No sul da Bahia cacau é o único nome que soa bem. As roças
são belas quando carregadas de frutos amarelos. Todo princípio de ano os
coronéis olham o horizonte e fazem as previsões sobre o tempo e sobre a safra.
E vêem então as empreitadas com trabalhadores. A empreitada, espécie de
contrato para colheita de uma roça, faz-se em geral com os trabalhadores, que,
casados, possuem mulher e filhos. Eles se obrigam a colher toda uma roça e
podem alugar trabalhadores para ajudá-los. Outros trabalhadores, aqueles que
são sozinhos, ficam no serviço avulso. Trabalham por dia e trabalham em tudo.
Na derruba, na juntagem no cocho e nas barcaças. Esses formavam uma grande
maioria. Tínhamos três mil e quinhentos por dia de trabalho, mas nos bons
tempos chegaram a pagar cinco mil-réis.
Partíamos pela manhã com as compridas varas, no alto das
quais uma pequena foice brilhava ao sol. E nos internávamos cacauais adentro
para a colheita. Na roça que fora de João Evangelista, uma das melhores da
fazenda, trabalhava um grupo grande. Eu, Honório, Nilo, Valentim e uns seis
mais, colhíamos. Magnólia, a velha Júlia, Simeão, Rita, João Grilo e outros
juntavam e partiam os cocos. Ficavam aqueles montes de caroços brancos de onde
o mel escorria. Nós da colheita nos afastávamos uns dos outros e mal trocávamos
algumas palavras. Os da juntagem conversavam e riam. A tropa de cacau mole
chegava e enchia os cacauais. O cacau era levado para o cocho para os três dias
de fermento. Nós tínhamos que dançar sobre os caroços pegajosos e o mel aderia aos
nossos pés. Mel que resistia aos banhos e ao sabão massa. Depois, livre do mel,
o cacau secava ao sol, estendido nas barcaças. Ali também dançávamos sobre ele
e cantávamos. Os nossos pés ficavam espalhados, os dedos abertos. No fim de
oito dias os caroços de cacau estavam negros e cheiravam a chocolate. Antônio
Barriguinha, então, conduzia sacos e mais sacos para Pirangi, tropas de
quarenta e cinqüenta burros. A maioria dos alugados e empreiteiros só conhecia
do chocolate aquele cheiro parecido que o cacau tem.
Quando chegavam ao meio-dia (o sol fazia de relógio), nós
parávamos o trabalho e nos reuníamos ao pessoal da juntagem para a refeição.
Comíamos o pedaço de carne seca e o feijão cozido desde pela manhã e a garrafa
de cachaça corria de mão em mão.
Estalava-se a língua, e cuspia-se um cuspe grosso. Ficávamos
conversando sem ligar para as cobras que passavam, produzindo ruídos estranhos
nas folhas secas que tapetavam completamente o solo. Valentim sabia histórias
engraçadas, e contava para a gente. Velho de mais de setenta anos, trabalhava
como poucos e bebia como ninguém. Interpretava a Bíblia a seu modo,
inteiramente diverso dos católicos e protestantes. Um dia contou-nos o capítulo
de Caim e Abel:
— Vosmecês não sabe? Pois tá nos livros.
— Conte, véio.
— Deus deu de herança e Caim e Abel uma roça de cacau pra
eles dividirem. Caim que era home mau, dividiu a fazenda em três pedaços. E
disse a Abel: esse primeiro pedaço é meu. Esse do meio meu e seu. O último, meu
também. Abel respondeu: não faça isso meu irmãozinho, que é uma dor do
coração... Caim riu: ah! é uma dor do coração? Pois então tome. Puxou do
revólver e — pum — matou Abel com um tiro só. Isso já foi há muitos anos...
— Caim deve ser avô de Mané Frajelo.
— Anda. A avó de Mané Frajelo era rapariga no Pontal.
— Você sabe, Honório?
— Sei. A mãe morreu de fome quando não pôde mais trepar com
home. O fio nem aí...
— Miserave.
— Mas ele tinha vergonha da mãe.
— Mãe dele...
(Cacau, 1933.)
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