domingo, 3 de abril de 2011

O ouvinte volátil

Nunca aprendi nada ouvindo palestra. Por favor, não entendam mal: nada contra palestras, seus temas e palestrantes. Eu mesmo me tornei autor de palestras, nesta minha vida de caixeiro-viajante, o que torna a afirmação ainda mais dolorosa. O problema é que, por alguma razão genética ou cultural, psicológica, neurológica ou o que seja, não consigo me concentrar mais que alguns minutos ouvindo uma palestra. O mais grave é que essa minha desatenção mortal e irrecuperável é deflagrada qualquer que seja o tema e meu grau de interesse no assunto. “Os dez mandamentos da gerência eficaz”, por exemplo, que me atraiu quando resolvi abrir uma empresa; ou, na área de ciências religiosas, “A teoria do big-bang e a revelação da Bíblia”; ou ainda, já no meu campo específico de ação, a literatura, palestras como “Flaubert, realismo e foco narrativo”, “Epistemologia da morte do autor”, ou algo mais simples e direto, como “Panorama sintético da poesia pós-moderna”, todas essas palestras vivas e interessantes acabam já em oito ou dez minutos perdendo os vínculos entre uma sentença e outra, criando vácuos de sentido, amnésias imediatas do que eu acabei de ouvir, como relâmpagos vazios – e no mesmo instante quero me lembrar se realmente tranquei a porta de casa com a chave ao sair (fecho os olhos e tento ver a imagem passada), qual o prazo final da entrega do imposto de renda, e, na luta por voltar à palestra, especulo se aquele careca da terceira fila vai enfim perceber – olhos pregados no palestrante – que a moça atrasada e aflita, em pé ao seu lado, elegante com seu vestido azul, precisa passar por ele para chegar ao lugar vazio adiante.



Quando consigo retornar à palestra, agarrando o fio da meada, tudo já é definitivamente grego. Ainda resisto alguns minutos, catando pedaços de frase, alusões, fragmentos, referências soltas até que, desistindo de vez, largo a corda já rota do evento e naufrago à deriva de meus pensamentos avulsos. Só me resta divagar, mantendo a calma, e deixar o tempo correr, boiando e seguindo a lei inexorável de que toda palestra, por mais longa que pareça, numa hora chega ao fim.



A ideia de que eu sofreria de alguma síndrome de desconcentração crônica, que às vezes me ocorre, é desmentida todos os dias pelo fato de que passo três ou quatro horas lendo, absolutamente atento a cada palavra impressa, esquecido de que existe um mundo em torno. Durante a leitura, esqueço de fazer um lanche e mal ouço o telefone tocar. O que o ouvido tem de relapso, os olhos têm de atenção. Isso me levou a matutar uma inovação tecnológica que me devolvesse enfim o prazer de ouvir palestras: o uso de legendas em 3D, como no cinema. Enquanto o palestrante falasse, eu leria as legendas flutuantes no palco. Mas é pouco provável que inventem algo assim só para satisfazer dois ou três distraídos.

Cristovão Tezza.
Fonte :Gazeta do Povo.29/03/2011

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