Viro à esquerda na Monsenhor Celso vendo a mim e a meu pai no passado saindo da Confeitaria das Famílias, guarda-chuva aberto, a graxa preta nos meus pés a exalar o sabor das longas distâncias, voltando para o carro estacionado há algumas quadras, pisando os paralelepípedos encharcados. Subo a Monsenhor em meio ao intenso odor de mijo. Na esquina um carro de polícia, gigante vaga-lume piscando vermelho na manhã cinzenta. Chego a Praça Tiradentes.
Bom dia, Benjamin Constant, Botelho de Magalhães, bom dia, Tiradentes, Floriano, bom dia, Getúlio Vargas,
escuros homens pomposos salpicadas de branco pela bosta das pombas. Curitiba foi fundada aqui nesta praça. Não olho nenhuma destas estátuas nos olhos. Minha cabeça abaixo da sola de seus pés. Não aprendi a dizer a verdade flagrada pelos olhos dos outros, fitando-os como me ensinou meu pai. Nem sempre os olhos são o melhor lugar para a verdade. Assim como sucede aos oceanos, a verdade independe da cor e profundidade da água. Não sei se cri menos em olhos radiantes de alegria que nos que pediram afogamento. Talvez, imitando a coragem que tive quando criança, na época em que me esforcei nos esportes, em alguns até conquistando relativo destaque, colecionando meia-dúzia de medalhas. Cresci rude feito este pinheiro plantado na praça há mais de setenta anos, durante a Festa da Árvore. Pinheiro, pinheiro, pinheiro que os braços dos homens mais a foice, o machado e o fogo, extensões de sua ambição, fadigavam-se para derrubar. A isso, seguiam-se as queimadas, as araucárias a estalarem qual uma orquestra cantando só dor. No fim, cinzas. Que esplêndido e arrogante espetáculo, o domínio do homem em relação as florestas. Contorno o espaço gradeado onde o chão de vidro expõe o antigo calçamento da cidade de outrora, quando Curitiba ainda era uma aldeia. Mais à frente o Monumento à República com o seu Libertas quae será tamen. E estou nos pés da Catedral. Avanço pela lado esquerdo da igreja, há tapumes de metal com pichações, contorno todo o perímetro do templo, que deve estar em reforma. Do outro lado, o inferno, sete da manhã e o Bar dançante Kaipim ainda agitado, com seus zumbis recendendo a sexo, mastigando cocaína no café da manhã. O fedor de mijo que vem do beco nos fundos da Catedral empesteia o ar. Desço a escadaria, atravesso a galeria. Um cartaz propagandea a peça que está passando no TUC. Em cima da minha cabeça o movimento de ônibus e automóveis é intenso. Subo os degraus, meu joelho reclama. Saio do subsolo no Largo da Ordem, contorno o canteiro e estou nos pontos de ônibus. Espero, cercado pelos murais em azulejo de Poty Lazzarotto: a cidade com suas charretes, suas casa com lambrequins. Poderia ter cortado caminho, vindo por outras ruas, mas faço este percurso para evitar subidas. O meu joelho. O ônibus amarelo chega. Embarco. (fragmento da minha novela nova, Dias nublados, a segunda da minha Trilogia da geada; a primeira é a E se contorce igual a um dragãozinho ferido, publicada pela Arte e Letra).
Luiz Felipe Leprevost
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