segunda-feira, 4 de abril de 2011

A cadeirinha do guardador

Como as cidades são hoje todas do automóvel, quem dirige sabe: sempre que é preciso estacionar, duas ansiedades se instalam na alma. A primeira é achar uma vaga. Não é fácil. Deixar o mastodonte refrigerado em algum lugar é tarefa difícil, e às vezes cara, se largamos o bicho num estacionamento. Quando temos sorte, a outra ansiedade é a sombra que aparece instantânea, à beira da rua disputada: o guardador de carros.


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Talvez nenhuma ocupação – na verdade, profissão, ainda que não regulamentada em lei, especificada em itens, ou protegida por alguma ordem legal – define tão perfeitamente a cultura e a sociedade brasileira quanto a de “guardador”. Há uma carregada simbologia naquela figura quase sempre simpática que se mantém em geral à meia distância do motorista toda vez que achamos uma vaguinha. Ele não se aproxima muito, para não nos assustar; os braços são sinalizadores de paz, o polegar erguido, que se segue à voz cordata, o tom sorridente (Uma olhadinha aí, doutor?). Ele sabe perfeitamente que exerce uma função ambígua, quase que secreta, daí o cuidado da aproximação; e também sabe que, por conclusão tácita, o motorista teme que um “não” pode ser um risco (até no sentido literal, segundo a paranoia nossa de classe média sofrida, o carrinho lustroso pago à prestação que não acaba nunca). Portanto, preferimos também circular na ambiguidade, entre legitimar o papel do guardador e repudiá-lo como algo “ilegal”. Melhor aceitar, mas com reservas, em geral mal olhando a figura, apenas fazendo um gesto rápido de concordância. Com o gesto, há implicitamente uma moeda em jogo, também não especificada. É o invólucro oficial da esmola.


Sim, a rua é um espaço público. Mas não somos alemães, suíços ou finlandeses para brandir a lei na cara de um infrator. No país do mensalão, que moral nos resta para reclamar do guardador? Mesmo porque sabemos que este “usurpador” do espaço público é pobre – na verdade, bem menos que pobre. É alguém – a idade varia de 10 a 60 anos – que não tem ou não encontrou absolutamente nada melhor a fazer senão passar 12 horas seguidas, todos os dias, olhando para os carros dos outros. Sobrou para ele a calçada, de que ele discretamente toma posse, também simbolicamente, com uma cadeira meio quebrada, um toco, um banquinho velho, com alguns sinais em torno de que ele “está ali”: uma garrafa, uma marmita, um casaco puído (como o célebre casaco na cadeira do funcionário público que só deu uma saidinha e já volta). E, como todo espaço público brasileiro, também cria, por força de leis não escritas mas muito eficientes, suas máfias, cartórios, intermediários, repassadores, quadras nobres, horários privilegiados, exploração de menores e violência.


Há dois modos de medir o país – um deles, é pela força da sétima economia do mundo; o outro é pela cadeirinha do guardador de carros na calçada da esquina.

Cristovão Tezza.
Fonte: Gazeta  do Povo

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