Aí vai mais um capítulo de meu romance "Que fim levaram
todas as flores", que em muitas partes flerta com a crônica:
Interessante, as gírias. Algumas, antiquíssimas e
renitentes, perpassam gerações, sobrevivem a modas e modismos. Como “cara”,
usada no sentido de “sujeito”, “indivíduo”, “pessoa”. Não se sabe quando surgiu
(deve ser coisa ainda do século XIX), mas seu primeiro registro literário foi
em 1922, no romance Clara dos Anjos, do grande Lima Barreto. Outras, ao
contrário, depois de um momento de explosão, desaparecem, evaporam – ou, quando
ainda empregadas, delatam fatalmente a idade do falante. Como “bicho”, no mesmo
sentido de cara, ou “grilo”, significando “problema”, que, acoplando-se ao
anterior, dava o “bicho-grilo”, que não há mais quem use. Ou “broto”, também de
minha época, que ressurgiu nos anos 80 e há tempos está em desuso, substituído
pelo – sem nenhuma imaginação – “novinha”. Não é o caso de “gata”, que, manhosa
ou não, perdura até os nossos dias. Ou então “velho”, utilizada como vocativo:
é mais velho que eu e hoje vemos muito adolescente imberbe (ou novinha) se
dirigindo a outro desse modo: e daí, velho, bora lá? Outros exemplos de gírias
daqueles tempos que ainda seguem vivas: escroto, mina, rango, tesão, treta,
zorra... No entanto, quem ainda hoje “bate um fio” ou “bota pra quebrar”? É
verdade que telefone não tem fio faz uma cara (outra gíria). Por outro lado, os
telefones públicos também não funcionam mais à base de fichas mas a expressão
“cair a ficha” continua em voga.
Outra coisa muito comum no campo das gírias é a variação
semântica. Babaca, por exemplo, já foi “vagina”, depois virou sinônimo de
“bobo”, “parvo”, “tolo”, para finalmente assumir o significado atual de
“estúpido”, “boçal”, “imbecil”. Outro caso é “transar”, que no nosso tempo não
tinha ainda a conotação de “trepar” mas de “fazer uma transação”, “praticar”,
“maquinar”. Por exemplo: “fulano deu agora pra transar artesanato”. Todavia o
mais usual é a substituição pura e simples: o hoje habitual “galera” já foi
“patota”, “rapaziada”, “moçada” ou “cambada”. Por outro lado, algumas
expressões, conservando mais ou menos o mesmo sentido, mudam de forma: “numa
boa” evoluiu para “na boa” e hoje é “de boa/de boas”. Se você está “numa boa”,
meu chapa (ou melhor, meu brother), sinto lhe informar: você é um “coroa”,
aliás, um “tiozão”. Diferente das gírias, tão mudáveis, a maioria dos palavrões
– puta”, “caralho”, “foder”, só para ficar em alguns exemplos – são tão antigos
quanto a língua portuguesa. Este último, por exemplo, não comparece apenas na
lírica do nosso Boca do inferno, no século XVII (“De dois ff se compõe / esta
cidade a meu ver: / um furtar, outro foder.”), mas vamos encontrá-lo lá atrás,
no cancioneiro do trovadores do século XIII/XIV: “Por Deus, Luzia Sanches, Dona
Luzia, / se eu foder-vos pudesse, foder-vos-ia.”
Cavoucando na memória (sempre enganosa) e compulsando fontes
(letras de música, revistas da época e sobretudo João Antônio e Plínio Marcos),
fiz uma lista de gírias e expressões de meus verdes anos. Algumas ainda estão
em circulação, outras se converteram em artigo de museu linguístico. Aí vai:
abafar, abibolado, abiscoitar, aguentar as pontas, aloprado, amarração/se
amarrar, badalação, balançar as estruturas, baratinar/baratinado, barbarizar,
barra limpa, barra pesada, beleléu, bolha, caranga, cascata, cocota, cuca
fresca, curtição, dar bandeira, dar sopa, de lascar, deitar e rolar, durango,
entrar na onda, esculacho, estar por dentro, estar por fora, ficar ligado,
ferro na boneca, fogo na jurupoca, fricote, fuleiragem, fundir a cuca, goiabão,
granfa, lero, mancada, mandar brasa, mandar ver, marcar bobeira, marcar touca,
mocorongo, moleza, na maciota, pacas, pé na tábua, pra burro, pra cachorro, pra
dedéu, quadradismo, qual é o plá, saber das coisas, sacal, sentir o drama,
tacar ficha, tirar onda, tirar um sarro, topar a parada, torrar o saco, traçar,
truta, vagau, vidrado, xarope, zureta... Paro por aqui. Este inventário podia
se estender por páginas e páginas, pois nada atesta mais a vitalidade de uma
língua do que o fato de haver tantas palavras e expressões mortas ou
moribundas.
Otto Leopoldo Winck