no começo achei que ia ser só pra fazer um extra, mas sabe
como é, a vida é dura igual rapadura. meu avô sempre trazia rapadura lá da
paraíba pra gente. rapadura é doce pelo menos.
última viagem. depois dessa vou colocar pra ir na direção da
minha residência. daí já entrego o passageiro lá perto e me mando que amanhã
tem mais. amanhã? besteira. já são duas e trinta e quatro. sou uber, mas manjo
de plural, morô? um bando de cabeçudo letrado desmerecendo nossa profissão que
fala "é cinco hora". sabe, é duro quando alguém pergunta o que você
faz e você diz "sou uber". tem umas minas que nem dá moral quando
fica sabendo. os zóio azul engana, tá ligado? às vezes erro plural de
propósito, pois tá no sangue. apesar dos olhos eu cresci mesmo foi na periferia,
bairro do Jaguaré, com os manos das antiga. lá errar plural é charmoso, morô?
mas daí tava levando essas mina que saíram do bloco.
trabalhar no carnaval dá uma grana. pena que a gente gasta metade só pra tirar
as purpurina dos banco. aliás a gente gasta metade do ano pra tirar o barato.
demora tanto que quando sai tudo já chegou o carnaval de novo. é a unica coisa
que salva nesse país que o povo já começa o carnaval em novembro e termina em
maio. preciso tomar cuidado pra não ficar igual taxista reclamando de tudo na
vida. mas também que vidinha desgraçada ficar dirigindo nessa cidade entupida
de merda. tô parecendo taxista mesmo. e pior. tô parecendo taxista argentino.
já foi pra argentina? se for nem troca ideia com os taxista, pois eles só
reclamam. reclamam ou te dão um golpe. taxista argentino parece taxista
carioca. desculpa a xenofobia, mas taxista carioca além de te roubar ainda é
chato pra dedéu.
bom, deixei as mina no endereço. viagem fria, sem conversa,
só fui ouvindo os papo. carnaval é daora! pena que a gente tem que trabalhar. é
quando dá dinheiro.
parei ali pra marcar a zona que queria voltar. mas a
madrugada é doida, tá ligado? não dá pra moscar na quebrado dos outros.
-PERDEU! PERDEU!
tomá no cu! me fodi. entrou dois maluco no banco traseiro e
metero o cano na minha cabeça.
-PERDEU!
-É! PERDEU!
-perdi. já entendi. mas perdi o que?
-é, o que ele perdeu?
-sei lá. o que você perdeu?
-sei lá. vocês que tão me roubando.
-aí esse uber é folgado hein.
-acelera essa porra antes que meto um tiro na sua cabeça.
-tudo bem, mas vamos manter a calma, por favor.
acelerei.
-vamos pra onde?
-só dirige aí e cala a boca.
dirigi.
-o que você tem aí nessa mochila?
nao respondi.
-responde essa porra!
-vocês tão me confundindo. ou eu calo a boca ou eu respondo
vocês. as duas coisas não dá.
-aí dá uma coronhada nesse fila da puta!
-foi mal, foi mal. desculpa.
-mais uma gracinha e a gente vai te esculacha!
-então, têm uns livros de poesia.
-poesia?
-que merda é essa?
-poesia é a beleza da linguagem.
-ixi esse cara é viado.
-beleza de cu é rola! vai ver a linguagem na sua mãe se
ficar com essas frescura.
-minha mãe morreu.
-pô, desculpe aí. não sabia.
-é, zoar a mãe é foda. desculpe meu amigo.
-tá tudo certo. então, poesia é tipo rap. racionais,
sabotage, tá ligado?
-aí o cara tá falando nossa língua.
-passa essa bosta pra cá pra gente vê essa fita aí.
os caras começou a pegar os livro na mão.
-é tudo igual?
-é que eu que escrevi. ando por aí e vou vendendo.
-ó lá! o cara é viado memo.
-inclusive tô vendendo por 30 reais. passo maquininha de
cartão.
-vá tomá no teu cu, maluco. a gente vai é roubar essas porra
tua.
-tudo bem. depois me falem o que acharam.
-achar o que? não dá nem pra ler essa merda. não tem
pontuação. só letra pequena.
-deve ser por isso que o cara é uber.
os caras caíram na risada.
-mas aí. posso dar uma letra pra vocês.
-mas dá letra grande aí também. não vem com essas miudeza
pra cima de nóis.
-então, cês tão fazendo as fita aí porque cês tão fodido.
nasceram na quebrada, não tiveram oportunidade igual esses grã fino que mora
nesses condomínio têm, não é?
-aí esse maluco com esses papo doido.
-peraí. deixa o maluco dá a letra dele.
-então, continuando... daí cês vêm roubar os trabalhador que
tão fodido também, tá ligado? eu tô fazendo uber só pra tirar um extra, morô?
mas a grande maioria aí tá se fodendo nas ruas dessa cidade passando mó veneno.
trabalhando dezesseis horas por dia pra ganhar pouco. quase não vê os filhos.
chega em casa no stress e briga com a esposa, tá ligado?
-e cê quer que nóis faz como, irmão?
-é, como é que cê quer que nóis faz?
-cês são soldado do crime, não são?
os maluco concordaram quietos. tô ganhando nas ideia.
-cês tem que fazer as fita pra levantar um dinheiro. às
vezes tem que troca uns tiro com os polícia, às vezes acontece de ter que matar
alguém que não colaborou, não é mesmo?
-o cara tá ligado qual é a fita.
-continua essa ideia aí.
-às vezes vocês rodam e tem que tirar uns dias, às vezes uns
meses, anos, pá e fica sem ver a família. passando mó veneno na cadeia. a vida
é louca, mano. daí um belo dia nós três nos encontramos na calada da madrugada,
vocês tentam me roubar, eu me desespero, vocês me matam e são presos e o
sistema continua igual, tá ligado?
os caras só ouviam agora.
-revolução, irmãos! a gente se junta. os irmão destemidos
que pegam em armas e as cabeças pensantes e também os trabalhadores. os
operários que tão fodidos nas fábricas, nós aqui uberizados pelo sistema, os
caminhoneiros. aí irmãos é greve, poesia e armas tudo muito bem organizado
contra o sistema. a gente toma o país. se alguns desses vermes fardados
quiserem lutar com a gente serão aceitos, os que não quiserem a gente fuzila
junto com os poderosos que fodem a gente todo santo dia. é guerra, irmãos! guerrilha!
revolução! viva marighella!
um silêncio profundo dentro do carro.
-quanto é teu livro, irmão?
-pros irmãos de luta eu dou de presente.
-pô, obrigado mesmo.
-e esse tal de marighella? os racionais fala desse maluco
aí.
-esse maluco é zica. onde cês moram? vou levar vocês lá.
-rio pequeno.
-é mesmo? do lado de casa. cês tão longe hein.
-ah tem que roubar longe da quebrada, né?
-tem um boteco vinte e quatro horas lá. vamos tomar umas ali
pra você falar mais sobre esse lance de revolução.
-demorou, vamos lá. só preciso dizer uma coisa. eu menti
sobre a parada da minha mãe. ela tá viva.
Victor Miranda