terça-feira, 16 de setembro de 2014

Jaboc

Otto Leopoldo Winck

Fragmento de meu romance Jaboc, capítulo XIV:

– Ah, é? Sabe, andei pensando sobre isso. Você tem razão. A literatura, a arte não passam de inventários, relicários da paixão. Mas só em parte. Não podemos esquecer que o poeta é um fingidor.
– Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Não é assim?
– E a arte existe, no fundo, no fundo, porque a vida em si é insuficiente, é precária, é sempre menos. É por isso que a gente escreve, a gente dança, toma cerveja e se apaixona. Mas mesmo que o inventário da paixão, seja ela real ou fictícia, venha a se acabar um dia, como a paixão, e depois venha a secar esta última flor do Lácio, junto com as outras flores e todo o jardim, e este minúsculo planeta azul se transforme num imenso deserto girante, mesmo assim eu penso que terá valido a pena... Mesmo assim.
Clóvis, batucando na mesa, cantarolou:
– Dois namorados olhando o céu... chegam à mesma conclusão...
Integrantes de outra mesa chegaram a virar-se para ver quem cantava assim tão desafinado. Até o rapaz que abraçava a moça de calça branca lançou uma olhadela.
– Mesmo que a terra não passe... da próxima guerra... – prosseguia o poeta e cantor bissexto, cada vez mais animado.
No alto a lua, indiferente ao terrestre burburinho, estampava a sua palidez, quase cheia. O astro dos loucos e dos enamorados. Agora coisa em si, satélite.
– Mesmo assim valeu...
De repente Clóvis estacou, circunspecto.
– Sei não. Valendo ou não a pena, às vezes me parece que tudo é pequeno. Você tem razão. O que não tem sentido, nunca terá.
– Ora, cara, você está bêbado!
– Valeu encharcar este planeta de suor – continuou o colega, percutindo com mais violência a frágil mesa de acrílico.
O outro, por seu lado, ajuntou-se a ele, em coro:
– Valeu esquecer das coisas que eu sei de cor...
Na adolescência, entre as músicas que tocavam nos barzinhos alternativos, era esta uma das que ele mais gostava.
– Valeu encarar esta vida que podia ser melhor...
O garçom sorria. Começava a fazer frio. A noite, a lua, a bunda da estudante – de medicina? de fisioterapia? de enfermagem? –, o livro, a flor de barro, a flor do Lácio, o inventário, Virgínia, passaram por um momento, caleidoscópicos, em sua mente.
– Mesmo assim valeu...

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