terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Perda(Delicadeza)

Deve ser a densa insinuação de tua ausência que me tateia neste inverno de céu limpíssimo. Como eu estivesse numa interminável cena de chuva e, olhar baixo, tentasse desesperadamente descobrir no fundo dos bolsos desta velha calça de veludo (sob um dilúvio) o toque de tuas mãos. Com desespero e o pé direito tento desenhar uma pequena cordilheira com as lágrimas que se misturam, sobre os azulejos brancos, à poeira desta casa. "E se eu colocar o número três à frente do quatro, as coisas mudam, pai?" Curioso que, estriada por lágrimas, esta camisa, que era tua, parece querer comunicar algo à altura do coração. Dormes, ainda menino, abraçado a imensas orquídeas – cujas pétalas tento, em vão, tocar por entre o módulo de azuis maciços desta noite. Uma cidade devastada, outra morta. Uma a dor da outra. Toda a forma de nitidez retirou-se, deixando em nós a tortura de pensar sob a lama suja do não ter estado lá. Escavo a caixa torácica na tentativa de descobrir onde está guardada a escadaria de lajotas vermelhas, o sapo de pano, a tempestade que entrou pela janela e inundou a sala. "Pegue esse abraço aqui e se cuide, é na noite escura que tudo se torna ainda mais amargo". Quando ateei fogo à casa, não percebi a parábola que estava criando para tentar domar meus medos. Levanto-me, caminho de um lado a outro. São livros, discos, copos vazios, tênis jogados, uma cortina encardida. "É... como nos desenhos animados, você sempre aparecia para salvar o dia". Quando eu não quis mais ser feliz, entendeste perfeitamente. As declarações de amor são silenciosas e é dessa maneira que nos devolvem ao útero de nossa irremediável catástrofe. É que as declarações de amor moram com as prímulas, bem no início da primavera. Tornamos-nos o coração morto de uma galáxia perdida dentro de uma bola de sabão. E, perplexos, notamos que não há remédio. Jamais haverá. "Vá lá, filho, faça as coisas que devem ser feitas. Mas não se esqueça de algumas outras coisas que você já sabe muito bem, não é mesmo?" Estamos doendo num jardim aleijado, meu pai. Há uma montanha ao norte, um repuxo de céu. E há um balcão, garrafas e uma cafeteira em algum lugar. Sinto-me cada vez mais longe de casa como um aroma que se perde em si mesmo. Nada aconteceu, meu pai. And I don’t fucking care! Com este sorriso tímido, sempre de luto, na beirada desse crepúsculo recortado pela janela deste vagão, miro um livro aberto e outro fechado, ou uma xícara de café ornada com dedos brancos e olhos baixos sob um chapéu coco e uma cadeira vazia à frente. É uma natureza desolada, inescapável pesadelo. "Você não tem muita escolha, filho. Você retalha ou não suas virtudes, suas vítimas". É que de repente todas as saudades foram criadas de uma só vez. Impossível dizer adeus do perto desse distante. Há uma pedra que guardamos conosco, no interstício entre a lua e nossos pulmões. Pedra que pavimenta o caminho que não é música, que não é poro, não é papel, que não é. Matéria de insônia, apenas. Saudade, velho, saudade. É nesta imaginária alameda de tílias que passeio meu corpo de filho prendado na espera. Alvejado, dia após dia, vejo, ao contemplar o céu da memória, que não há cura. É que a saudade brinca fora da morte, como as estrelas.

Fabiano Calixto

Publicado originalmente no n.2 da revista MODO DE USAR& CO., editada por Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck.

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