Uma das imagens mais antigas da minha vida foi uma torneira velha, rosqueada num pedaço de cano enferrujado, que encontrei em alguma rua da minha infância. Estava com um vizinho da mesma idade que, afinal, foi testemunha do meu projeto de engenharia. “Se a gente espetar esse cano na terra e esperar um pouco, é só abrir a torneira e vai jorrar água”. As palavras, reinvento-as agora, mas a ideia era essa. Uma lógica afinal irretocável, fruto da atenta observação de muitas torneiras em muitos quintais, brotando da terra como apoio de um cano – todas funcionando. Por que a minha não funcionaria?
Era preciso escolher bem o lugar, de terra mais fofa, para facilitar a implantação daquele breve aparelho, e de tanto procurar acabei voltando para casa, com a assessoria do vizinho, tão ansioso quanto eu para comprovar a tese. Era mesmo uma euforia – uma torneira pessoal, com água à vontade, para criar uma usina particular, encher baldes de plástico, fazer lama, barro e – diriam as mães – emporcalhar o mundo.
Nos fundos de casa, o melhor ponto, decidi, seria próximo da parede para que ninguém tropeçasse na torneira. A terra seca ali – inútil tentar abrir um buraco com as unhas, mas tentamos.
– Tem de enterrar muito fundo? – o vizinho perguntou, olhando as unhas sujas.
– Assim assim – expliquei com um gesto vago das mãos para manter o comando técnico da operação. Mas também percebi que, com os dedos, o trabalho seria difícil. Em dois minutos encontrei uma faca velha e me pus a cavoucar o buraco, sob o olhar atento do vizinho aprendiz. Hoje divago se a atenção se devia à dúvida de que a torneira funcionasse ou se pela ansiedade de um milagre próximo, simples, funcional e lógico.
Buraco pronto e razoavelmente profundo, espetei o cano com capricho. O vizinho encheu a folga com terra e pressionou-a bem em torno do cano para deixar a obra firme e segura. Era hora de abrir a torneira, o que fiz com parcimônia e certa solenidade, talvez preocupado com os respingos do jorro d’água.
Nada. Ficamos contemplando a torneira aberta e cheia de vento durante alguns segundos, cabecinhas fervendo atrás de uma boa explicação. Senti a condescendência generosa do vizinho diante do fracasso que, agora, era inteiramente meu: “Talvez precise esperar um pouco para a água subir”. Desconfiei de que ele sorria. Fechei e abri de novo a torneira, mas não pensava mais na água – apenas na profunda injustiça de que eu estava sendo vítima.
Mais de meio século depois, relembro o episódio para me assegurar de que, de fato, nunca fui precoce. Tento lembrar em que momento da infância Jean Piaget localiza o estalo abstrato capaz de entender a relação entre a água e a torneira, só para saber se meu atraso era grande. Não importa – passei o resto da vida espetando canos na terra para ver se jorrava água. Dizem que às vezes dá certo.
Cristovão Tezza.
Gazeta do Povo21/12/2010 |
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