"Que fim levaram todas as flores" também é um
roteiro lírico de uma Curitiba perdida, só parcialmente recuperável pela
memória ou pela literatura: bares, boates e prostíbulos da época (vocês não imaginam
a pesquisa que foi preciso!) desfilam
por suas páginas:
"Minha rotina: acordava, geralmente sobressaltado, com
o despertador estridente, às sete horas. Me arrastava até a Barão do Rio
Branco, ali perto, e, cabeceando de sono, varava a manhã – as aulas do Lessa e
os seios de Vera eram, agora, as únicas coisas que me interessavam. Sempre que
podia, almoçava com Adrian e Elisa, que me conseguiam fazer entrar, sorrateiro,
no restaurante universitário. Depois, na cantina da Reitoria, tomávamos um café
– ou então ficávamos flanando pelas redondezas, em inflamadas conversas. Sempre
havia um livro novo, um evento novo, uma ideia nova para debatermos. Quando não
almoçava com eles, comia nos restaurantes populares da Praça Zacarias. Depois
dava uns rolês pelo Centro, olhando as vitrines, as livrarias, as manchetes dos
jornais, os cartazes de cinema, ou então espreitando, a uma distância segura,
algum par de coxas que se sobressaía debaixo de uma minúscula saia. Tinha dias
em que me aboletava em algum banco do Passeio Público, e aí, debaixo das
árvores centenárias, dividia-me entre um livro e a contemplação, com olhar
quase científico, dos tipos que por ali transitavam. Pelas quatro retornava à
pensão e aí, sem televisão, sem rádio, sem toca-discos, me debruçava mais uma
vez sobre brochuras, plaquetes e revistas. Às vezes passava à tarde na
Biblioteca Pública, na Cândido Lopes, numa verdadeira disciplina de leituras.
Marx não gostava de Balzac? Então dá-lhe A mulher de trinta, Ilusões perdidas,
Eugenia Grandet... À noite, depois de uma média e um pão d’água na chapa com
ovo frito, saía para a boemia: um cinema, um teatro, um café, um bar, muito
bares: o Zunzum, na Duque de Caxias, a Velha Adega, na Cruz Machado, o
Guairacá, ao lado do Palácio Avenida, o Cometa, na Quinze – e mais caminhadas
em confabulaçõs intermináveis agora só com Adrian (por conta da tia austera,
Elisa mal saía à noite). Algumas farras terminavam em vômitos de rabo-de-galo,
gim e hi-fi nos bancos das praças Osório ou Tiradentes. Quando, altas horas, a
fome nos assaltava, a salvação era o Okey, na Travessa Jesuíno Marcondes, o Bar
Palácio, na Barão do Rio Branco, ou então, novamente na Quinze, o Mignon e o
Triângulo, que disputavam a fama de terem trazido o primeiro cachorro-quente
para Curitiba – com uma ou duas vinas, não importa. Mais tarde incluímos nessa
peregrinação as boates e as casas de tolerância. Como não tínhamos cacife para
a famosa Stardust, na Osório, e a lendária Marrocos, na Marechal Deodoro, já
havia fechado as portas depois que seu dono fora assassinado por um cliente
injuriado, atracávamos na Boate Tropical, no Passeio Público, com atrações que
incluíam striptease, ainda novidade na cidade, ou então em lupanares mais
modestos, como a Casa da Otília, na Fernando Amaro, com suas luzes multicores
sobre a porta de entrada. Eu, por conta de minhas dificuldades monetárias,
restringia-me quase sempre ao papel de espectador: um espectador muitas vezes
triste, cônscio de sua sordidez e da sordidez intolerável do mundo. Quem sabe
um dia a revolução resolvesse esses problemas: as paixões do baixo-ventre e os
amores impossíveis."
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