O que sou
Sou paredões de pedra abraçando ecos
Vozes pronunciadas no passado
E que ainda sobrevivem em meu presente sólido e inconsciente
Sou metáforas rochosas que brincam com ecos alheios
Como um vale brinca com as vozes dos outros
Sou a Paris que é um estado de espírito,
Uma abstração palpável e inconquistável que só se rende à
vida
Sou sentidos e formas em estado consonântico e vocálico
Que se entregam à prosódia do sentir,
Ao ritmo sonhador que engorda Tesouros Secretos
Sou a sombra que se agarra em tudo o que ouve e compreende,
Sou o que os surpreende sempre que posso e sempre que me
deixam,
Como Puck surpreende ─ quando pode ─ a platéia grega
universalmente feliz
Sou a ponte de braços sobre o Sena que os toca com a volúpia
De um condenado à Sibéria
Sou a grandeza de ser tantos seres ao mesmo tempo na mente
Sou o que quer lírios, o que quer rosas, por dentro e por
fora
Sou o inatingível que também ecoava Whitman e era o Paradoxo
Sou a enxada e a roda dentada todas juntas num armazém
Sou a Argentina num labirinto
O Japão dentro de um tanka
A Inglaterra que se desterra para fazer versos na Itália
Sou a saudade no vento do oeste!
Sou um filme de faroeste aos olhos de um menino
Sou a fortuna do campo trovejante
O portador da alegria ao bar do Simpson
A voz do papagaio de Stevenson
A aventura, o mistério, a alegria que visita a hospedaria
Eu sou a continuação dos canhões
O ruído da grama que cresce na Rússia
O amor entre a guerra e Otavio Paz
A pureza e o pecado, a nobreza e a mesquinhez
A conciliação, a paixão
A mão de Jean Valjean roubando pão
Sou o som do machado de Raskolnikov
Sou a autocomiseração de Marmieladov,
As lágrimas de Sonietchka
A amizade de Razumikim
Sou a vingança de Dantés
A espada heróica de um escocês
As vicissitudes de um quadro
As virtudes de Rousseau em Kurosawa
Sou essa ânsia sinestésica que escuta as palavras com os
olhos
Que sorve as palavras com o ouvido
E digere, no coração, palavras
Palavras que não são minhas
Porque já pertencentes, agora, à Humanidade
Sou esse eco de vontade infinita chamada poema
E, penetrando cada sentido e percorrendo cada estrada do
espírito
Meu leitor querido e minha leitora querida
Como o mais belo parasita do mundo, em troca da vida que me
presenteiam
Ensino-os ─ sempre no presente ─
A saborear, na língua, todo o significado e toda a grandeza
do que sou em vocês
Para sempre, até que me esqueçam.
André de Castro
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