segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Em minha última temporada de verão em Guaratuba eu era um mendigo velho desses que dormem próximos das pedras, dentro dos barcos fora de uso. todos me consideravam grotesco. minha aparência sugeria isso. mas minha fala era calma e preenchida de sabedoria. dois olhos não devem saber enxergar mais que o nariz. só voltava a falar quando estava novamente sozinho. nem sequer precisa mandar que fossem embora, ninguém aguentava ficar perto de mim mais do que alguns segundos. eu via o creme dos sorvetes jogados na areia se desmancharem. tinha muito tempo que caminhava pelos bairros perto da baía e era sempre como se eu tateasse sua decadência com o olfato. o vento que vinha do sul era o atirador, meus poros recebiam golpes que penetravam e corriam dentro. talvez na temporada anterior àquela tivesse sido uma espécie de criminoso, um brutamontes que sentia errado e demais. alguém em quem todos os sentidos foram nalgum momento lama e suplício. em temporadas ainda mais remotas, não sei, o inchaço de meu fígado devia ter desejado muito mais que rezas, cocaína ou a lua equilibrada feito um comprimido na ponta da língua. quem sabe ainda apenas costurar a tristeza assim como os médicos costuram barrigas esfaqueadas nas emergências dos hospitais públicos. quem sabe o odor das flores eram somente fóssil no rochedo dos pulmões. eu tinha sido um maníaco comedor de cigarros. a vida era desse jeito, flores lavadas com trezentos e quarenta doses de pinga por semana do lado de fora dos bares abarrotados, na rua da amargura, na pracinha central da desesperança. além dessas, devo ter vivido ainda noutra espectral época anterior, bem antes de eu vir a me transformar nesse velho fedendo a suor e urina, nem sei se exatamente como um mendigo em minha última temporada de verão
Luiz Felipe Leprevost


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