É difícil medir qual o grau de influência que o cinema exerce hoje na nossa vida. Certamente é bastante, mas já repartindo a sua presença com a televisão e com a internet, num liquidificador de imagens, linguagens e valores. Filtrado por esses meios, o cinema ganha outra natureza, mais fragmentária, tornando-se uma arte de consumo caseiro, “individual”. E o advento da tecnologia em 3D indica a direção de uma indústria que tenta recuperar o seu terreno mais pelo fascínio dos efeitos que por eventuais conteúdos. A relação do espectador com a imagem mudou em substância, perdendo o ritual coletivo de um mundo ainda comunitariamente estável. Não sabemos se e quando a revolução atual se estabilizará em algum ponto; estamos exatamente no centro de uma mudança.
para os que cresceram e se tornaram adultos entre 1940 e 1980, o cinema foi uma presença hegemônica que definiu padrões de estética, ideologias, modas, comportamentos, propaganda, linguagem – tudo foi tocado por ele. E era um fenômeno profundamente comunitário. A ida ao cinema era um ritual socializante que acontecia no espaço público da rua. Ao mesmo tempo, o cinema nos transformava a todos, digamos, em “intelectuais”. Poucos leem um livro até o fim, mas qualquer um consegue ver um filme e dizer o que achou. À parte o entretenimento que sustentava a indústria, bons filmes (e sempre havia bons filmes) eram estimulantes. Discutia-se desde o comportamento dos personagens até a insidiosa “propaganda americana”; em outras rodas, a ousadia estética do diretor, ou a estonteante nudez de Brigitte Bardot implodindo a tradicional família cristã. (Sim, sou do tempo em que mulheres nuas eram um escândalo.)
Na virada dos anos 70, em torno da Boca Maldita, que eu frequentava adolescente ouvindo conversa de gente grande, havia os cines Avenida, Ópera, Rívoli, São João, Arlequim, Astor, Plaza, Condor (esqueci algum?), todos a dois ou três minutos dali. Lembro de frases memoráveis que ouvi, afinando minha educação crítica: “A câmera ainda é indócil nas mãos de Antonioni” –Antonioni era um dos cineastas-cabeça obrigatórios para qualquer candidato a intelectual; outro era Godard. A vertente política era poderosa. Lembro que o filme A confissão, de Costa-Gavras, denunciando o horror stalinista, mereceu de alguém a observação de que “toda partícula da realidade é profundamente mentirosa”, na clássica dialética de justificar o injustificável. Em outro momento, o belo filme O estrangeiro, de Visconti, baseado no romance de Camus, foi aprovado com louvor.
Mais tarde, o crescimento da televisão e a nefasta cultura do shopping center, que vampiriza o espaço público das cidades, acabaram por destruir de vez o cinema de rua nos países periféricos, como o Brasil, antes mesmo que as novas tecnologias da imagem mudassem o padrão da indústria do cinema no Primeiro Mundo.
Cristovão Tezza
Fonte: Gazeta do Povo.22/02/2011
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