(Bárbara Lia)
O homem sem sapatos trajando bermuda bege sobe na lateral do
chafariz e conversa com o cavalo. Espero o amigo, anoitece. A lua crescente; a
vida minguante. O homem diz ao cavalo as coisas do dia, seu dorso negro
acaricia e se afasta para dizer em tom de brincadeira a frase tão verdadeira:
- Mas, você é feio, hein?
A água não jorra, neste fim de tarde, do símbolo fálico do
chafariz do Largo da Ordem.
Um cavalo que baba (goza?)... O que secou? O sêmen ou a
lágrima? Muito estranho esse cara que fala com o mármore com intimidade de
amigo. A água parada, a vida parada, o homem descalço a conversar com as pedras
e eu a esperar o amigo...
Esse espaço de pedras é por onde passam os vivos. Réstias de
frases cintilam em um espaço por onde caminhei hoje e ecoam em mim como notas
de um piano antigo...
- Aquele professor de Geopolítica é genial...
- Eu não sei desenhar na pedra...
- Então... O que teu pai disse?...
Sair com uma frase incompleta de cada colisão com pessoas
dialogando no caminho, um conto na cabeça, uma dor no pé de pisar pedras
tortas. Depois, sentar no banco para ouvir o diálogo (monólogo?) do homem
livre. Esperando o amigo que disse um dia:
- Cansei de vomitar vinho Campo Largo...
Pedras raras ainda guardam vômitos de meninos como se eles
vomitassem o sangue dos parasitas, dos falsos profetas, dos inquisidores, dos
covardes...
O homem se despede e algo se move, como se o cavalo voltasse
sua horrenda face (ele é mesmo feio) para se despedir do amigo. O único que se
enternece e lhe diz boa noite, mesmo que depois diga:
- Como você é feio!
O mundo se parte ao meio e eu fico com o pedaço de mundo
onde tem o Relógio das Flores (memória de um sonho como iluminura medieval),
com as pedras lavadas do bom e velho vinho Campo Largo e o lampião antigo que
acende para ajudar o pálido crescente - foice fosca do apocalipse - a iluminar
a noite dos vivos.
Paraísos de Pedra (Editora Penalux) - 2013. Páginas 21/23
Conto publicado no Jornal Relevo
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