segunda-feira, 30 de outubro de 2017

CACAU



No sul da Bahia cacau é o único nome que soa bem. As roças são belas quando carregadas de frutos amarelos. Todo princípio de ano os coronéis olham o horizonte e fazem as previsões sobre o tempo e sobre a safra. E vêem então as empreitadas com trabalhadores. A empreitada, espécie de contrato para colheita de uma roça, faz-se em geral com os trabalhadores, que, casados, possuem mulher e filhos. Eles se obrigam a colher toda uma roça e podem alugar trabalhadores para ajudá-los. Outros trabalhadores, aqueles que são sozinhos, ficam no serviço avulso. Trabalham por dia e trabalham em tudo. Na derruba, na juntagem no cocho e nas barcaças. Esses formavam uma grande maioria. Tínhamos três mil e quinhentos por dia de trabalho, mas nos bons tempos chegaram a pagar cinco mil-réis.

Partíamos pela manhã com as compridas varas, no alto das quais uma pequena foice brilhava ao sol. E nos internávamos cacauais adentro para a colheita. Na roça que fora de João Evangelista, uma das melhores da fazenda, trabalhava um grupo grande. Eu, Honório, Nilo, Valentim e uns seis mais, colhíamos. Magnólia, a velha Júlia, Simeão, Rita, João Grilo e outros juntavam e partiam os cocos. Ficavam aqueles montes de caroços brancos de onde o mel escorria. Nós da colheita nos afastávamos uns dos outros e mal trocávamos algumas palavras. Os da juntagem conversavam e riam. A tropa de cacau mole chegava e enchia os cacauais. O cacau era levado para o cocho para os três dias de fermento. Nós tínhamos que dançar sobre os caroços pegajosos e o mel aderia aos nossos pés. Mel que resistia aos banhos e ao sabão massa. Depois, livre do mel, o cacau secava ao sol, estendido nas barcaças. Ali também dançávamos sobre ele e cantávamos. Os nossos pés ficavam espalhados, os dedos abertos. No fim de oito dias os caroços de cacau estavam negros e cheiravam a chocolate. Antônio Barriguinha, então, conduzia sacos e mais sacos para Pirangi, tropas de quarenta e cinqüenta burros. A maioria dos alugados e empreiteiros só conhecia do chocolate aquele cheiro parecido que o cacau tem.

Quando chegavam ao meio-dia (o sol fazia de relógio), nós parávamos o trabalho e nos reuníamos ao pessoal da juntagem para a refeição. Comíamos o pedaço de carne seca e o feijão cozido desde pela manhã e a garrafa de cachaça corria de mão em mão.

Estalava-se a língua, e cuspia-se um cuspe grosso. Ficávamos conversando sem ligar para as cobras que passavam, produzindo ruídos estranhos nas folhas secas que tapetavam completamente o solo. Valentim sabia histórias engraçadas, e contava para a gente. Velho de mais de setenta anos, trabalhava como poucos e bebia como ninguém. Interpretava a Bíblia a seu modo, inteiramente diverso dos católicos e protestantes. Um dia contou-nos o capítulo de Caim e Abel:

— Vosmecês não sabe? Pois tá nos livros.

— Conte, véio.

— Deus deu de herança e Caim e Abel uma roça de cacau pra eles dividirem. Caim que era home mau, dividiu a fazenda em três pedaços. E disse a Abel: esse primeiro pedaço é meu. Esse do meio meu e seu. O último, meu também. Abel respondeu: não faça isso meu irmãozinho, que é uma dor do coração... Caim riu: ah! é uma dor do coração? Pois então tome. Puxou do revólver e — pum — matou Abel com um tiro só. Isso já foi há muitos anos...

— Caim deve ser avô de Mané Frajelo.

— Anda. A avó de Mané Frajelo era rapariga no Pontal.

— Você sabe, Honório?

— Sei. A mãe morreu de fome quando não pôde mais trepar com home. O fio nem aí...

— Miserave.

— Mas ele tinha vergonha da mãe.

— Mãe dele...


(Cacau, 1933.)

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