentro dos pesadelos dos homens
e descobri que tudo é sagrado.
Menos o medo que tenho de ti.

Olw
Otto Leopoldo Winck

Mais um fragmento do Jaboc, capítulo XXIII:

- O álcool é meu refresco, Minhoca. Minha droga, mesmo, é a literatura.
O garoto, enfim, retornara.
- Depois você diz que a literatura acabou.
Nada de Virgínia.
- Acabar, acabar não acabou. Perdura em guetos cada vez menores e esotéricos, como os departamentos de letras e as revistas especializadas. Até os anos cinqüenta, o que é que um jovem sensível, inteligente, além de meio inconformado, gostaria de ser? Escritor. Depois passou a querer ser cineasta. E daí em diante, tocar numa banda de rock, o que pelo menos tem a vantagem de não exigir nem inteligência nem sensibilidade, e hoje nem mesmo rebeldia.
- E ultimamente ainda preferem ser DJ’s.
- E a literatura? Virou coisa de arqueólogo, nefelibata ou veado. Você é veado, Minhoca?
- Eu, hein! Sai fora!
- Veja a Virgínia, por exemplo: novinha, gostosa, delicada. Pode se dar ao luxo de efusões líricas. Eu e você não, Minhoca. Ou fazemos uma literatura cerebral, para crítico poliglota decodificar, ou uma literatura recheada de esperma e porrada, o que dá na mesma, não dá? O ser humano macho, branco, adulto e ocidental é só isso: cérebro e colhões. Elocubrar e foder, é somente isso o que ele sabe. Não tem coração, porque o amor é foda, Minhoca, o amor é foda. E não há nisso nenhum trocadilho.
Levou a garrafa à boca, liquidando com o destilado de origem eslava.

- Por isso te digo, Minhoca: não entra nessa. Vá ser cantor de funk, engolidor de fogo, ortodontista, assessor parlamentar. Tudo. Tudo, menos escritor, cara.

Jaboc

Otto Leopoldo Winck

Fragmento de meu romance Jaboc, capítulo XIV:

– Ah, é? Sabe, andei pensando sobre isso. Você tem razão. A literatura, a arte não passam de inventários, relicários da paixão. Mas só em parte. Não podemos esquecer que o poeta é um fingidor.
– Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Não é assim?
– E a arte existe, no fundo, no fundo, porque a vida em si é insuficiente, é precária, é sempre menos. É por isso que a gente escreve, a gente dança, toma cerveja e se apaixona. Mas mesmo que o inventário da paixão, seja ela real ou fictícia, venha a se acabar um dia, como a paixão, e depois venha a secar esta última flor do Lácio, junto com as outras flores e todo o jardim, e este minúsculo planeta azul se transforme num imenso deserto girante, mesmo assim eu penso que terá valido a pena... Mesmo assim.
Clóvis, batucando na mesa, cantarolou:
– Dois namorados olhando o céu... chegam à mesma conclusão...
Integrantes de outra mesa chegaram a virar-se para ver quem cantava assim tão desafinado. Até o rapaz que abraçava a moça de calça branca lançou uma olhadela.
– Mesmo que a terra não passe... da próxima guerra... – prosseguia o poeta e cantor bissexto, cada vez mais animado.
No alto a lua, indiferente ao terrestre burburinho, estampava a sua palidez, quase cheia. O astro dos loucos e dos enamorados. Agora coisa em si, satélite.
– Mesmo assim valeu...
De repente Clóvis estacou, circunspecto.
– Sei não. Valendo ou não a pena, às vezes me parece que tudo é pequeno. Você tem razão. O que não tem sentido, nunca terá.
– Ora, cara, você está bêbado!
– Valeu encharcar este planeta de suor – continuou o colega, percutindo com mais violência a frágil mesa de acrílico.
O outro, por seu lado, ajuntou-se a ele, em coro:
– Valeu esquecer das coisas que eu sei de cor...
Na adolescência, entre as músicas que tocavam nos barzinhos alternativos, era esta uma das que ele mais gostava.
– Valeu encarar esta vida que podia ser melhor...
O garçom sorria. Começava a fazer frio. A noite, a lua, a bunda da estudante – de medicina? de fisioterapia? de enfermagem? –, o livro, a flor de barro, a flor do Lácio, o inventário, Virgínia, passaram por um momento, caleidoscópicos, em sua mente.
– Mesmo assim valeu...

Desescritora

     
Confesso, sou desescritora
Tentando ser sereia no vasto mar
Sem, ao menos, ter voz de cantora
Sob à luz prata e suave do luar!

Sou uma desescritora suicida
Que mata as doces rimas
Gerando uma triste ferida
Com espadas de esgrimas!

Enquanto um másculo desescritor
Tenta seduzir com falso sentimento
Fingindo sentir o mais puro amor
A desescritora cria asas ao relento
Só para poder voar contra o vento!

Somente uma real desescritora
Presa dentro de uma masmorra
Pode criar suas próprias asas de cetim
Para voar pelo céu azul sem fim!

A desescritora viaja pelo universo
Libertando o tradicional verso
De um planeta cruel e perverso
Onde a depressiva ditadura
Tão repressora, triste e dura
É capaz de censurar a ternura!

A desescritora quebra a métrica e seu muro
Com apenas um discreto sussurro,
Que com sua mágica melodia
Transforma tudo em poesia!

Desescrever é fazer paródias numa festa
Mas, mantendo o sabor de uma seresta
Sou desescritora, pois deixo os escritores tontos
Quando mudo e troco de lugar todos os pontos

Um angustiante ponto final
Vira um ponto de coletivo
De um jeito nobre e especial
Ele transforma-se em ser vivo!
Enquanto a vírgula transforma-se num girino
E o ponto de exclamação, numa nave espacial!

Enquanto o desescritor picha o muro
Para descontar o desejo de dar um murro
A desescritora consegue sua força no sussurro
Libertando a ignorância do obscuro escuro!

Confesso, sou desescritora
Tentando ser sereia no vasto mar
Sem, ao menos, ter voz de cantora
Sob à luz prata e suave do luar.

Luciana do Rocio Mallon

Lenda do Ipê Amarelo



Era uma vez uma índia morena
Batizada com o nome de Tabebuia
Ela brincava tão doce e serena
Transformando o pião em cuia!

Esta menina admirava o Sol
Porque ele era o seu farol
Seu sonho era tocar neste astro
Para deixar no céu um dourado rastro

Um certo dia, esta jovem meiga e boa
Aproximou-se da beira de uma lagoa
Assim, ela viu o reflexo do astro rei
E ignorando qualquer tipo de lei

 Tabebuia repleta de ternura e candura
 Jogou-se nesta água cristalina e pura
Pensando que poderia abraçar o Sol amarelo
Porém, ela se afogou de uma forma dura
Seu corpo foi ao fundo, mas voltou mais belo

Boiando por esta mágica e misteriosa lagoa
Sua alma sentiu que sua morte não foi à toa
O Sol ficou com pena do seu corpo desitratado
Por isto fez um feitiço de um jeito apaixonado

O corpo da índia virou um galho com sementes
Flutuando por estas águas frementes e quentes
Até que o galho foi parar na beira de um rio
E de suas sementes, de repente, surgiu

Uma árvore com flores tão singelas
Todas suaves e muito amarelas
Como a cor do Sol da primavera
Que tem as luzes da nova era!

Esta árvore causou o maior fuzuê
Porque virou abrigo de um colibri
Deste jeito ela passou a ser chamada de ipê
Que significa galho que flutua em tupi-guarani !

Reza a lenda que cada flor desta planta
Tem a alma inocente de uma santa
Pois, estas flores amarelas
Tão leves, doce e singelas

São divinas lágrimas do astro rei
Que formam um tapete dourado
Na lembrança da moça que ignorou a própria lei
Por estar com o espírito primaveril apaixonado.

Luciana do Rocio Mallon

sábado, 13 de setembro de 2014

se a verdade me chega
eu sou retalho
se a tortura me chega
eu sou candência
se o destrato me chega
eu sou baralho
se a tesão me amortece
eu sou demência."

RR

MENSTRUAÇÃO



há árvores a fecundar olhos azuis de ser espanto. olhos que rebentam nos ramos das árvores, que furam os troncos com uma luz antiga de âmbar. sim, tenho árvores nos olhos, os seus ramos espetados na matéria do mundo trazem-me visões de um orgão perfurado, uma teia ondulatória a fermentar tesouros de outras eras. nos ossos o mármore estilhaçado, e no sangue, no sangue um coagular musical de inomináveis. depois chego a casa e o céu abre as pernas. o céu é uma mulher prenhe de estrelas, um sangue quente de astros. mais um filho que não terei... as nuvens passam pela janela e misturam-se na bruma das minhas lágrimas invisíveis: um sonho encontrou o rio atrás do esquecimento. então ouço os meus ouvidos: são os cascos do medo, incansáveis, a navegar o Saturno silêncio.
suspiro... há gomos vermelhos de flôr espalhados pelo mundo. há pétalas a ferver nessas águas silenciosas que viajam por debaixo das cidades. há incenso, e absurdo, e estrelas brancas na garganta e, sobretudo, há aquela névoa densa e incolor que me oculta o teu rosto.
depois, os meus olhos deitam-se, e é só o gesto lânguido do sono.


Alexandre França
A criação artesanal de imagens sacras.
Num ponto
O feixe branco da manhã
Onde a visão só vê os zeros
A cabeça afunda em círculos
O estrondo, o sol levanta
A ereção de um anjo caído
Criando a si mesmo
Suas falhas o absorvem
Em núpcias do real com o invisível
Seu desejo é o plano B de deus
Algo como correr correr correr
Como as raízes correndo cegas
Embaixo da terra
Em câmera lenta.
CASA
Meu amor, bom dia!
Você poderia varrer
a casa;
passar o pano
no chão e na cozinha?
Tá muito grudento,
jogue as flores fora!
Já cheira mal.

Dalton Luiz Gandin e Julia Maria Morais 

Matéria Lutuosa



(por Luiza Nilo Nunes )

Assopra sobre a memória destas mãos apenas um pássaro amanhecido de relâmpagos
Um veio de azulínea e etérea ave que encha a boca de pó e de fulgurante
Melancolia
Porque os dias desgastam-se circulares na oclusão prateada destes gritos luminosos
O luto corrói a pele límpida das rosas pela matéria celular dos claustros cálidos e
Negros
E uma lepra alastra ferozmente na curvatura dos teus bubónicos cabelos

Sobre o gótico e lustroso lixo desta casa as sombras recurvam na verticalidade das
Colunas
Os corredores fosforizam o mármore vítreo dos morcegos
As orquídeas mergulham no radioso inferno dos vasos, no sémen negro dos puros
Cálices metalúrgicos
Cheira a gladíolos a carne gélida dos anjos fossilizados palidamente pelos quadros
Os espelhos evocam sombras dóceis de gaivotas,
Pulsam nos vidros o rosto cerúleo dos espectros, silhuetas fibrosas, máscaras
Oxidadas de sonolência
E as abóbadas estalam em seus círculos planetários pela linguagem hemisférica das
Sanguinárias cassiopeias

Como cantar até que as aves ruborizem? Até que das pedras sofregamente
Trabalhadas um grito circule das narinas à memória?
Como congelar a gélida lágrima nas vasilhas?

Recordo
A casa recurvava-se em seu exílio de espadas plúmbeas de degraus rugosos de arcas
Incandescentes
A catedral inclinava-se no grito elástico dos pináculos
Nos quartos filamentosos de raízes os fósseis gesticulavam a pele sonâmbula dos
Insectos
E sobre a febre esverdeada das ruidosas melopeias as vozes fissuravam o luto
Crónico dos ossos
Havia uma harpa nocturnamente dedilhada no arquejar de um eléctrico
Pesadelo
Dédalos devozes que sibilavam o teu nome no quebrar-se das fosfóreas
Violetas


Congenital


O luto enredava as cordas ácidas do corpo em seus alvéolos plumbeamente
Musculares
Em seus fios de brilhante sémen coagulado,
Em suas castas e vibrantes redes cristalográficas
E as mulheres costuravam longamente as sombras articuladas sobre os campos
As mulheres perfilhavam as redes húmidas da casa – o peito reconstruía-se sobre o
Nó dos seus novelos
As mulheres aceleravam o lume orgânico dos seios: a espuma preta até aos veios
Magníficos
Davam o sangue clavicular às violetas
Os cabelos arcaicos ao ponto súbito das rosas

E quantas violetas de fumo poderiam os lábios sibilar contra as estrelas? Quantos
Pássaros eclodiriam sobre as agulhas?
Que vento de cinzas espalharia o som do
Nome?
Ou a carne enegrecida dos teus cântaros
Até que o sono fosse um excesso de raízes?

O luto alastrava-se na raiz do pensamento - o cérebro alagado na penumbra
Dos crepúsculos
E que manhãs de cal estalariam sobre as nuvens para que as águas iluminassem
Os cabelos?
Que barcos trariam o teu rosto para que a luz
Explodisse nos espelhos


Luiza Nilo Nunes

POETAS



"Saiba já só a sangue, a boca;
Rompam-se os pulsos nas grilhetas;
- Sempre a tirania foi pouca
Para calar a voz dos poetas!..."

António Cardoso

NO BAR


Entrei no bar, contei as moedas do bolso, pedi a bebida mais forte! Estava apaixonado por sua vizinha casada e não era correspondido. O dono do bar me olhou de soslaio, não serviu a maldita e ainda me denunciou.. Nunca esqueci a primeira paixão e a surra do meu pai aos doze anos de idade!

NUM PISCAR DE OLHOS, JDamasio, 2014
Ao dar por mim
Treme a terra
na metáfora da morte
de Sul a Norte sonora
com ou sem sorte
nunca antes da sua hora
cochicha e não berra.

Roberto Bittencourt
Límerson Morales


era aniversaurio naquela língua que entrava e saía pela boca. sonhz de respirações e ressalvas desovaram no sal de frutas. eram lagartos e familizards verdemelho e verdeiros invaginvadindo desde os vãos nas ventanas. a fera no lado de fora devorava en serio, a corda no lado de dentro zera sem sonido. a familizard era corelida e coralida com os devoramentos de familizardos. protegidos são os telhados debaixo dos vestidos e couracéus em processo.

DESRAIZ



Não sei com que traços se detalham estes sonhos indecididos onde as veias são como linhas que agulhas bordam na distância de um quarto lunar sorrisos inauditos de primavera. 
Deixo-me cair na brutalidade resoluta que a terra à sombra morde quando é possuída pela fertilidade da lava. Porque me dás vontade de perfurar cidades de frente, abrir o sol e mastigá-lo no peito, desatar granadas de estrelas que estoirem com a hipocrisia dos passeios de Domingo no segregar de constelações a dardejar novas palavras. Porque estou ávida de presentes futuros, de te lamber os olhos, os dedos um a um até crescerem raízes da tua dor nos meus cabelos, desgastar as unhas a arranhar o hemisfério oculto do teu corpo que cospe grinaldas e se esquece de dizer “sim”. 
Passos dispersos alargam a impotência da minha garganta de árvore, extravio o tormento pelos esgotos da carne sideral, mas estes pés não se movem, sempre as raízes, sempre o medo, e tu não queres saber. Rasgo-me uma avenida excruciante até à boca, vindima masoquista em campo gotejando gárgulas de frio sobre a tua ausência. Maldito maldito, repito na fala da vulva, estremecendo oásis de quase no regurgitamento de um longe renegado. 
Deste vulcão sem esfíncter convoco o silêncio pela pele repuxada do desespero. Apalpo as vértebras do meu leito, devolvo as cinzas, revolvo revólveres girandolares nas cúpulas de um desejo incomum de torturar os degraus da noite até todos os fantasmas me azularem com despertares a abertura das mãos.

Elsa O.

Náusea



Mordem-se gargantas de sal na criança vadia que comeu o nome. Àquela hora, as flores esticam-se em bicos de pássaro em busca das vozes que rasgam os olhos na diagonal. Inquieta, a água densa baloiça precipícios no corpo. Os filhos da náusea aproximam-se, trovejando lágrimas nos portos vermelhos do submar, e a solidão levanta, em quarto crescente, as noites brancas. As pestanas gotejam esferas distantes e gordas que não vêm na enciclopédia, corpos impossíveis a latejar despojos de nuvem no vazio, corpos que são buracos a expandir-se do avesso. Sabes, às vezes é como se tivesse orgãos meus no teu corpo, e tu o sangue caído no meu… e as lâmpadas rastejassem mandíbulas pela música até ao aturdir das pistas deixadas pelos caminhos, das cordas cansadas na escarpa húmida da vida. Ah amor, espera... Espera para ouvir o piar do sol no som felino das teclas, e então estourar a pique esse balão profundo de vísceras onde mora o vácuo.
Elsa Oliveira

NESSE NATAL, em CHARLEVILLE

Elsa Oliveira


" La seule chose insupportable, c’est que rien n’est supportable. "
Arthur Rimbaud

As memórias que um dia sonhei minhas vão atravessando e diluindo as eras, estendendo-se como cordas onde secam, lentamente, os infinitos de outrora.

Ratazanas enormes parecem levar casas lá dentro. Penduradas nas árvores, bolas vermelhas com olhos muito azuis no centro, penduradas nos passeios, velhas afiando as unhas de talhar o fruto cortam a carne com as facas da paciência.
O vinho quente do norte da europa, uma feira branca e os arcos coloridos abrindo em gomos uma praça muito elegante. Será que já esqueceste o cheiro da canela? Por entre ruas cor de rosa mastigo, de mão dada, o torpor alado do maquinismo do passo, e os gatos magros fogem para trás de máscaras ostentadas por inúmeras placas misteriosas. Então vejo a ponte a aproximar-se e corro com o moinho ao longe para o seu braço solene. Inclino-me sobre o rio a tentar comer aquela luz que há nos olhos dos pássaros a morrer, um frio terrível e liso a ensandecer o corpo. A neve ensarilhada nos cabelos revoltos toca o colo das águas. Tenho-te a cercar-me todas as fronteiras, a ti, que não sabes, dedico esse mundo dorido de branco e de verde. Com uma ferida escarlate na órbita, a lucidez é tanta que entontece os sentidos. É estúpido ir ver campas, mas eu vou na mesma, como todos os outros. Chego à lápide com a noite. Si vous plait, laissez moi entrer, je pars aujourd'hui. Com amigos que julgo eternos sento-me em cima das costas do banco, como que a calcar a morte, e tudo me é estranho na sua familiar aparição. Então, toda a exaustão se aproxima e observa a noite interna das vísceras mais sensíveis, uma imensa bigorna caindo sobre o mundo, oh terrível e sublime ópera humana, o tombar de todos os proletários do abismo, o eterno decapitar da Intensidade.


quando as bordas da vida te aprisionam
numa pele estreitada pelo medo
quando as bordas da vida te aprisionam
e tua mão não alcança cada ato
quando as bordas da vida são segredo."

RR

poesia não é imagem
poesia é pão
uma metalinguagem
de escuridão
passagem sobre passagem
por toda mão
extrato, dor e coragem
da imensidão
quem sabe se só viagem
nada mais não
na volta de cada imagem
poesia é pão."

RR

Ode à Paz


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"