sábado, 30 de abril de 2011

O Menino nasceu com fome de sonhos. Queria ser e ter. E foi e teve. Se agigantou. Tomou e se apropriou do que podia. E do que não, também. Conquistou a felicidade. Tanta que resolveu dividir. Mas veio o Homem Mau e levou todos os seus travesseiros e gavetas. O Menino se apequenou novamente.


Moral da história...

Mário Alvim

O HIPÓCRITA

É antitabagista, mas fuma maconha.

Só bebe descafeinado, Coca-Cola e cocaína.

É contra o aborto, mas chuta engraxate.

É contra a violência, mas não no cinema.

Pinga o adoçante, depois chupa um drope.

Quer o equilíbrio ecológico e dá comida aos pombos.

Ama os animais, mas odeia o homem.

Diz não aos casacos de pele e arranca o couro da empregada.

Grita liberdade e é contra a intifada.

Liberta que será também.

Cultura, ainda que enlatada.

Não é homofóbico e tem horror de quem difere.

Furta desodorantes e espanca o filho que mente.

Odeia corrupção mas se estivesse lá roubaria.

Faz o sinal de cruz-credo quando vê um mendigo.

Abaixo o terror e viva o Tomahawk.

Igualdade pouca: o seu pirão primeiro.

Viva os apoios norte-americanos e abaixo as ditaduras.





Igor Buys

terça-feira, 26 de abril de 2011

Suprema Solidão

Quem desvendou o sigilo
do momento que precede
o primeiro alento ?
Cessado o pulsar do tempo,
quem partilhou a vertigem
do mergulho na Verdade ?

Nos mais sagrados instantes,
estamos nus e sozinhos
diante de deus.

Helena Kolody

in: Infinito Presente, Curitiba, 1980
Domino o impulso de sair
para fora da vida
para entrar cada vez mais nela.
O sopro que apaga a vela
reacende a chama.


Não conto meus pesadelos ao
acordar.
Não termino mais uma frase inteira.


O começo de uma conversa é difícil
Depois mais difícil se torna
quando ela aconteceu
sem começar.

Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetive, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram de meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruél, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.


Paulo Leminsli

in:Distraídos venceremos.São Paulo: Brasiliense, 1995, p88.
desterrados de seus lugares naturais o homem que sai de sua terra é sempre um ausente.


Homens papéis, com seus peitos rasgados pela violência da cidade grande, dobrados pelo peso do capital, amassados por entre os carros e pessoas que não os olham. Tornados amarelos pelo tempo, pelo pó e pela pedra.


Ricardo Pozzo

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Construo um navio com nuvens da infância


e meu sonho navega num céu de saudade.

O sol colhendo amoras no sítio da alvorada

um velho engenho recendente da garapa

jorrando da moenda de aroeira adocicada.



As batidas inocentes pelos clarões do céu

e as colinas de assa-peixes floreando paz.

As quaresmeiras roxas, os ipês frondosos

a sombria constância das estradas baldias

os capoeirões dos carrancudos cambarás.



O canto triste dos carros-de-boi cá dentro

do meu peito onde escuto bater a solidão

das porteiras dos apriscos de minha alma

de plantão no abismo da doce melancolia

que assiste o fazendeiro do meu coração.



Construo um navio com nuvens da infância

e meu sonho navega num céu de saudade.

Do murmúrio infantil das águas cristalinas

do crepúsculo nas calmarias do horizonte

por onde fluem os ribeirões da liberdade.



Afonso Estebanez

A Saga de Uma Latinha

Uma construção lítero-poético-humorística, dedicada a quem, (e só ela sabe quem), se destina.






Tantas, em número tal de impossível conta,

Como pude eu me ater a apenas uma latinha?



O importante não era aquela latinha,

Mas, a boca para onde ela se dirigia,

Ou melhor, era levada.



Contudo quero ainda ater-me à latinha,

Que um dia matéria prima foi,

Dentre tantas separadas,

Retirada da natureza,

Posta em pote, derretida em forno infernal,

Seguiu por muitos caminhos,

Laminada sob pressões incríveis,

Trefilada em máquinas imensas,

Até se transformar numa folha fina,

Para depois ser moldada em forma 'lata'.



Para muito e mais muitos..., serviria,

Porém, aquela foi direcionada à cerveja,

Coisa que não curto, e a isso não me alongo,

E nada de importante nisso vejo.



Eu, um dia também prima matéria fui,

Dentre tantos, não separado, ej... etado,

Se de alguma natureza era, por natureza,

Sem diluir-me busquei meu caminho,

Desenvolvi-me em múltiplos incríveis,

Formei-me em massa condensa,

Até me transformar em inteligência fina,

Para agora 'Poemar' em Sensu 'lato'.



Para muitos, muito em verso fiz,

Nunca pensei sobre latinha poetar,

Entretanto, outro caminho visto,

Fez-me uma grande inveja brotar,

De não ser conduzido como aquela latinha,

À 'Boca' aonde ela ia, ficava e saía.



É..., fiquei como bobo reparando os gestos,

Imaginando aquele gosto, não da latinha...,

Da boca que sorvia em goles, o conteúdo,

Uma visão primorosa pelo prazer percebido,

Da ingestão seqüente feita pela boca bárbara.



Foram algumas vezes que me embeveci,

Que segui os movimentos contínuos,

Até que num repente notei o descarte,

Da latinha que vazia não mais nada servia,

E jogada de lado, depois de amassada

A certo destino primal..., retornaria.



Desisti da inveja momentânea,

Desisti da atitude sucedânea,

Não pretendo depois de usado,

Acabar simplesmente descartado,

De lado posto e vazio de conteúdo,

Acabar sendo amassado,

E lançado a trágico destino final,

O que fatalmente..., aconteceria.



Chega!

Sou gente, e não uma latinha.



Mas a boca daquela mulher...,

O movimento que ela tem,

A pessoa que aquela mulher é,

Transforma qualquer coisa,

Mesmo simples em algo especial,

Aquela mulher é fenomenal.



Só que inegavelmente,

Naquele sorver de conteúdo,

Tinha algo diferente,

Ah..., isso..., lá tinha.



Olinto Simões

Mutamorphatriz

Íntima equestre

escravagista,

de perfil dadaísta,

ao seu dispor

para o que for



lógica, desafeto

& corrosão



abstrata figura

mutamorphatriz,



fronteira do abismo,

espécie rara & beleza,

plágio

da Realeza,

sem salvo conduto



& eu,



agrimensor

do absoluto



Ricardo Pozzo
fonte : pó&teias

À DEUSA D’AURORA, DA PRÍMULA E DA PÁSCOA (DE SAUDAR EOSTRE)

Ela traz nas mãos o Ovo,



A gema do raiar do dia

E a flama do desabrochar das flores.

Coelhos galopam a sua volta,

Os mais sexuais dos seres,

E, às vezes, também um perlado unicórnio.

Ela é a senhora do recomeço,

Da fertilidade, da Prímula*

E da nova vida no além-túmulo.





Do mênstruo colossal do nascente,

Eostre caminha, desde a Mesopotâmia,

Onde se chamara Ishtar;

Depois, pisando as areias do Egito, foi dita Ísis.

Na Grécia adquirira asas nos pés e nos ombros,

Sendo chamada Eos, e se apaixonara de mortais,

Aos quais soubera raptar, no calor de seu cio e paixão.





Trinta de março era o seu dia:

Os nórdicos a dirão Easter, os germânicos Ostern,

E os cristão celebrarão seu festival

Com ovos de afrodisíacos chocolates.





Hoje, o meu verso se põe a caráter,

De gravata dourada, summer jacket rubro

E sungas** à mostra para saudar como se deve:

— À sequiosa e bela deusa da Páscoa!...





Igor Buys

quinta-feira, 21 de abril de 2011

XADREZ MARGINAL (XADREZ COM AMARULA)

Sobre o assoalho da boate

em xadrez,

mesas e cadeiras

de alvenaria e granito

são como Peões

e Torres imóveis,

as meninas

são como Rainhas

e deslizam,

varrem todo o tabuleiro.



Como um Rei,

o cliente pouco se move.

Está vulnerável e guardado,

esgueira-se, não olha nos olhos.



As Rainhas se chamam amigas

ainda que deveras o não sejam,

e afetam não ser bailarinas,

ainda que, de fato, o sejam.

Ninguém deve dançar, senão elas,

que estão seminuas e belas

sob a luz negra de peças alvas.



À porta, existem dois Cavalos-

-Leões, ferozes, contidos.



Por trás da tela preta,

como um quadro de Rothko

suspenso entre luzes rubras,

espiam os Bispos: juízes

de comportamento e etiqueta:

a que beija na boca, é multada;

a que se deixa abusar no salão,

multada é, e ficará mal vista.



Preto e branco,

branco e preto:

tudo ali é um jogo,

razão e atenção

são demandadas.

— Quer sair comigo, querido?

— Obrigado, mas queria conhecer a loira.

Pode chamá-la?



Licor Amarula e dropes Tic-Tac.

Cigarro importado e tequila.

Neste xadrez ninguém ganha,

ninguém perde, mas todos roubam.



Sair com a mais bela,

— ou levá-la ao quarto,

todos podem, mas poucos,

muito poucos,

irão realmente tê-la,

que isso demanda algum carinho,

alguma estampa,

e saber segurá-la como

a um florete:

se afrouxar, ela voa,

se apertar, ela morre.





Igor Buys

domingo, 17 de abril de 2011

AUTOMÓVEL EM DERRETIMENTO

“Poças de espelho e ácido, fogo branco a dissolver automóveis imóveis.”



Igor Buys; “Nesta Rua”





O automóvel imóvel

na noite ácida, dissolve-se.





Na poça sulfúrica, ao pé da roda

sua tinta vermelha referve

junto a tintas roxas, prata, amarelas.





Na calota respinga

do carro seguinte, a cor azulada,

marinha e chovida.





No para-choque de chama e choque

eu me vejo, disforme

afogado em gelo elétrico, candente

e vejo uma estrela de som — estridente.





Um’outra dessas goteja do poste rec-

urvado, triste

e rebenta no capô, queimando-me.





Igor Buys

SÍNDROME INFANDA

I


E aquilo fidia,

fidia.





(nem fedia: fidia...)





Era tipo um troço

aquilo troncho

a coisa toda meio.

E depois tinha

uma cabeça...





e um braço

em cima dum muro.



II



Porra, aquilo era tipo

um inferno





Bagulho enorme passando do meu lado

feito um ônibus





...tudo ensangüentado, ou vermelho não sei

e o ar parecia vidro!





moído!... descendo na garganta



III



Mas aí

eu vomitei, não aguentei.





E depois

nem era pra tanto.





Por aquilo

era só um mondigente





e a minha síndrome de pânico.


Igor Buys

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Poema

 Era outra a mulher que ali caía

Desciam-lhe sobre os ombros

Cintas e vestidos roxos.

O perfume do banheiro

No espelho da madrugada:

Jurava-lhe lascas de uma dama.

No sem-sentido daquela manhã

Hematomas de solidão:

“Desculpe, vou me atrasar.”

Os estilhaços, minúsculos e grandes, aspiravam

Outra mulher caída

E seus pequenos tormentos em cima da hora.

Serena Assumpção

Nasceu e vive em São Paulo há 30 anos. Estudou Letras no Mackenzie e Política e Sociologia no Stantobury Campus da Inglaterra. Mas foi dar aula de percussão na Efterskole da Dinamarca. Produtora cultural, fez a coordenação editorial da revista Arquitetura Cultural (Brant Associados) e do songbook PretoBrás (Ediouro), além de traduzir os livros da Unesco Humanidades no Patrimônio (Urbano e Natural) no Brasil. Cantora, compôs com André Abujamra a música “Tempo”, que gravou no cd Infinito de Pé (2004), e participou das primeiras formações da banda paulistana DonaZica. Atualmente vem produzindo Namburuquê, registro em cd de pontos de candomblé, e trabalha na tradução de poemas de Leide Moreira

A ARMA

estranho objeto é

a arma



negra maçaneta

duma porta sem paredes

que dá pro quarto sem porta.

sem porta



mistério e poder

duma orca

no corpo cavala:



estranho objeto é a arma.



o seu tambor

que não toca

mas estribilha

a faísca, o estampido

o tempo-abismo das pedras

separadas

paradas.

a arma



estranho objeto.

a arma



anjo d’aço e azul-negro

negro-azul:

quando salva des-

salva, inferna

e esconde o sol na lousa.

na lousa



usá-lo nã-

o usá-lo: hemos de saber!



estranho objeto, — a arma.





Igor Buys

Poema

não há palavra que cante

imagem que explique

lágrima que traduza

viola que chore

filósofo que entenda

não há flor que aflore

droga que expanda

perfume que seduza

beijo que amorne

não há sono que repare

água que permeie

sôpro que perdure

meu sonho

seu medo

meu desejo

seu destino

meu amor

seu silêncio

Zoe de Camaris

Escreve o blogue Palavra de Pantera

terça-feira, 12 de abril de 2011

Centro da Cidade

Precisava descobrir como arrancar a corrente de ferro do meu tornozelo. Falei que ia no consultório da doutora Vera. "Ah" , o porteiro respondeu sem me olhar. A sala de espera, vazia. Sentei, olhei o inchaço do pé acorrentado. Peguei uma revista despedaçada, adormeci. Passou-se muito tempo, acho, porque uma parte de mim batia de noite numa porta, cães ladravam, certamente atiçados pelo meu miasma de terror. Eu batia, batia, até uma ventania levar o meu chapéu. Debruçada sobre meu ronco, me acordando, sim, a doutora, em seu jaleco meio aberto, entremostrava seios nos quais fui de pronto para fugir dos cães. no desvairado regalo, ouvia um arrastar dos grilhões. Que jeito?, eu vinha de séculos, e só agora encontrava uma, ah! , uma taverna, enfim...

João Gilberto Noll. in "Relâmpagos" 

Berço esplêndido

Feito de pães amanhecidos, embrulhados no cinismo de jornais antigos, os olhos para sempre ardidos, infinitos bicos por medidos pratos de comida, sapatos passados ao rés-do-chão de melhores tempos, carteiras finas de fotografias amarelecidas, mais papeizinhos do que documentos, mais esperança que crédito, mais cansaço do que urgência, mais ferida que pele, mais família que tradição, mais deuses que dentes, mais doentes que psicopatas, autofalantes que ouvidos, pra sempre rendidos, atados a cintos cujos furos crescem à olhos vistos sobre cinturas minguantes... dormem brasileiros nos berços esplêndidos dos bancos da praça , como bandos sem graça, cercados de horizontes concretos onde dão com a cara..

Fernando Bonassi. in "Da Rua "

Yuri Gagárin

O TRANSUMANO

As luzes crepusculares do final do século XXI

Derramavam-se sobre um mundo ainda estarrecido

Com o horror das guerras nanorrobóticas.

Fora um século violento, desde as primeiras décadas,

Quando os atentados suicidas e termonucleares

Flagelaram a América do Norte.

Brasil, Índia, Rússia e China, as maiores potências mundiais,

Mediavam agora a paz possível num mundo multipolarizado,

Porém, ainda não globalizado por completo.

Não guerreiam mais países entre si, senão facções.



Entrementes, num esplêndido aposento,

Cheio de referências à Antiguidade egípcia e greco-romana,

Ele caminha em direção à janela e seus olhos refulgem

Ébrios de verdes, azuis, amarelo e prata: o Rio de Janeiro

Dali se avista inteiro, e a paisagem lhe sorri imensa,

Alheia ao mal do mundo e ao drama humano.



Seus pais foram cientistas e humanos modificados

Mais inteligentes, mais fortes e potencialmente mais longevos

Que os humanos comuns. Em sua geração, houve uma

Tendência: usarem-se asas de pássaro, brancas e amplas,

A brotar das costas para se articularem como braços,

Num par a mais, a partir de grandes peitorais hipertrofiados.

Tais asas eram funcionais e permitiam que os jovens

As ruflassem contra o vento, pisando pranchas que saltavam

E praticamente voavam por sobre as vagas marítimas:

Foram chamados, dessarte, de — Juventude Angélica.



O século XXI viu a revolução genética; a morte por causas

Naturais se tornara obsoleta, a vida eterna um direito de todos.

O humano perscrutara a vastidão do espaço sideral, os arcanos

Do mar profundo e do imo da Terra, adaptando o próprio corpo

A cada qual de tais fronteiras. Capaz de sintetizar a matéria,

De teletransportá-la e recriá-la indefinidamente, a Razão

Dominara o Verbo, o Fiat: máquinas de prodígio geravam

Bens de consumo, livros, saber, alimento e arte, reorganizando

A estrutura dos átomos, a linguagem das coisas, e Mona Lisas

Autênticas se reproduziam à vontade. Eis que o dom de criação,

A um comando de voz, elevava o humano à deidade plena.



Entrementes, faltava a última barreira: a das horas e anos,

A das Eras e do devir. O tempo era a derradeira fronteira

Mas sabíamos já que a cruzaríamos; sabíamos que o Transumano

Viajara, em carruagens de fogo, à gênese mesma da sua existência

À sua Arché, e a modificara, de sorte que o humano sempre fora

Transanimal; sim, de sorte que a sua evolução cavalgara tal como

Nada mais explicaria em ciência ou filosofia. Ao mudar o tempo,

Ele gerara, ademais, um’outra Terra a esculpir-se sobre a face de

Um universo paralelo e outro em relação ao primo, onde o homem

É criador do próprio homem, é o Demiurgo de si mesmo, é o Pai,

É o Filho do homem e de Deus. Jeová é uma evolução do humano,

Clamavam todos ao final do século XXI! E ave, Mara Mariana!

Deus é o filho do homem, — não há negar.

Ai, que o tempo trafega em espiral do universo primo ao atual!



E o Transumano é capaz de avistá-Lo, ao Humano Incorpóreo,

O Absoluto, criador e criatura, etapa final, ideal supremo, perfeito.



Assim é que, num aposento esplêndido,

Cheio de referências à Antiguidade egípcia e greco-romana,

Ele caminha em direção à janela e seus olhos refulgem

Ébrios de verdes, azuis, amarelo e prata: o Rio de Janeiro

Dali se avista inteiro, e a paisagem lhe sorri sempiterna,

Alheia à dor e glória da existência e da supernaturalidade.

Seu pé pisa o parapeito acolchoado do mais pérsico tapete,

O vento desalinha os seus cabelos livres, suas asas se ruflam!...

Ai, que o Transumano mergulha no Ocaso, mergulha no espaço

Encharcado de ouros, mergulha no tempo, a empunhar o Caduceu,

E, do Alto, enfim, entronizado — ele zela por nós.





Igor Buys

http://www.youtube.com/watch?v=nQsfV0yIetw

OBSOLESCÊNCIA DA MORTE

A morte é de uma mesquinhez absolutamente grosseira e inútil.

Pudera mentir-se tanto para mitigar a dor da sua incoerência patética,

                           [da sua avassaladora inoportunidade.



Anelo pelo dia em que o humano, finalmente, abdicará de morrer.

E, segundo as ciências, essa bem-aventurança está bem próxima!



Transplantes de órgãos, e de órgãos clonados crescidos em estufas;

Engenharia e reengenharia genéticas;

Medicina nanorrobótica;

Sangue artificial.



Ah, que muito em breve, poder-se-á viver por um milênio!

E: sempre jovens!

                       A morte está à beira da obsolescência.



A única tristeza que me fica em ver crescer a geração bendita

Do homo immortalis

É não poder eu mesmo acompanhá-la... é me saber finito e rumando

para o apodrecimento e o verme, o esquecimento e o granito negro

mental e desmental, antimaterial. O sempiterno emparedado, infando.



Ao menos, me fiquem as letras que, se a letra mata, também eterniza;

Se cega, também guarda luz e eco. E encerra inteligência artificial!...



Quiçá a letra é o primeiro nanorrobô contra a morte.





Igor buys

segunda-feira, 4 de abril de 2011

fonte: nickphoto

A cadeirinha do guardador

Como as cidades são hoje todas do automóvel, quem dirige sabe: sempre que é preciso estacionar, duas ansiedades se instalam na alma. A primeira é achar uma vaga. Não é fácil. Deixar o mastodonte refrigerado em algum lugar é tarefa difícil, e às vezes cara, se largamos o bicho num estacionamento. Quando temos sorte, a outra ansiedade é a sombra que aparece instantânea, à beira da rua disputada: o guardador de carros.


Saiba mais

Talvez nenhuma ocupação – na verdade, profissão, ainda que não regulamentada em lei, especificada em itens, ou protegida por alguma ordem legal – define tão perfeitamente a cultura e a sociedade brasileira quanto a de “guardador”. Há uma carregada simbologia naquela figura quase sempre simpática que se mantém em geral à meia distância do motorista toda vez que achamos uma vaguinha. Ele não se aproxima muito, para não nos assustar; os braços são sinalizadores de paz, o polegar erguido, que se segue à voz cordata, o tom sorridente (Uma olhadinha aí, doutor?). Ele sabe perfeitamente que exerce uma função ambígua, quase que secreta, daí o cuidado da aproximação; e também sabe que, por conclusão tácita, o motorista teme que um “não” pode ser um risco (até no sentido literal, segundo a paranoia nossa de classe média sofrida, o carrinho lustroso pago à prestação que não acaba nunca). Portanto, preferimos também circular na ambiguidade, entre legitimar o papel do guardador e repudiá-lo como algo “ilegal”. Melhor aceitar, mas com reservas, em geral mal olhando a figura, apenas fazendo um gesto rápido de concordância. Com o gesto, há implicitamente uma moeda em jogo, também não especificada. É o invólucro oficial da esmola.


Sim, a rua é um espaço público. Mas não somos alemães, suíços ou finlandeses para brandir a lei na cara de um infrator. No país do mensalão, que moral nos resta para reclamar do guardador? Mesmo porque sabemos que este “usurpador” do espaço público é pobre – na verdade, bem menos que pobre. É alguém – a idade varia de 10 a 60 anos – que não tem ou não encontrou absolutamente nada melhor a fazer senão passar 12 horas seguidas, todos os dias, olhando para os carros dos outros. Sobrou para ele a calçada, de que ele discretamente toma posse, também simbolicamente, com uma cadeira meio quebrada, um toco, um banquinho velho, com alguns sinais em torno de que ele “está ali”: uma garrafa, uma marmita, um casaco puído (como o célebre casaco na cadeira do funcionário público que só deu uma saidinha e já volta). E, como todo espaço público brasileiro, também cria, por força de leis não escritas mas muito eficientes, suas máfias, cartórios, intermediários, repassadores, quadras nobres, horários privilegiados, exploração de menores e violência.


Há dois modos de medir o país – um deles, é pela força da sétima economia do mundo; o outro é pela cadeirinha do guardador de carros na calçada da esquina.

Cristovão Tezza.
Fonte: Gazeta  do Povo

domingo, 3 de abril de 2011

Persona

PUTA PERFILADA NA ESQUINA ESCURA

P

u

ta

per

fil

ad

a

nas

qui

na

es

c

ura

Tua sombra se estica, me assombra. E, aos poucos, desvenda

o mistério do teu ministério anticrístico e bom, ajudando

ajuntando o menino qu’é virgem e o velho sem força

mais a moça viúva; e o tenente aleijado, o padre

sem bata no raio que parta de um quarto

amarelo contra a noite roxa e negra.



Puta perfilada na esquina escura, e lilás.



Igreja que negreja em pedra e sinos.

Bar vermelho, branco amarelo. Postes insertos em cones lilases.



Puta perfilada na esquina escura. Sempre foste santa enfim,

sempre foste enigma torturado e meigo, como tudo qu’é santo...



E inda sabes o silêncio dos sinos na noite, cantando.



Igor Buys

O MONSTRO DOS BUEIROS DE COPACABANA

Na noite calma, igual a tantas outras





vestida de prata, meia-calça cerzida

e novamente rasgada, batom violeta

e automóveis rorejados de néons cal-

eidoscópicos, brasinos verdes lilases;

na noite vestida de dia amarelo tenso

à porta do motel e do cine privê uma

criatura mortal se esg-

ueira se esconde, serpenteia e faísca.





Pelas gretas do bueiro escuro, ela espia...

Observa o humano em seu trágico enleio,

sua vã boêmia e lodosa paixão pela treva,

pelos vícios da noite, descolorada e puta.





Copacabana não é mais a mesma,

faz tempo.

O turismo predatório impôs a sua marca

e uma vida noturna decadente jorra agora

por sobre o calçadão e o mar, por sobre os

carros que passam e as calçadas que ficam

brancas, pretas, sinuosas.





Mas eis que um ronco sinistro

e mui sinistro se eleva do solo, de súbito!...

Estremece a calçada, o letreiro dependurado

em amarelo ovo...

Ou foi só impressão?...





Olhares ébrios, prostituídos

procuram a origem do sismo... Ora,

foi cisma.

Só pode.





As gargantas se desapertam, então, e as vozes

se soltam de novo:

em gritos gagos de gozo sem alegria arraigada

a noite segue.


Igor Buys


Leia o final aqui: http://poesias-igorbuys.blogspot.com/

DERIVA DOS CONTINENTES

Uma loura lactante,

mãe há poucos meses,

biquíni de onça,

perdida

em si mesma

e a procura de Deus;

uma mulata,

vestida de prata

balé e samba;

um homem vestido

de silêncios.



Uma cena por demais

pitoresca

para ser pintada,

exceto por Lautrec

mas numa tela cubista

e carioca;

um beijo

de três bocas,

uma boca de quimera,

de pantera negra e aur-

ora pintada,

com a cidade roxa

e amarela

ao fundo, diluindo-se

na sarjeta incendiada

de infernos que piscam

em fornos vermelhos,

azuis e verdes de além.



Duas, nada menos que

duas, nuas

como rios que se encontr-

am negrossolimônicos

transbrasileiros

e dasaguam em barro-

-carne lua, para ao barro

não retornarem jamais

exceto como grito

exceto como cimitarra

contra o peito do tempo

que todos querem morto-

-e-ressurreto



dionisiano

para não perder do ag-

ora o seu sempre,

a sua alma e-

terna e ensaguentada.



E enfim, a quase impossível,

a quase não vista

ternura e suas pétalas róseas,

seus pés delicados,

floresce entre os náufragos,

os que se sabem a deriva

na deriva dos continentes,

com seus risos frouxos,

com seus dedos enlaçados,

numa terça sem termo,

num quarto sem quartos,

num Rio sem rumo,

que volve a oceano.



Igor Buys

O ouvinte volátil

Nunca aprendi nada ouvindo palestra. Por favor, não entendam mal: nada contra palestras, seus temas e palestrantes. Eu mesmo me tornei autor de palestras, nesta minha vida de caixeiro-viajante, o que torna a afirmação ainda mais dolorosa. O problema é que, por alguma razão genética ou cultural, psicológica, neurológica ou o que seja, não consigo me concentrar mais que alguns minutos ouvindo uma palestra. O mais grave é que essa minha desatenção mortal e irrecuperável é deflagrada qualquer que seja o tema e meu grau de interesse no assunto. “Os dez mandamentos da gerência eficaz”, por exemplo, que me atraiu quando resolvi abrir uma empresa; ou, na área de ciências religiosas, “A teoria do big-bang e a revelação da Bíblia”; ou ainda, já no meu campo específico de ação, a literatura, palestras como “Flaubert, realismo e foco narrativo”, “Epistemologia da morte do autor”, ou algo mais simples e direto, como “Panorama sintético da poesia pós-moderna”, todas essas palestras vivas e interessantes acabam já em oito ou dez minutos perdendo os vínculos entre uma sentença e outra, criando vácuos de sentido, amnésias imediatas do que eu acabei de ouvir, como relâmpagos vazios – e no mesmo instante quero me lembrar se realmente tranquei a porta de casa com a chave ao sair (fecho os olhos e tento ver a imagem passada), qual o prazo final da entrega do imposto de renda, e, na luta por voltar à palestra, especulo se aquele careca da terceira fila vai enfim perceber – olhos pregados no palestrante – que a moça atrasada e aflita, em pé ao seu lado, elegante com seu vestido azul, precisa passar por ele para chegar ao lugar vazio adiante.



Quando consigo retornar à palestra, agarrando o fio da meada, tudo já é definitivamente grego. Ainda resisto alguns minutos, catando pedaços de frase, alusões, fragmentos, referências soltas até que, desistindo de vez, largo a corda já rota do evento e naufrago à deriva de meus pensamentos avulsos. Só me resta divagar, mantendo a calma, e deixar o tempo correr, boiando e seguindo a lei inexorável de que toda palestra, por mais longa que pareça, numa hora chega ao fim.



A ideia de que eu sofreria de alguma síndrome de desconcentração crônica, que às vezes me ocorre, é desmentida todos os dias pelo fato de que passo três ou quatro horas lendo, absolutamente atento a cada palavra impressa, esquecido de que existe um mundo em torno. Durante a leitura, esqueço de fazer um lanche e mal ouço o telefone tocar. O que o ouvido tem de relapso, os olhos têm de atenção. Isso me levou a matutar uma inovação tecnológica que me devolvesse enfim o prazer de ouvir palestras: o uso de legendas em 3D, como no cinema. Enquanto o palestrante falasse, eu leria as legendas flutuantes no palco. Mas é pouco provável que inventem algo assim só para satisfazer dois ou três distraídos.

Cristovão Tezza.
Fonte :Gazeta do Povo.29/03/2011

A Oca

Os 500 anos de Descobrimento dão origem a palestras e exposições. Mirna era uma jovem antenada no circuito das artes . Visitava uma mostra relativa à cultura indígena. Deparou-se com a réplica perfeita de uma tabajara. Entrou. Calor. Tirou a roupa. O segurança Otoniel foi intervir. Mas não resistiu ao corpo deslumbrante daquela Iara pós-moderna. Fizeram amor sem precisar de rede. O público aprovou. Os dois hoje realizam performances artísticas e já foram convidados para uma turnê internacional.Sempre se encontra abrigo para viver um amor bem brasileiro.

Voltaire de Souza. "Vida Bandida "
"Humor é o caos emocional relembrado em tranqüilidade. "
James Thurber

Sobre a Beleza

Nessas noites de sexta, o PS de Gabriel faz a alegria e a tristeza de centenas de pessoas . Crianças engasgadas, esposas esfaqueadas , jovens com feros atravessados entre as pernas , vírus e bactérias de todo tipo. Gabriel se diz enfermeiro, mas dispõe de um salário de 220 reais, rodo, pano, balde e detergente de amoníaco, que incomoda os asmáticos. Como sempre, aguarda os médicos desistirem de um paciente, para então limpar o sangue do chão e ajeitar-lhe as roupas reviradas. Sem que o vejam, utiliza seu estojo de maquiagem. Nos mortos mais assustados , aplica base , rímel e batom. Não se trata de profanação ou perversidade. Gabriel apenas sente que, diante de cadáveres bonitor, os parentes podem chorar com mais verdade.

Fernando Bonassi ."Da Rua "

sábado, 2 de abril de 2011

Um país em ruínas

Há algo de atávico na nostalgia rural – nós amamos a ideia de que o campo permitiria uma vida mais “humana”, ainda que no terceiro dia de experiência já dê saudades da internet na veia e do saboroso inferno urbano


A bruxa está solta – terremoto seguido de tsunami no Japão, com o fantasma nuclear soltando fumaça, e chuvas torrenciais por aqui, levando casas, pontes, estradas e vidas. Entre a natureza e a civilização, os bípedes implumes corremos de um lado a outro, no desespero de repor a ordem do mundo e voltar em segurança à rotina. Para dar algum sentido às coisas, há quem busque explicações transcendentes para a tragédia – castigo divino, conspiração dos astros, o peso do destino. Já eu prefiro ficar com os pés na terra, que, dizem, por aqui não treme, ainda que desça o morro com as águas. Nessas situações, vê-se o melhor e o pior – a solidariedade comunitária de um lado, a precariedade das obras, de outro. E a clássica inoperância do Estado brasileiro, com seus bolsões de eficiência agindo mais pela vontade firme de pessoas e comandos do que pelo azeitamento da máquina. Minha sensação, entretanto, é de viver sempre em um país em ruínas – parece que, ao mínimo aperto, nada funciona.


Há uma semana tive de ir de carro a Florianópolis, o que por sorte consegui fazer sem problemas, num dia de estrada liberada; já a volta levou nove horas. Todas as opções de chegar aqui, sempre através da BR-116, eram ruins. A recomendada pela Polícia Rodoviária era muito extensa, mas passava por rodovias maiores e pavimentadas. Preferi me aventurar com um GPS recém-adquirido (não resisto a uma boa traquitana) pelo interior, com suas estradinhas, vacas e bananeiras – de Blu­­­menau, avancei por Indaial, Itaiópolis e Doutor Pedrinho, onde almocei e de onde saí do conforto pegando uns 50 quilômetros de estrada de terra. Foi a melhor parte: silêncio, cavalinhos no campo, hortências à margem, casas perdidas, igrejas, lugarejos e quando muito um ônibus escolar aqui e ali. Por felicidade, o tempo estava bom. Há algo de atávico na nostalgia rural – nós amamos a ideia de que o campo permitiria uma vida mais “humana”, ainda que no terceiro dia de experiência já dê saudades da internet na veia e do saboroso inferno urbano.


Passado o interlúdio sertanejo, em que, desviando dos buracos e fazendo curvas suaves, sonhei uma vida paralela que jamais vou viver, criando galinhas e contemplando araucárias da varanda de madeira pintadinha de amarelo, fui despejado brutalmente na BR-116, onde avancei a passos de cágado espremido entre duas carretas, durante horas. O Brasil inteiro passava pelo mesmo funil naquele triste fim de tarde. Lembrei que, meio século atrás, vim criança para Curitiba exatamente na mesma estrada, então a orgulhosa BR-2, o primeiro asfalto que unia o Sul do Brasil, nos brilhantes anos de JK. Cinquenta anos depois, a estrada continua exatamente a mesma, de mão dupla, com o mesmo traçado, camada sobre camada de licitações e asfalto – e nessa tarde de março de 2011 prosseguia sendo a única opção. A diferença é que agora tem pedágio.

Cristovão Tezza
Fonte: Gazeta do Povo

Vento Sul

Se me toca a noite turva

Vem-me tua presença sorrateira

Lunares brilhos, sons inimagináveis.

Se meu mal me alforria

Tenho-te o bem numa redoma

Porões de mim.

Indigna retorno-me pensar

Que todo o impuro, abstraio

Posto que me seja dado

Tudo que de puro é.

Autorizo-me audaciosa

Suspirando do fogo incólume

Transpirando teus suores.

E se me foge a noite

Desenho-te na vidraça embaçada

O perfil de mim

Que te sai da boca

Num beijo muito dentro

Muito perto

Muito junto.

Submeto-me a tortura

Que vem da ausência tua

Nestas noites de lua cheia

Norteando verões

Trazidos dos teus ventos, sul.



Cássia Da Rovare

MAIÊUTICA DO SONETO

O tenso cinzelar das letras sobre a alva,

Enevoada folha, imprime a tinta malva.

Na veia azul da mão, no veio da palavra

A mesma vida escorre, e pulsa, e javra.



Estrofe: silencio. E de novo a valva

Tomo, e o bisturi. Já sem nenhuma salva,

Rebento o hemistíquio, puxo o Verbo – avra

Kedabra! –, nasce e chora!... Eis a minha lavra.



Eis quando os ossos secos se ajuntam no chão*;

Eis quando a letra mata e faz se erguer do caos

O soneto em archote, ensangüentado em pranto,



E a palavra vivaz, afora deste, vibra

Em um corpo de luz, que é filho em cada fibra

Do maieuta poeta eviscerado e santo.





Igor Buys

13 de agosto



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*Alusão: Bíblia cristã, Ezequiel 13.7-14

Itacoatiara