segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

QUEM IMUNIZA O MEU FILHO?


Um senhor entrou com o filho deficiente mental numa padaria. O menino engrolava a língua e apontava para tudo quanto era gôndola, como se estivesse excitado com as fotos nas embalagens – com o mel que escorria dos pacotes de biscoitos, com as vacas que se derramavam das caixas de leite. Dois adolescentes, numa mesa lanchando, começaram a rir do menino. Tentavam, cobrindo a boca com a borda da camisa, mas não conseguiam controlar os risos. Um deles ria tanto que batia com o bico do tênis no pé da mesa, quase virando-a. O outro largou os livros no chão num de seus abalos de corpo inteiro. O senhor, ouvindo o baque dos livros no piso, notou o riso dos adolescentes. E segurou firme no braço do filho, passou-lhe a mão nos cabelos e o trouxe para perto do ombro, como que o abrigando da zombaria. Os adolescentes não conseguiam se conter, e um já até se dirigia para o caixa para ver se refreava a euforia. O senhor aí deixou escapar uma lágrimas, mas não quis expor o choro, nem para o filho nem para os adolescentes, que agora já iam deixando a padaria, um empurrando o outro, sempre aos risos. O senhor se curvou para (e não estava precisando) alcançar uma caixa de aveia. Se curvou para ocultar o rosto molhado. Porque não pensava no agora do filho, com ele, pai, ali bem perto. Pensava no futuro do menino, depois que já estivesse morto – quem iria acolher o seu Rafael? Quem iria, acomodando-o em palavras que abrandam, repousam, fazer apagar a tinta suja do riso alheio? Quem iria imunizar a sua criança contra o mundo?

[Rinaldo de Fernandes]

[De “O Livro dos 1001 Microcontos”, nº 981]

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