Poesis, termo grego do qual se derivou a palavra poesia cujo significado é: “ ação de fazer algo”.
Algo que no entender de alguns é reunir, juntar, e para Heidegger em particular, que considerava ser
possível construir um projeto pensante de vida através da poesia, este reunir não seria um reunir
palavras simplesmente, mas uma reunião relevante, reunir e relevar, produzindo um sentido superior.
Inicio então esta palestra dizendo que a poesia é um modo próprio de palavrear possibilidades e a
fala do poeta sempre alcança uma instância originária, já sentida por muitos talvez, mas ainda não
expressa completamente. Então, o poeta, de forma instantânea o faz, utilizando-se da linguagem.
Freud costumava dizer que era difícil alcançar espaços onde um poeta já não estivesse estado.
Poetas, portanto, realizam sua existência na linguagem e reabilitam falas perdidas ou decaídas de
seus significados.
Na verdade, a poesia assim como a arte, de um modo geral, é um outro estado ordenador. Possui outros
nexos. Ela é um leque de inúmeras possibilidades de existência fora do contexto do que é banal e
vazio de significados mais profundos.
Funciona quase como um processo de decifração de enigmas interiores, acessando tanto variáveis do
prazer quanto da dor, variáveis de vida quanto de morte. E vai traçando sua trajetória infinita
nestes círculos que nunca se completam permitindo que se vislumbre muitas vezes o pequeno milagre;
a iluminação, a revelação da partilha de um sentir único, porém comum, quando revelado.
Eu diria que hoje, vivemos um tempo bom para a poesia. Quando o século XX descobriu através da
física quântica que a exatidão e o absoluto foram retirados do homem, criou-se o espaço em branco, o
universo deslizante, muito próximo do mistério poético.
Esta última década principalmente, que tem como grande tônica a fragmentação do sentir, do ser, e
do estar, busca ardentemente por uma síntese que a poesia sempre representou, assim como outras
expressões artísticas, já que passam a registrar o instante, dando-lhe permanência mesmo sabendo-se
que nada é definitivo.
O que o artista busca? O que o artista sempre buscou: impregnar de permanência a fluida realidade.
O que o artista quer? O que sempre quis: capturar coisas que estão a fugir de nossas/suas mãos e de
nosso/seu entendimento. Desvendar a alma secreta das coisas para ouvir na concha o “ptyx”, estas
vozes secretas de nossos mares interiores.
Não sei se todos sabem, mas “Ptyx” é uma palavra criada por Mallarmé para o seu famoso poema em X.
Não tem tradução direta mas evoca um termo grego que significa dobra ou concha. Um objeto misterioso
criado por ele, que na verdade nunca existiu mas que possui uma ressonância individual.
O poeta vive o tempo todo em perene estado de diálogo com potências criadoras da linguagem. O
escritor, de um modo geral, mas principalmente o poeta, trabalha com a negação do tempo mortal. Não
o aceita e o devolve ao criador.
Tomando por base a poética de Mallarmé que influenciou todo o século XX, pode-se perceber que cada
imagem é rigorosamente sustentada por um sistema de pensamento e cada pensamento é rigorosamente
sustentado por um jogo de imagens. Mallarmé preconizava que a grande rima é a rima de idéias e
não de palavras. Vejam, portanto:
“ quand je dis “fleur”, quelque chose musicalmente se lève, l’idée même et suave absente de tout
bouquet” quer dizer, quando o poeta diz “flor”, algo se eleva musicalmente, a idéia, ela mesma, e
suave se ausenta do bouquet.
Para Mallarmé, portanto, o poema era como uma obra sinfônica. As frases e os versos eram criados
segundo um arranjo, uma harmonia interior, não somente sonora mas e principalmente, intelectual.
E tão interessante e peculiar é o estado poético que Raimundo de Carvalho afirmou ser a poesia um
discurso irredutível à prosa pois a poesia não se explica, é o que é. Assim, um poema diz
exatamente o que está dizendo, e a forma como diz é parte inalienável deste dizer. Este autor
considera a poesia tautológica, de forma que só outro poema pode ler com propriedade outro poema.
Assim, pode-se também afirmar que a poesia caracteriza- se não pelo significado de suas palavras ou
de suas imagens, mas pela relação do poeta com seu discurso. Pode-se observar esta relação nestes
versos de Vinícius de Moraes:
“ às cinco da manhã, a angústia se veste de branco”
Paul Valery chegou a dizer que na poesia, a paixão participa da festa do intelecto, e da festa do
corpo quando há erotismo. Em Idílio unilateral de Murilo Mendes, temos uma boa amostra desta afirmação:
“ Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres, pronto.
Estou aqui, nu, paralelo à tua vontade, sitiado pelas imagens exteriores. (...)
E para ilustrar Valery temos:
Vou e venho, deslizo, enfronho,
desapareço em peito puro!
Houve jamais seio tão duro
onde não possa entrar um sonho?
Baudelaire, que expressou muito bem amor, erotismo e morte sem ruptura de tom, usou e abusou de
imagens olfativas e visuais associando o erotismo à melancolia, à inquietação metafísica, à
obsessão do nada. Baudelaire falando poeticamente de seu abismo nos diz:
Pascal em si tinha um abismo se movendo.
- Ai, tudo é abismo! - sonho, ação, desejo intenso,
Palavra! E sobre mim, num calafrio, eu penso
Sentir do Medo o vento às vezes se estendendo.
Cecília Meireles refletindo sobre a poesia disse: “pergunto-me se não é de natureza sagrada essa
indefinível chama que a poesia dificilmente revela mas está destinada a conter. Esta não será na
verdade, o sentido de todas as artes? (...) Não seria um jogo de Deus esse renovar constante de
meios para cada um procurar o seu fim? Será que Orfeu não continua a comover os monstros com o seu
canto e a atravessar o inferno pelo poder da Poesia? (...)”
Assim, pode-se concluir que o discurso do poeta nunca é neutro. Sua forma de olhar é que determina
sua relação com os outros e com o mundo.
Termino então, com um poema meu, que trata deste estado de espírito que permite ao poeta expressar
a inquietude de seu olho:
Por que tudo é insuficiente
Invento-te.
-Serias Deus?
Este buraco profundo
Capaz de engolir o mundo
Sou eu?
Sou eu querendo entender
Meus abismos
Coisas complexas e coisas banais
O efêmero com roupas
Divinais
O divino com roupas
De peregrino
Sou vulnerável à morte
Tanto quanto
Sou vulnerável à vida
Para velar esperanças idas
Paro
Adormeço
Amorteço seus sentidos.
Para celebrar novos começos
Fecho a porta
Troco de roupa
Fantasio-me de poeta
[este ser tão vulnerável
e ao mesmo tempo
indestrutível] .
Maria Helena Sleutjes
Publicado no Recanto das Letras em 31/07/2009
Código do texto: T1730300
Maria Helena Sleutjes
http://veusdemaya. com
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