Todo mundo é meio nefelibata em Curitiba. Meio pitagórico,
meio vampiro, meio cachorro louco. Eu também. De dia durmo, rumino, medito. De
noite saio, tomo uns tragos, frequento becos, bocas, contemplo a lua – quando
ela dá as caras, é claro. Já fui professor de cursinho, redator publicitário,
corretor de seguros, vendendor de móveis usados. Já vendi plano de saúde,
assinatura de tevê a cabo, filtro dágua de barro. Até apontador de jogo de
bicho já fui. Como não tenho mais idade para fazer malabares e ainda me sobrou
um pouco de vergonha na cara para pedir esmola, estou aí, arrolado nas
estatísticas dos sem ocupação. Mas não pensem que eu sou um desocupado.
Trabalho duro. Teimo, limo, sofro, suo. Passo os dias – é preciso acentuar –
compilando meus poemas. Trinta anos de produção. Não é fácil, meu amigo. Trinta
anos alinhavando palavras, catando rimas, escandindo sílabas, marcando cesuras.
São páginas e páginas de papel almaço, cadernos escangalhados, folhas
datilografadas ou digitadas e impressas nas lan houses mais ordinárias da
cidade. A maioria não presta. Sei disso. Depois de muito esforço, quem sabe eu
consiga o suficiente para um opúsculo. (Opúsculo, gosto dessa palavra.) Falam
de morte, de bruma, de brisa, de lua. E de mãe. É, e de mãe. Freud explica. Ou
o diabo. Ah, esqueci de contar: moro com a minha mãe, num apartamento encardido
do Alto da Quinze. Ela é aposentada do estado. Com o que ganha, pagamos
aluguel, condomínio, luz. O telefone está cortado. Meu celular não sabe o que é
crédito há uma cara. Como a aposentadoria dela é uma merreca e eu, como você
viu, estou sem renda, é visível que para comer está difícil. Espremendo daqui e
dali, fazendo mágica e reza brava, dá para um comer. É claro, sem luxo,
pieroguis, estrogonofe, torta alemã, como antigamente. Para dois, ah, isso não
dá. Por isso ela vinha dizendo, a velha: ou é tu ou sou eu. Não dá para os
dois. Como tu não bota nada dentro de casa há muito tempo, tu cata as tuas
coisas e cai fora. Eu dizia: peraí, mãe, pega leve. Não é fácil falar essas coisas,
meu irmão. Mãe é sempre mãe. Pode ser velha, pode ter sido puta, mas é mãe.
Deixa eu tomar mais um gole, está muito frio, essas noites de Curitiba são o
diabo. Como eu tenho essa grana? Olha, meu amigo, a gente pode pasar fome,
necessidade, mas sem os vícios a gente não passa. Às vezes rola um bico, um
trampo, um trambique. Às vezes, no maior desepero, passo a mão em alguns livros
lá da estante e vendo num sebo. Já tive uma senhora biblioteca, prateleiras e
prateleiras de lombadas com títulos em francês, inglês, italiano, além dos
brasileiros e portugueses de minha estimação: Antônio Nobre, Cesário Verde,
Cruz e Souza e o pobre Alphonsus. Agora, não passam de algumas dezenas. Mas
quando, assim mesmo, estou sem um puto, ah, aí eu apelo. Na bolsa da velha
confisco um trocado. Fico sem remédio, sem comida – um pastel dá para o gasto –
mas não fico sem o meu trago. Pobre velha, hão de chorar por ela não digo os
cinamomos mas pelo menos os chorões carpideiros da Fernando Moreira. É, meu
chapa, estou decadente. Je suis l’émpire à la fin de la décadence, saca? Na
verdade, sou decadente: estrela caída, albatroz sem asa, flor do absinto.
Sempre fui. Décadence avec élégance. Foi-se a élegance – já fui dândi, echarpes
longuíssimas, cabelos à Oscar Wilde –, ficou a décadence. Mas eu não contei
tudo. Deixa beber mais. In vino veritas, não é assim? Agora, com o conhaque, a
verdade é mais letal. Bom, como eu ia falando, esta noite, ao sair de casa, fui
me despedir da velha e não escutei o seu natural grunhido. Recuei, chamei-a
novamente. Nada. Silêncio absoluto. Entrei no quarto (eu durmo na sala) e mais
uma vez nenhum sinal. Ela teria saído para comprar um cigarro, ir à igreja, ao
supermercado, sem que eu percebesse? Não, já era tarde e ela não costuma sair
de noite por medo do sereno, da friagem, dos craqueiros. Entrei então no
banheiro, pé ante pé, temendo o pior, sabe-se lá, a velha é louca. E vi. Atrás
do box quebrado, lá estava ela, pendurada do cano do chuveiro (chuveiro
elétrico; detalhe: queimado). Não aguentei. O baque foi grande. Saí para
espairecer, dar umas voltas, bater perna, enquanto o corpo esfria. Com o frio
que está fazendo, meu irmão, esfria logo, logo. Aliás, o corpo dela nunca foi
muito quente. Calor ali só no ódio votado ao filho. Então é isto: saí para
relaxar. Gola erguida, chapéu enfiado nos olhos, o rosto contraído contra o
vento gélido, sigo pelas ruas, ruelas, vielas, as mais escuras, as mais
desertas. Medo de algum maluco, algum drogado? Absolutamente: na mão crispada
dentro do capote, a faca. Um dia um piá veio se meter a besta e ficou estirado
na calçada, sangrando. Já disse, sou meio louco, vampiro, degenerado. Minha
vida é assim. Entro num boteco, peço uma dose, engulo alguns rollmops quase
apodrecidos, pago, pego as moedas sobre o balcão, saio de novo. O vento me
corta o rosto e, somado ao álcool que começa a circular nas veias, me dá um
estranho prazer. A mão no bolso, apalpo o cabo da faca. Logo encontro outro
cabo, maior, latejante, aflito por uma bainha sorrateira. Mas não há nenhuma polaca
na rua capaz de me satisfazer por vinte pratas. Amigo, a vida é dura para quem
nasceu poeta e sem vocação alguma para ganhar dinheiro. Prossigo meu caminho,
que é caminho nenhum, transeunte sem rota, sem norte, sem aura, às avessas. O
passo veloz, corto as ruas, as esquinas, os canteiros. Alcanço o Largo da
Ordem, a essa hora hora ainda povoado pela burguesia adiposa de Curitiba.
Atravesso a Praça Tiradentes, escura, um casal bolinando num banco, um mendigo
dormindo no outro. Desço pela Rua das Flores, cruzo por punks, ratazanas
atravessam o calçadão quase deserto, salvo dois ou três notívagos. Passo pela
Boca Maldita, agora calada, seus aposentados dormindo e sonhando com outra
Curitiba que os anos não trazem mais. Atinjo a Praça Osório e saúdo – salve,
salve, meu príncipe – o busto de Emiliano Perneta na herma entre os pederastas.
Todo mundo é meio taciturno em Curitiba, meio poeta, meio louco, meio
simbolista. Deve ser o fog londrino que por descuido de São Pedro veio parar
também aqui – ou então é o espectro do Dario Veloso ou do Rocha Pombo que não
nos deixa em paz. Quanto a mim, sou inteiramente sombrio, hipocondríaco,
merencório, como se dizia antigamente. (Merencório, gosto dessa palavra.) Nasci
sob o signo de Saturno, odeio sol, odeio luz, odeio sorriso de criança.
Jardins, triciclos, balões coloridos? Estou fora. Chás em academias, ciclos de
leitura, cafés com viados metidos a intelectuais? Também estou fora, camarada.
Dou a volta, subo pela Visconde de Guarapuava, chego à Fernando Moreira, observo
os supracitados chorões sobre o córrego que não vê peixe há muitas décadas e me
recordo da enforcada. Meu velho, eu me preveni. Do último trampo me sobrou uma
grana, com a qual eu fiz um seguro para ela. Com o cobre edito o opúsculo. O
título? O último nefelibata. É isso aí, cara, eu sou o último nefelibata, o
último autêntico dessa capital provinciana que já teve dias melhores e que por
um mero acaso, já disse, um puro capricho dos deuses, veio parar nesse país
entre os tristes trópicos. Subo agora pela Cândido Lopes, ali a Biblioteca
Pública, museu dos paranistas. Mais uma dose. Pelo menos eu vou ficar com o
seguro. Menos mal. Para ela eu acendo uma vela, afinal era minha mãe,
doidivanas, decrépita, mas minha mãe, uma vela bem grande, do tamanho dela, preta,
que é para ela não sair do inferno. Uma estadia no inferno? Não, a eternidade.
Ela disse: com a titica que eu ganho só dá para um, endendeu? Só dá para um.
Como tu não serve para nada, nem para consertar a bosta de um chuveiro, tu cai
fora. É duro ouvir isso da mãe da gente. Bom, a conversa está boa mas eu vou
andando, tenho que dar parte na delegacia. Seu delegado, que horror, a minha
mãe se matou, se dependurou do cano do chuveiro em seu último cachecol. É
conveniente chorar um pouco. Mas bem pouco. Ninguém chora muito por uma velha
louca. A noite, a brisa, a bruma, o álcool me dão uma estranha sensação, como
eu disse. À mente me vem versos, árias, imagens. Quero morrer assim: uma
garrafa de conhaque de um lado, um livro do Edgar Allan Poe do outro. Tedium
vitae, spleen, nevroses, como se falava. (Nevrose, gosto dessa palavra.) Já
disse: sou meio louco, vampiro, cão danado. Já fui pitagórico, rosacruz, bati
ponto no Templo das Musas, já bebi sangue de galinha no cemitério. Agora estou
mais cool, o meu divertimento é tomar um conhaque e andar a esmo pelas ruas de
Curitiba, saudando os mendigos, as prostitutas, os invertidos. Sou poeta e
portanto inadaptado à vida. Sem um trago, meu velho, não dá. Não dá para
aguentar o frio, não dá para aguentar a vida, não dá para aguentar a velha me
dizendo todo santo dia, como se eu tivesse dezessete anos, que se eu não
arranjar mufunfa alguma ela me enxota de casa. Que Deus a tenha. No inferno não
vai precisar de chuveiro elétrico. Nau sem rumo, barco embriagado, estou de
volta ao São Francisco. Me apraz contemplar as fachadas desses casarões
centenários na névoa das três e quarenta da matina. Pouca gente na rua agora,
um guarda noturno, um cachorro sarnento, um velho fedido dormindo na rua. Mas
devo seguir, despetalar até o fim a última flor do mal. Me desvio de um crioulo
bêbado, atravesso a avenida, os faróis do carro são duas grandes nebulosas.
Chego a este bar, quatro mesas, três fregueses e encontro você – que me fez a
gentileza de ouvir esta história. Foi muito boa a conversa, meu chapa. Deu para
espairecer. Mas devo seguir viagem. Cumprir meu destino. O corpo já deve estar
frio, gelado, ficando azul, os olhinhos saltados. Muito prazer. Deixa que esta
eu pago. Faço questão. Não está lembrado? Eu tenho uma chelpa para receber. Com
licença, preciso ir à delegacia. Que maçada essas coisas, velório, enterro,
apertos de mão. Parente velho só serve mesmo para morrer. Eu nunca fui muito
prático. Fazer o quê? É a vida. As pessoas nascem, as pessoas morrem. Entre uma
coisa e outra elas pagam contas, tomam remédios, suportam filas e se
desesperam. Algumas, as mais sensíveis e delicadas, fazem versos, como eu.
Versos inúteis que não publicam. Ah, mas dá na mesma, foder ou ser fodido,
escrever ou ser escrito, poeta ou salafrário. Agora eu vou. Encaro o delegado e
conto que a velha se matou. Afinal, foi ela que disse: ou é tu ou sou eu. Não
dá para os dois. Ou danço eu ou dança ela, meu irmão. Como eu sou mais esperto,
dançou ela. Todo mundo é meio psicótico em Curitiba. Menos eu.
Otto Leopoldo Winck
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