A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.
De lá para cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.
A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.
De lá para cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.
De Affonso Romano de Sant'Anna, o poema "Relógios
demais":
Há relógios demais nas esquinas do mundo.
Também nas vitrinas
em todos os pulsos
em cada corpo
em cada cômodo da casa
nas repartições aeroportos e hospitais.
Alguns têm rubis
outros são de ouro e diamante
e há os que não obstante a ansiedade do instante
têm os horários vários
em todos os quadrantes.
Tantos relógios!
como se não bastassem
a clepsidra em nossas veias
o relógio do Sol em nossas testas
e os carrilhões da consciência
lembrando que atrasados estamos
com o bilhete equivocado
no vôo
para a inabarcábel eternidade.
Há relógios demais atando
o peito e o pulso
da angústia humana
ruas inteiras vitrinas ostensivas
na Quinta Avenida, Corrientes, na Gran Via de Madrid,
Regent Street em Londres
e nos boulevares de Paris
sem falar nos formidáveis shoppings
de Tóquio e de Pequim.
De que valem seus alarmes
e despertadores se
não mais despertamos se
não nos alarmamos
com o horror
que neste instante explode
na dupla face do mundo
e chegaremos sempre tarde
para salvar o outro da bala
do vírus
e da fome de amor?
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