segunda-feira, 17 de junho de 2013

Com o ar da graça





Ele sofria quieto, evitando gritar, gemer, chorar. A morte viria logo, este era seu consolo.
Em fase terminal e plena lucidez aos noventa anos, não queria que sua dor ferisse ainda mais os sentimentos de seus familiares, em especial sua bisneta, seu xodó. Há menos de um ano, ele servia de cavalo e relinchava no trote manco, para parecer mais com um cavalinho, na fantasia de sua pequena. Era um velho brincalhão.
Conformados, todos esperavam sua partida. A pequena não entendia como se podia ir embora sem um aceno, sem um “boa viagem”, antecipando a partida.
Em uma madrugada, quando todos esperavam o seu último suspiro, a menina entrou discretamente no quarto. De olhos fechados e rosto contorcido, o bisavô sentiu a presença de sua mais querida garotinha. Abriu um dos olhos, era como se sorrisse naquele olho lacrimejante. A bisneta lembrou seu “biso” de quanto ele a fez sorrir, e das vezes que, quando não ria das piadas sem graça, fazia cócegas nela até abrir o sorriso no rosto e então parar. Ele ouvia as palavras da menina como sinfonia de amor em tom de despedida.
Percebendo que seu “biso” estava partindo, disse-lhe: “Boa viagem, vá bricá com Papai do céu, lá deve ter muita criancinha e também um jardim cheio de margarida branca”. Com seus dedinhos, passava carinhosamente no pescoço dele, fazendo-lhe cócegas, tirando não o último suspiro do agonizante, mas a última risada da alma de um velho brincalhão. Foi-se com o ar da graça que lhe caía bem à face.

J.Damasio/ Oração de um Quase Descrente / 2006



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