terça-feira, 31 de março de 2015

"Poeta criado em faculdade de letras nunca vai entender que a vida bate forte e nunca será elegante."

 Diego Moraes
-- Oi.
-- Oi.
-- Não me viu?
-- Desculpa, tenho andado distraído.
-- Você vive distraído -- e ela riu.
-- É verdade. Eu já nasci distraído. Meus olhos muitas vezes estão voltados para dentro.
-- E o que você vê quando olha para dentro?
Agora foi ele que riu. Na verdade um sorriso. Um sorriso tímido de quem olha muito para dentro.
-- Eu vejo uma grande escuridão. E algumas luzes.
-- Você é engraçado. Fala como se fosse um personagem.
-- Às vezes eu acho que sou um personagem.
-- E o que acontece no seu livro?
-- Nada. Quase nada.
-- Que pena. Se eu entrasse no seu livro podia acontecer alguma coisa.
-- O que, por exemplo?
-- Ah, a gente podia tomar um sorvete.
-- Sabe que é uma boa ideia?
-- Tomar um sorvete?
-- Sim, mas sobretudo entrar na minha história.
-- E o que eu faria na sua história? -- ela perguntou, com um olhar enigmático.
-- Você podia ser uma luz. Uma dessas luzes que brilham na minha escuridão interior.
-- Ah, não quero.
Ele estranhou. Pela primeira vez demonstrou espanto.
-- Não quer?
-- Não, não quero ser apenas mais uma luz.
-- Garanto que você seria uma das estrelas mais brilhantes.
-- Não basta.
-- O que você quer ser então?
-- Quero ser teu sol. E brilhar tão forte que as outras estrelas apaguem.
-- O sol da minha noite?
-- Sim, o sol da sua noite.
-- E se apagar um dia? Os sóis sempre morrem.
-- Não importa. O que importa é que enquanto brilham não há necessidade de outras luzes.
-- Bonito o que você disse. Vou botar na minha história.
Ela riu de novo.
-- Quando que você vai sair do seu livro imaginário?
-- Nunca. Agora que você entrou não vou sair nunca.
-- Há-há. Mas a história termina bem?
-- Não sei. Se for história de amor acaba mal. Como todas as histórias de amor.
-- Por quê? E o "foram felizes para sempre"?
-- Olha, sempre que você ler num livro "foram felizes para sempre", na verdade quer dizer "ficaram entediados para sempre".
Riram.
-- É, o que importa é o brilho do momento -- disse ela. -- Mas então, termina mal esta história em que estou entrando?
-- Não sei. Pode ser que sim, pode ser que não. Saber o final tira a graça.
-- É verdade. Vamos curtir então enquanto brilha o sol da meia noite...
-- Quanto mais profunda é a noite, mais bonita é a luz.
-- Estou dizendo: você fala que nem protagonista de romance.
Ele riu.
-- Bom, em que parte da história estamos agora? -- tornou ela.
-- Ainda no começo. Na parte em que ela convida ele pra tomar um sorvete.
-- E ele aceita?
-- Ele já aceitou. Que sabor você quer?

Otto Leopoldo Winck

NOTURNO


De repente, quando abri a janela, percebi:
a noite chegara. Não me dera conta
do adiantado da hora, da mudança do tempo, da súbita friagem.
Não vira o sol se pôr nem as estrelas se acenderem uma a uma sobre os edifícios.
A noite instalara-se sem aviso,
sem nenhum pressentimento.
Obrigado, irmãos, pela companhia até aqui.
Pelas risadas, pelas lágrimas, pelas confidências inesperadas.
Mas agora é preciso que eu vá
– e que eu vá sozinho.
Sem nenhum amparo, nenhum roteiro, nenhum Virgílio.
Algo me diz que eu já conheço o caminho:
uma estrada comprida e levemente sinuosa
a mergulhar no breu.
Nasci da noite. Cresci contra ela.
Contra ela desfraldei minhas bandeiras de insurgência.
Ah, foi dura a peleja. Agora eu retorno a ela,
reconciliado, apaziguado, completamente submetido.
Dama dos abismos, aqui estou.
Estuário de todas as fontes, oceano de todos os danos, doce amante terminal.
Abre os braços brancos para mim. Dá-me os teus úberes vialácteos,
a vastidão incalculável do teu ventre, o teu sexo
túrbido e tépido.
Finda esta peregrinação que ao final me pareceu tão curta,
descalço minhas sandálias
conspurcadas pelo barro das veredas. Eis-me aqui, senhora,
nu e exaurido, para o último abraço, a última cópula, o última trago.
Diante das tuas portas engalanadas.
Diante dos teus muros altos.
Diante do teu fosso.
Desde sempre.

Otto Leopoldo Winck

Trilha Sonora


A cada palma de espaço
a alma ganha amplidão
E como num lento passo
aparente rumo ao nada
Apanha no ar uma canção
na música das palavras
E cada naco de nuvem,
cada ritmo de frase ou rio,
Pausa, mistério, passagem,
toada, à toa, estrondo de onda,
Em cada grilo, grito de pássaro,
a paisagem se faz som.

(Rodrigo Garcia Lopes)


https://escamandro.wordpress.com/…/4-experiencias-extraord…/

DESAPARECIDOS

(Poema de Isabel Furini)

sombras nos interstícios das lembranças
tóxico veneno preenche os espaços vazios
e permite desenhar os rostos dos desaparecidos
os sonhos irrealizados respiram pelos túneis do ontem
(cinzelam as vozes do passado)
gritam
gritam nomes e mais nomes
em vão
clamam no vão do passado e nas fissuras do tempo
e no poço das recordações
para que todos saibam que eles não lutaram em vão
– clamam
em vão
clamam
ninguém responderá a esse chamado
filhos pais, amigos, irmãos,
os desparecidos
só deixaram rastos de olhares e palavras
ternuras e saudades
e tristezas
como as folhas das árvores no outono.

"Textolatria: incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, não obstante a capacidade de lê-los, portanto, adoração ao texto."

[Flusser | filosofia da caixa-preta]
Jussara Salazar
confundir uma criança negra com um vendedor de coisas
achar que uma criança negra e vendedor de coisas não poderia estar ali
expulsar.

sutil.

PULMÃO DE DEUS


Sussurro suave ao redor, nuvem
de seda embalando astros.
Aqui, onde respira a vida
perfume de malva, silêncio de córrego
entre pedras. Ar lúcido de luz.

Bárbara Lia in O sal das rosas

POEMINHA DO BENZADEUS ou DURMA-SE COM UM BARULHO DESSES

Uma das coisas que mais ouvi, ouço e, certeza, ouvirei na vida é “ah se eu tivesse” seguida de um rosário interminável: “ouvido minha mãe”, “feito aquele concurso”, “diminuído a velocidade”, “a experiência que eu tenho agora”, “seguido minha intuição”, etc etc etc. A Páscoa está aí, batendo em sua porta. É a renovação, o perdão sem limites. Então faça isso pelo amor de deus, ou a sua própria pele. Leia o poema do primeiro comentário e saia dessa antes que eu perca a paciência e você o sono.

...

POEMINHA DO BENZADEUS
ou DURMA-SE COM UM BARULHO DESSES

todo santo dia
um pobre diabo me aparece
fala o que faria
se deus ouvisse a sua prece

mas não faz nada
e só pede o que lhe enriquece
eu dou risada
deus é quem diz “vê se me esquece!”

mas não escuta
e mais assombração parece
filho da puta
nem rezando, a deus obedece

ah...se eu pudesse...
deixa pra lá...ninguém merece!

antonio thadeu wojciechowski

orfanato


ser órfão é mais do que se privar de pai e mãe. ser órfão, órfão de pai e mãe, de repente, é deixar de ser filho. ou filha. isso pode parecer pouco, mas, quando, num só golpe, os corações amorosos de ex-filhos se veem assim, subitamente "desfiliados" da vida, vem uma sensação estranha. um grande susto.
é um susto que não passa rápido e, frequentemente, essas criaturas, filiais sem matrizes, vagam feito zumbis ou cometas pelo mundo, sem saber direito onde recolocar o filho amado nelas, de volta ao mundo, na órbita em que todos gravitamos, o amor.
a terra redonda, no entanto, nos ensina que a resposta está bem perto de nós mesmo, em nós mesmos, herdeiros legítimos desse sentimento difuso que, de uma hora para outra, passou a rondar sem dono o nosso peito, no vácuo mais triste do universo.
a terra nos diz que apenas uma imensa roda de perdão e de alegria poderá re-abrigar esse amor jogado no chão do orfanato. nessa roda cabem todos os filhos-não-mais-filhos, os netos-não-mais-netos, os bisnetos-não-mais-bisnetos, as noras-não-mais-noras, os genros-não-mais-genros, os amigos queridos, essa condição eterna.
quanto maior, mais firme e mais unida for essa roda, mais chance teremos de prosseguir em paz na busca do sonho para o qual nascemos todos: sermos eternamente considerados, por nós mesmos, filhos legítimos do Criador.

(marcílio godoi)

descomunal


e se os seus dentes sangrassem a hóstia
e o papai do céu a condenasse
ao fogo eterno?
* líria porto
Vejo minha infância nos vãos das tábuas da velha casa. Ouço as lembranças nas conversas madrugueiras dos meus avós: "O que tem na marmita, véia" Meu passado tem fumaça, cheira lenha queimada do fogo que me aquece as saudades: "Tem arroz, feijão, couve e torresmo, pega ovos no galinheiro que frito pra você, véio". Tenho na boca o gosto dos velhos tempos do café moído em casa e passado no coador de pano.
JDamasio


Rascunho

CAIXA PRETA


Chamam de “caixa preta”
o artefato eletrônico
que no avião
registra informações
sobre a causa do desastre.
Científica
-tem suas contradições:
não é aquilo
a que se assemelha:
posto que impenetrável
-pode ser aberta-
e para ser
mais facilmente encontrada
a caixa preta
-é vermelha.
-----------------
Affonso Romano Santanna


in Sisifo desce a montanha, Rocco.

POEMA DO JORNAL


O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de tipos a doce música mecânica.


( Carlos Drummond de Andrade,em Alguma Poesia)

segunda-feira, 30 de março de 2015


Cidade dos sonhos
Antes do amanhecer
estarão tomando a praça central.
A imensa cavalaria
sedenta pelos jardins,
arqueiros posicionados
no alto das colinas,
a infantaria
dinamitando as pontes.
Pé ante pé, rua a rua,
as posições sendo tomadas.
No entanto,
antes que declarem o seu triunfo,
um golpe decisivo dissolve o inimigo.
Abro os olhos: acordar basta.
2
Um dia a guerra estará perdida
e o povo daquela cidade,
que só existe em meus sonhos,
ficará entregue a própria sorte.
Um dia, quando eu não acordar mais,
a cidade se extinguirá
com todos que por lá transitam,
ou eles migrarão para outros sonhos?
Quem sabe, enfim,
esse seja o dia em que terei que defendê-la
de corpo presente, com as próprias mãos...
3
Saberei eu no sonho de quem?

Rafael Nolli



Anote tudo no formulário padrão
atravesse a rua na faixa de pedestres
siga as datas comemorativas
não se esqueça dos presentes
use a rouca conforme a ocasião
leia os mesmos jornais
olhe os mesmos programas
compre joias e qualquer outra historia
você tem opinião
carregue uma bíblia na bolsa
e se falhar use uma pistola
não caia na rede se não for muito intimo
acredite em biscoitos da sorte
finja surpresa
finja-se de morto.



 Clarimundo Röhrig
Tive mais um ano de cão. Só nós sabemos(pois só quem passa por isso sabe dar o valor) dos danos que essa vida nos causa. E eu, olha, eu fiquei totalmente danificada. Algumas pessoas deixam um rastro tão nefasto na vida de outras que não consigo ver de outra forma senão essa: um dano. Um rasgo. Um aleijão. E não, não passa. Nada passa. Tudo que nos acontece fica marcado de uma forma ou de outra em algum lugar. A gente pode até achar que passa, pode achar isso nos momentos bons, mas aquilo fica lá, entranhado em si. Trauma pode se manifestar em forma de raiva, de desprezo, pode virar uma repetição de padrão destrutiva, pode te deixar para sempre com medo, pode te fazer ficar por demais destemida. O que consigo ver que aconteceu comigo é o seguinte: eu sequei. Me sinto toda esfarelada. Danificada. Rachada como um terreno arenoso onde é necessário um instinto filho da puta para poder sobreviver. Até nasce uma coisinha ou outra ali, mas qualquer coisa mais delicada murcha e morre rapidinho. É assim que eu ando me sentindo. Calcificada por dentro.
Se quiser, posso te ensinar a sentir dor. Eu sei sentir dor e sobreviver a ela de uma maneira que nem eu acredito. Eu nunca vou cansar disso, nunca vou precisar de coragem para me apaixonar porque preciso de paixão para escrever. Porque é isso que eu faço. Eu escrevo o dia inteiro, eu acordo e vou escrever, eu acordo pensando nisso e durmo pensando nisso. Mas se não tivesse paixão, não ia adiantar porra nenhuma.
Isso era eu á uns anos atrás Uau, ein? Que força, que furacão. Eu era, eu era. Mas a vida tem-me tramado demais a vida não, mas quem tem entrado nela ...
Vou dizer até te convencer de que a solidão é muito, muito mais dolorosa do que qualquer paixão. O nada é a pior coisa que pode acontecer. O nada é seco, é uma árvore esturricada na beira da estrada, é uma plantinha sozinha no meio do deserto, uma plantinha que sabe que vai morrer ali, seca e sozinha. É assim que me sinto ...
Sinto que não sei mais sentir, não sei mais me deixar sentir, não sei mais me entregar. EU NÃO SEI MAIS ME ENTREGAR. Nem por duas horas. Nem por meia hora. Fingir eu nunca soube mesmo, e nem quero aprender. Nunca pensei que passaria por isso. Eu achava que seria para sempre a impetuosa jovem das linhas acima, que quebrava a cara repetidamente e levantava e levantava e cuspia sangue e dizia mais uma vez me levantei. Não quebro mais a cara porque não caio, e se cair, não tem sangue para jorrar, não tem coração para bater, não tem porra nenhuma há anos. Eu até tentei mentir que tinha e só consegui sentir ódio. Ódio de mim, ódio daquilo tudo onde eu tinha me metido nem sei como é uma frustração inenarrável. Acho que sequer posso dizer que aquela era eu. Era um pedaço, um fragmento pequeno e incompleto de mim que jamais vingaria. Bom, eu tentei.
Eu sinto muito, mas eu não sinto mais nada.
(...)
A hipocrisia se revela...
Em rostos cobertos,como se fossem santos.
Esses rostos não me enganam mais,
Nessas faces afundadas na mentira.
Naqueles que acreditam,iludidos
Um dia irão ver as faces derretidas e verdadeiras.


Maria Rita 

sábado, 28 de março de 2015

Dos meus amigos quero tudo.
Bebo do seu néctar
E também bebo sua bile.
Quero vasculhar o inferno íntimo de cada um.
Podem compartilhar comigo também suas excrescências:
Já aprendi a realizar auto-bioremediação!
A amoralidade faz parte das minhas relações interpessoais:
O que me cabe é o que me cabe.
Não visto meus amigos com minhas modelagens de vida.
Quero saber do que ignoram,
Porque choram,
O que se perguntam,
Quando sentem frio.
Me interesso por fotografias de viagens,
Histórias pessoais e poesias.
Podemos ainda :
Trocar receitas de cup cake salgado,
Olhar estrelas ou para além delas.
Declarar guerra civil em qualquer país da América do Sul.
Me tragam seu inteiro
Também tragam o seu melhor,
Mas não apenas ele.
Amem ou odeiem pessoas,
Tenham filhos e netos,
Adotem cachorros, gatos e calopsitas:
Tudo isso sempre perto de mim.
Se forem presos por desobediência civil,
Não me chamem para resgate:
Resolvam-se sozinhos e corram até mim
Para me contar os bons frutos colhidos do poder de persuasão.
Dos meus amigos,
Quero tudo!

LARISSA M. BARBOSA
Daniel Jorge Habib

Não foi perdido, nem adiado.
É verdade que nada pode suprir essa falta, e que ela dói. A casa da memória é marca, mas se recria.
Lá bem fundo, debaixo da pele, tem um eu.
Que é semente de floresta nova.


excelência


eu que banhei o seu corpo
troquei-lhe fraldas cueiros
ao vê-lo engravatado
ao lado desses doutores
seguro o riso
:
fazia xixi na cama
tinha cócegas coceiras
algumas pintas na bunda
o pinto pequenininho
e pavor de escuro

* líria porto

Nada a dizer

Nada a dizer
.
Esteja onde estiver
leve um carinho meu,
sinta no coração
um poema pingando mel...
.
Saiba duma certeza,
o céu do amanhã
será diferente do de hoje...
Mas as coisas do amor
têm sempre suas razões
e se estas não se explicam,
para que explicações?
.
Marçal Filho

Itabira MG
Peço inspiração à vida para entrelaçar palavras reprimidas pelas circunstâncias. Há tanto desconforto quando reservamos sentimentos... Guarda-se o peso de não dizer, o incômodo de não poder sentir, o desejo de voo.

Wanderlucia Welerson Sott Meyer

terça-feira, 17 de março de 2015



maria da pena

*maria da pena

ela rogou ao mar
o touro branco
como a neve

a cor de seu desmaio
pelas fracas porcelanas

um troféu de reinado
para lembrar aos homens
que costurava ilhas
dispersas

e domava com rigor e charme
caótico
os olhos náufragos
sobre sua pele
coletora

quando surge na avenida
willendorf
maquiada de ocre vermelho
vestida com couro curtido
desafia a vênus
anadiômene

e sussurram mitologias:
cuidado, a minotaura.


AC

aldeia


corvos pretos vestidos de automóvel
ratos letrados analfabetizados
esse é o país em que vivo
o que me habita é bem outro.
cadáveres dissecados na rua
turba de tigres animados em ódio
esse é o país em que vivo
o que me habita é bem outro.
rios tornados marginais de estrume
nascentes mortas por especulação
esse é o país em que vivo
o que me habita é bem outro.
mil risos de porcos comendo fezes
pastores de mil orgias consagradas
esse é o país em que vivo
o que me habita é bem outro.
os meninos batizados de pólvora,
os velhos armados com grandes mentiras
esse é o país em que vivo
o que me habita é bem outro.
homens comprando os homens comprazentes
sacos plásticos pra indisposição
esse é o país em que vivo
o que me habita é bem outro.

(marcílio godoi)

domingo, 8 de março de 2015

Vamos falar sério, meu chapa:
não há garantias na vida.
Nem toda rua tem esquina,
nem todo verso acaba em rima.

[olw]

O MISTÉRIO DA VIDA


Foi na praia. Uma lua enorme
nascia dentre as ondas negras.
O vento trazia o teu cheiro
junto aos teus cabelos
e a areia, sob os nossos pés descalços,
registrava um itinerário de fugas
e espantos. Não havia dúvidas nem certezas: o próprio medo
era feito de esperança. Se eu acreditasse em Deus, exclamaria:
a terra onde pisam as palmas de meus pés é santa.
De repente, as estrelas todas
caíram do céu e nas rudes canoas dos pescadores
o mistério da vida se refez: a areia, as algas, a noite, o brilho do farol
se fundiram numa concha branca
que eu recolhi na concha de minhas mãos em prece.
Admirei suas nervuras. Provei de seu mel,
bebi de seu vinho, surpreso de não haver desfalecido.
(A lua se erguera feito um estandarte de paz
e, na areia clara, nossas sombras azuis
lacraram um testemunho: perfeito na humanidade, perfeito na divindade,
conforme o augusto Concílio.)
Depois foi a escuridão, o precipício. E a convicção:
quando eu morrer – numa sexta-feira às três em ponto da tarde –
estarei pensando em você.

Otto Leopoldo Winck

O AMOR QUE MOVE O SOL


Teus olhos me iniciaram no espanto de viver:
fiquei perplexo quando descobri que não havia limites para o encantamento.
Ao caminhar pela praia,
debaixo da última lua da história,
eu compreendi que o beijo
é o pacto que une céus & terra & oceanos & povos & raças & línguas.
Teus pés me indicaram um novo caminho
enquanto teus dedos apontavam as estrelas do céu e os grãos de areia da praia do mar.
Podemos contá-las?
Fundaremos uma nova civilização?
Morreremos na última guerra?
As perguntas são tantas
que a única resposta é o amor.
Mas o momento supremo
foi quando dois seios me revelaram
que todos os poemas do mundo
cabem na palma de uma mão.
Otto Leopoldo Winck

a flor sonha
com pólens e estames
e acorda
toda molhadinha


Nicolas Behr
Nascido em Cuiabá, mas vivendo desde 1974 em Brasília.

Está no livro Nove Poemas e Um Segredo, publicado na coleção Leve um Livro, com distribuição gratuita.Dá pra baixar esse e outros livros da coleção no site:
www.leveumlivro.com.br

COSMOGONIAS


Os deuses nascem da angústia.
Diante do abismo, nasce um deus.
Diante da noite, nasce outro.
Diante do amor, diante da morte, diante do brilho do sol,
diante do mar tenebroso, diante da chama do fogo
nascem os deuses magníficos e terríveis
que nos atormentam.
Ajoelho-me ante o seu panteão, prostro-me, beijo a laje fria do chão.
Não sou nada. Eles também.
Mas juntos criamos o mundo
pelo poder da palavra que é nada também.
Tudo é nada? O todo pode provir do nada?
Deixemos estas perguntas tolas para os cientistas e os teólogos.
A mim cabe admirar o que não tem explicação,
o que não faz sentido
(admirar ou me indignar),
prostrado no chão, dançando no abismo, chorando a ida dos dias.
Os deuses nascem da angústia.
Diante de um par de seios, diante da semente na terra, diante da morte de um filho
nascem os deuses da revolta e da submissão.
A mim cabe apenas presidir o ofício divino
com minha mitra, meu báculo de pastor e meu espanto de criança.
Eu mesmo acendo as velas, exorto os fiéis, faço a leitura dos livros sagrados.
Depois transformo barro em cidades, trigo em banquetes, vinho em civilizações antiquíssimas.
Não sou nada. Os deuses também.
Mas juntos criamos os mundos
que povoamos nas noites de angústia e solidão.
Pois cada mulher e cada homem nascem sozinhos (ainda que gêmeos),
morrem sozinhos (ainda que num acidente de carro
ou na explosão de um míssil na Faixa de Gaza)
e entre um ponto e outro, entenda: ninguém te entenderá.
Nem os deuses. Nem você.
Os deuses nascem da angústia.
Os deuses e este poema.

olw

marinha
me ensina a te amar
menina
na areia da praia
diante da lua
nascendo do mar
me ensina a te amar
menina
na beira das águas
na esteira da lua
que nua
emerge da noite
me ensina a te amar
menina
que a noite é escura
e só o amor
pode nos iluminar
[olw]



ETERNA ALIANÇA


Vamos fazer um pacto?
Você me enche de beijos,
eu te cubro de abraços.
E depois de tudo desfeito,
a gente refaz o trato.
E se não tiver mais jeito,
eu te cubro outra vez de beijos,
você me enche novamente de abraços.

Otto Leopoldo Winck

Julia Wuestefeld

Um pouco de chorume. Só um pouco de suco de lixo, de dejetos. Todo o resto que não nos atrevemos levar à boca. Isso é tudo que se precisa pra dar a vida. Não. Minto. No meu pequeno e triste canteiro de plástico também tinha um pouco de terra morta e a chuva deve ter ajudado também. Mas aquele líquido milagroso, feito de tudo que tem de pior na casa, é irônicamente o que nos sustenta. Se a decomposição tivesse um sangue, seria este, que escorre da morte como o que escorre que de um corte.
E traz a vida. Faz germinar do chão, do banco de sementes da terra, as mais charmosas da mudas. Pequenos brotos de coentro, habanero e gengibre que não encontravam-se ali antes e que apareceram sem convite na varanda 50x130 do meu apartamento. Só por causa da água rica em morte e vida despejada ali naquela terrinha severina e estéril do quinto andar.

As minhocas, os pulgões, os vermes que agora povoam este pequeno território aéreo proclamam a esperança em um mundo aséptico, em um tempo quando os maiores bens que podemos ter são o Raid, o Álcool 70 e o Merthiolate. Enquanto isso, os minúsculos tatus-bola tocam suas minúsculas e proféticas trombetas: anunciando a vida que reina sobre a morte. As únicas coisas precisas são uma fatia de curiosidade e um pensamento inevitável que estamos fadados ao fracasso. Isso - e uma cultivação quase irracional do tão desprezado lixo.

MICROCOSMOS


Se fez uma tempestade
num copo d'água,
é porque havia dentro
um oceano inteiro.

[olw]


o bêbado assaz
desfaz a queixa
que o distrai

rotula o vício
num precipício
de amor e ais

bate o martelo
contra a garganta
que se contrai

levanta um brinde
para a vertigem

e bebe mais

William Teca

LITERATO CANTABILE


Torquato Neto

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício.
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala mais nada, sim. fim, a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.


MAIS UM BLUES


um blues na cabeça
um aperto no peito
um fogo na alma
este é meu destino
vagar pelas ruas
sem rumo
sem rima
sem metro
só pra ver se te vejo
num bar
num beco
ou na sombra
das cortinas
de tua janela
Otto Leopoldo Winck

METAFÍSICA


Nada faz sentido:
nem o mundo,
nem a vida,
nem você.
Este verso
é apenas o registro
de que ao menos
eu tentei.

[olw]

CARA A CARA


Detrás dos olhos
da cara
do cara
que no espelho
me olha agora,
eu penso:
vou morrer.
E daí?
E daí que não levo nada
das coisas que tive,
dos livros que li,
dos versos que escrevo.
(Tremem as pálpebras
do cara
e no peito, eu sei,
o coração.)
Detrás dos olhos
da cara
do cara
que no espelho
me encara agora,
pressinto:
não vai sobrar nada.
E daí?
E daí que vou dizer pra ela
na primeira ocasião:
danem-se as máscaras,
as caras más
e me dá um beijo agora!
(Tremem as pálpebras
e dos olhos
uma lágrima rola.)


Otto Leopoldo Winck

"Mulher bonita não é aquela que se carrega de maquiagem, se veste como a indústria da moda a obriga ou que fica mais parecida com o que o Photoshop é capaz de fazer. Mulher bonita é aquela que tem personalidade própria, liberdade e independência, que vive sua sexualidade livremente sem dar satisfação ao que a sociedade cobra dela. A beleza feminina está em ser dona de si mesma, do próprio corpo, que vive seus desejos e fantasias sexuais sem medo de religião."
 Thomas de Toledo

FLORES VOTIVAS

Eu
não tenho
medo da morte.
Eu tenho medo quando uma coisa cai
e quebra
como porcelana,
seja uma velha amizade,
um novo amor
ou o sentido – fortuito – dos orbes.
Aí vem o vazio,
pior que a morte,
que não cola mais os cacos espalhados no chão.
Eu
não tenho
medo da morte.
Eu tenho medo da ode
inconclusa, da carta interrompida,
do beijo suspenso,
seja este poema – que em si nunca estará completo –
seja a vida, esta obra sempre aberta...
Por que o medo então,
se tudo é acidental
e acidentado? Por que não assumir de vez
que este medo – que me paralisa no trabalho, na fila do banco, no amor –
não é, no fundo, no fundo, o medo da própria morte?
Talvez seja
para não dar o braço a torcer
a esta velha desmancha-prazeres
que corta os brotos
antes das flores, ou, quando não,
colhe as flores antes dos frutos
– e as oferece ao Nada.

Otto Leopoldo Winck
Curitiba descorada, onde a capelinha do santo foi emparedada, o leitE quentE azedou, o chineque bolorou e sobrou um endereço eletrônico para digitar o resto da história.

Lina Faria

NEM TODAS AS ÁGUAS DO MAR


No meio do dia,
no meio da vida,
a morte me amarga o desejo.
O simples soprar do vento,
que emaranha os teus cabelos
e turva as águas do rio,
me assombra o pensamento:
o dia é pouco
até para ser colhido.
Tua sombra na alameda
me faz lembrar que em breve
nem sombras nós seremos.
Então me dá tua mão
que eu sinto frio e tenho medo.
Medo de quê? – perguntas-me.
De ter pedir um beijo
e descobrir que entre mim e ti
há um fosso
que nem todas as águas do mar
vão encher.


Otto Leopoldo Winck

(tipo educação sentimental, saca?)


não te manda um whats
uma mensagem
a porra de um alô
o que você faz?
a) derruba meio litro de conhaque
e amanhece nas ruínas de são francisco
b) não faz nada (porque você é um bundão)
c) resolve escrever um livro que vai ser a obra prima da sua vida
d) compra uma kalashnikov, se manda pro curdistão e se alista no pkk


[olw]

terça-feira, 3 de março de 2015

OS GANCHOS DO AÇOUGUEIRO


Um dos suplícios mais usuais da Idade Média consistia em punçar
a língua dentro da boca com ganchos de açougueiro.
A vítima berrava para o carrasco mouco:
o único consolo dos mortos é não morrer nunca mais.
Ao ousar novas palavras,
o escritor aciona o fracasso do signo em dizer algo do que é:
o madeiro que me refresca a fronte é galho de limoeiro,
na tigela planto um trevo de quatro folhas para curar o aziago.
Aprendo com a voz do velho vento que sopra de leve a cortina:
“Só quem bebe do leque da pavoa
esquece vírgulas e mata a morte”.
Agimos sob a fascinação do impossível:
isto quer dizer que – uma sociedade incapaz de consagrar-se à ilusão –
está ameaçada de esclerose e de ruína.


Texto: Fernando José Karl

ALVÉOLOS DE PETIT PAVÊ


BRINCAR COM AS PALAVRAS


Brincar com as palavras
é perigoso.
Você faz amizades
e desfaz amores.
Pede água
e te dão fogo.
E até de noite
as palavras
te roubam o sono.
Por isso ser poeta
é para poucos.
Não é para quem quer
mas para quem ousa
dar um novo nome
às velhas coisas.
(Beijo, por exemplo, mais que ósculo
é lua de fogo sobre o Peloponeso...)
E só quem anda
no fio da navalha,
equilibrando impérios
e escombros,
sabe o risco contido
neste jogo.

Otto Leopoldo Winck

domingo, 1 de março de 2015

o poema, moça bela, é uma bala
destratada no cano do fuzil.
se eu te mando o amor que me retalha
já bebi cappuccino e rivotril
e o poema vira um corte de navalha."

RR
árvore do cerrado. cresceu comigo
rude e exótica. mas era minha
eu fui embora. ela não quis
ela não tinha pés. eu não tinha raiz

Nydia Bonetti

Estrelas e Sal


Lanternas esquálidas escarlates
A navegar escamas de Netuno.
Despejam o fluxo de outros mundos
Paridos em noite fria entre os lilases.
Atmosfera imersa em breu soturno,
Lançando redes de nylon, pescando sóis.
Gigantescos navios espaciais consumindo-se
Aprisionados no visco salino
Do enferrujado lastro dos anzóis.

Angela Gomes