segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Crônica do fim do mundo


No caminho havia uma parede. No desvio havia o muro do não. Na montanha uma pedra sagrada intocável que algum profeta deixou há quatro milênios ou mais. No rio uma barragem desaba no inferno. Na pista de dança os vidros pontiagudos no chão. Na piscina alguém polvilhou antraz. No poço do Paraíso um balde de arsênio. Na única árvore do deserto os frutos queimam o interior de quem os devora e corroem e deixam cada um como uma boneca inflada, de pele humana e oca. No jardim noturno as corujas são carnívoras. Na pradaria a grama cheira formol e a terra é o cadáver apodrecido que exala o odor virulento de nossas almas amaldiçoadas. Os beija-flores não querem o néctar das flores do último jardim querem as jugulares e voam eletrizados aos pescoços distraídos com o bico agulha e a sede de mil vampiros. As borboletas cantam e enlouquecem, pois é o desesperado canto de profundezas negras. Não nascem mais crianças e o último violino rebentou suas cordas e está atirado em um sótão sombrio. Apagaram as letras de todos os livros de Poesia e a mente de quem as decorou e não há mais o encanto da palavra para oxigenar o humano. Os livros contam apenas as carnificinas da humanidade e são tantos livros de todas as tragédias que duplicaram o número de bibliotecas. As bibliotecas tem uma aura densa, pois agora elas guardam os atos cruéis, libidinosos, satânicos, escritos por robôs alimentados pela própria História. Uma noite um homem com dons de recuperar memórias sonhou com um poema de Dylan Thomas “Rage, rage against the dying of the light” e enlouqueceu com a beleza do ritmo e das palavras e pela certeza de saber que já caminhava pela noite escura e não dava mais para dar um passo atrás e não penetrar as trevas dos séculos e sentiu raiva dos que entraram – delicadamente – na noite escura... O louco que conseguiu vislumbrar um verso, perfurou os olhos e comeu soda cáustica com batatas fritas e brindou com uma água bege que sobrou do envenenamento das nascentes e, ao vislumbrar um lugar possível, de lírios e alfazemas, perfume de manhãs, cascatas, cerrou os olhos docemente como um pássaro que bate, pela primeira vez, as asas.


Bárbara Lia _ 2015

Nenhum comentário: