domingo, 30 de maio de 2010

O curioso caso das bancas de revistas

Internet e mudanças nos hábitos de leitura podem roubar clientes dos jornaleiros, mas ainda não se encontrou um substituto para o que só eles oferecem: a conversa




O lugar é um pouco maior e mais retangular do que um elevador – mas pense nele abarrotado de jornais, revistas e doces. A geladeira de refrigerantes deixa o espaço ainda menor. À esquerda de quem entra, sentada numa cadeira que a deixa pequenininha, está dona Lola. Ela admitiu primeiro ter mais de 70 anos e só contou a idade exata depois que o jornalista prometeu guardar segredo. “Fica entre nós”, disse, dando uma gargalhada espontânea.



Leonor Santos Zem, dona Lola para os mais próximos (que são todos os que põem os pés na banca), viveu sempre entre papéis. Entrou para o ramo aos 13, ajudando os pais, e é hoje a jornaleira mais antiga de Curitiba, com mais de 60 anos na lida. “Dona Lola!”, disse o rapaz que surgiu na porta, interrompendo a entrevista. “Ué, o que a senhora fez aqui?”, indicou o topo do nariz.



“Eu caí na rua!”, respondeu dona Lola e riu da própria resposta. “Ainda bem que não quebrei os óculos!” O episódio é uma amostra do seu temperamento: ela sabe tirar de letra situações difíceis. O rapaz conversou mais um pouco e foi embora. Dona Lola poderia abraçar a aposentadoria e largar o trabalho, mas diz que não toleraria a rotina sem ele. Gosta demais de conviver com as pessoas que passam pela banca, quase na esquina das ruas Marechal Deodoro e Monsenhor Celso, a poucos passos do Bradesco, no Centro.



A reportagem conversa com dona Lola para entender o que as bancas de revistas representam hoje, com a internet roubando leitores das publicações em papel. Ela desvia o olhar para acessar a memória e levanta da cadeira antes de começar a falar. “Ih, a internet... Hoje, tudo é internet, internet, internet...”, disse.



Talvez seja estranho para quem tem menos de 30 anos, mas, duas décadas atrás, quando alguém precisava saber a língua oficial da África do Sul (na verdade, são 11, incluindo o africâner), podia recorrer à banca. Havia revistas e almanaques para responder a uma quantidade im­­pressionante de dúvidas. Hoje, há o Google, ou a Wikipedia (consultada aqui sobre a questão da língua sul-africana).



Apesar das mudanças nos hábitos de leitura, as bancas continuam sendo referência. Não como antes, claro, mas continuam.



Olhe para uma banca. Nada do que ela vende é exclusivo. Jornais, revistas, doces, cigarros e recargas de celulares. E figurinhas da Copa do Mundo (jornaleiros fazem hurras para elas).



São 193 bancas em espaços públicos da cidade. Se somar as revistarias – que vendem os mesmos artigos da banca, mas ocupam espaços diferentes como shoppings ou supermercados –, o número passa de 600. A questão é: por que as pessoas vão a uma banca e não a outra? Ou por que alguém vai a qualquer banca?



Uma das respostas é dona Lola. Mas também é a amiga dela, Aurélia Miranda de Souza, que fica atrás do balcão e ajuda Lola.



Na banca do Largo Doutor Theodoro Bayma, no Batel, a resposta é Mario Henrique Blas­­kievicz e também Hideo Koma­tsubara, o seu Hideo.



Você pode ler o que quiser na internet, mas não terá a chance de ouvir o seu Hideo perguntar do seu filho e mandar para ele alguns dadinhos de amendoim. Não vai caminhar até a banca num domingo de sol e céu azul, dar um oi para o Mario (que nunca mais esquece seu nome) e comentar a manchete do dia e o resultado do jogo de ontem. Não poderá reclamar para dona Lola que o marido ou namorado é um insensível e por isso a relação não vai bem.



“Banca de revistas é um pouco como salão de beleza”, disse Mario. “As pessoas gostam de desabafar.”



“Eu ouço as histórias e procuro ajudar, falando um pouco da minha experiência”, disse dona Lola, três filhos e viúva de um casamento de quatro décadas. Corações partidos parecem ser a especialidade dela. Clientes choram paixões, casamentos desfeitos e relações que não dão certo.



“A senhora ainda tem Cole­guinhas?”, perguntou o senhor grisalho de terno, criando mais um intervalo na entrevista.



“Tenho e é o último!”, disse dona Lola, que adora exclamações. Virando para o repórter: “Esse jornal vende muito bem!”



É um classificado erótico. A garota na capa está de costas e vestida da cintura para cima. O homem paga o jornal e vai embora.



Os números variam de acordo com o ponto, mas Mario calcula que as publicações respondem por 20% dos lucros de uma banca – 10% para jornais e o mesmo percentual para revistas. O produto mais rentável é o cigarro, que representa 35% dos rendimentos líquidos. Em segundo lugar, com 30%, estão os doces. Os 15% restantes são de recargas de telefone.



Durante uma das longas entrevistas, Mario atendeu 13 clientes, chamando sete deles pelo nome. Três compraram jornais – dois levaram Gazeta do Povo –, três torraram dinheiro com figurinhas da Copa, dois pediram doces e cinco compraram cigarros, soltos e em maço (alguns pediram também Clorets verde para rebater o mau hálito).



Casado e com um filho, Mario é talvez o mais jovem jornaleiro da cidade, com 36 anos de idade e 16 meses no ramo. Comprou a banca do genro do seu Hideo e ficou feliz quando soube que ele estava disposto a continuar trabalhando. Os dois se revezam no atendimento de 12 horas diárias, das 8h às 20h.



O interesse de Mario no negócio é fascinante. Foi um investimento de risco calculado, feito depois de ter saído de um emprego que não tinha futuro.



Mario soube que a banca estava à venda nos classificados do jornal.


Irinêo Baptista Netto .Gazeta do Povo. Caderno G.Publicado em 30/05/2010

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