Caminhantes nos recortes
de ruas e milênios,
presas construídas de civilização,
solitariamente humanos,
migrantes do sono para o despertar
tão raso
quanto a poça dos calendários
tão fundo
quanto o acenar de uma brisa.
Tullio Stefano
http://www.poeteias.blogspot.com/
sábado, 31 de julho de 2010
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Fernando Pessoa
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.
São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.
Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.
Ninguém
Uma pausa e dois movimentos, assim ela vai ganhando leveza, girando na sala crepuscular.Ele assiste a dança que nasce dessa ingênua teimosia. Um-dois-dois-um, um-dois-dois-um. Ela roda, presença porosa, indisfarçável conteúdo sob todos os véus. O cavalo cego freme as narinas novamente, levantando as patas dianteiras. Ardem .A náusea agora é um rio sem márgens, onde ele mergulha à deriva. Na última golfada um feixe mudo de alma, nódoa nos linhos da mesa posta. Seus olhos ainda respiram na sala ,à espera de sapatilhas desatadas.
Ledusha
Risco no Disco.Mais!Folha de São Paulo.19/07/1998
Língua-de-Trapo
Você me disse que a vizinha disse
que eu sempre disse que você é louca.
Essa vizinha que só faz trancinha
de falar sózinha, vive sempre rouca.//
Encontrei até quem garantisse
que a vizinha disse que eu falei demais.
E esse alguém que fala mal de todo mundo
creio que no fundo não é mau rapaz.
Que bom seria eu, face a face,
hoje declarasse para a vizinha rouca
que ela deve se chamar língua-de -Trapo
quanto bate-papo!
Quanto bate-boca.
Noel Rosa
que eu sempre disse que você é louca.
Essa vizinha que só faz trancinha
de falar sózinha, vive sempre rouca.//
Encontrei até quem garantisse
que a vizinha disse que eu falei demais.
E esse alguém que fala mal de todo mundo
creio que no fundo não é mau rapaz.
Que bom seria eu, face a face,
hoje declarasse para a vizinha rouca
que ela deve se chamar língua-de -Trapo
quanto bate-papo!
Quanto bate-boca.
Noel Rosa
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Cigarras no apocalipse
Quando o poema emerge,
Estridente,
Emudece o verão
Escurece a primavera
Incendeia o outono
Poetas são cigarras
No apocalipse
Sempiterno som
Canto que incomoda
Sacode as esfinges
As filosofias vãs
Permeia a triste Ingrid
Na serra colombiana
Canto ecoa
Em muralhas pagãs
Invade corredores
Cola ao som o hortelã
Das festas de antes
Arranca lágrimas cinzas
No silêncio laranja
De Guantánamo
O som ardido trinca o sol
Escorre gema zelosa
Na chaga das crianças
Da África inteira
Canta a primavera afogada
Da vida ceifada.
A cigarra segue
No apocalipse sem volta
Anoitece areias de Fallujah
Todas as ruas da Faixa de Gaza
Cigarras no apocalipse
São poetas em desalinho
Gestados no ventre escuro
Ninfas subterrâneas
Emergem em canto e vôo
Ao som da trombeta
De um anjo sem olhos.
Bárbara Lia
Fonte: Cronópios
Estridente,
Emudece o verão
Escurece a primavera
Incendeia o outono
Poetas são cigarras
No apocalipse
Sempiterno som
Canto que incomoda
Sacode as esfinges
As filosofias vãs
Permeia a triste Ingrid
Na serra colombiana
Canto ecoa
Em muralhas pagãs
Invade corredores
Cola ao som o hortelã
Das festas de antes
Arranca lágrimas cinzas
No silêncio laranja
De Guantánamo
O som ardido trinca o sol
Escorre gema zelosa
Na chaga das crianças
Da África inteira
Canta a primavera afogada
Da vida ceifada.
A cigarra segue
No apocalipse sem volta
Anoitece areias de Fallujah
Todas as ruas da Faixa de Gaza
Cigarras no apocalipse
São poetas em desalinho
Gestados no ventre escuro
Ninfas subterrâneas
Emergem em canto e vôo
Ao som da trombeta
De um anjo sem olhos.
Bárbara Lia
Fonte: Cronópios
domingo, 25 de julho de 2010
SOFRIMENTO
No oceano integra-se — bem pouco!
uma pedra de sal.
Ficou o espírito, mais leve
que o corpo.
A música, muito além
do instrumento.
Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso.
Ficou o selo, o remate
da obra.
A luz que sobrevive a estrela
e é sua coroa.
O maravilhoso. O imortal.
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
Henriqueta Lisboa
No oceano integra-se — bem pouco!
uma pedra de sal.
Ficou o espírito, mais leve
que o corpo.
A música, muito além
do instrumento.
Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso.
Ficou o selo, o remate
da obra.
A luz que sobrevive a estrela
e é sua coroa.
O maravilhoso. O imortal.
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
Henriqueta Lisboa
sábado, 24 de julho de 2010
Paraíso? realmente!maaas..., foi por isso que Milton está com amnésia."O" Perdido era artificial e Baudalaire entrou numa pira que dura até hoje.Já Américo Vespuccio, embora decepcionado c/ nossa atualidade,corre nos boatos fluminenses, que ele é acionistas de Angra(I)e que seja!O último dos tamôios vende refri em Copacabana.
foto e texto de Tullio Stefano
foto e texto de Tullio Stefano
quinta-feira, 22 de julho de 2010
De volta a vida real
Depois da Copa, começo enfim a voltar à vida real. Achei que foi uma copinha meio sem-vergonha, quase sempre retrancada e sem graça. Mas já circula o logotipo da Copa 2014, para felicidade dos cartunistas. Criaram a estética do realismo socialista brasileiro, a pátria amada cheia de mãos no jarro, tudo em verde e amarelo. Parece que vamos continuar com o mesmo assunto por muito tempo.
O Irã, por exemplo, determinou o corte oficial dos cabelos no país – todo mundo tem de cortar o cabelo de acordo com o padrão de Estado, que seria supostamente o da religião. A barba continua livre; parece que em muitos casos ela é até mesmo obrigatória. Assim, um jovem iraniano que queira exercer o sagrado direito de protestar, deve cortar a barba e deixar o cabelo crescer. Nos meus saudosos anos 70, o cabelo comprido era uniforme obrigatório da contestação, com a moldura da barba, tudo sem aparar, naquele jeito maldormido dos rebeldes com e sem causa. A barba não tirei até hoje, mas agora sem ideologia – é preguiça mesmo. A ideia de o Estado controlar também o corte do cabelo até que seria boa para mim – não teria de explicar penosamente ao cabeleireiro como resolver esse ralo matagal que me cobre a cabeça, naquele sofrimento a que me submeto, por insistência da família, todo semestre. Com um modelo obrigatório de cabelo, o problema estaria automaticamente resolvido, já que tento ser um cidadão obediente.
Mas, no Irã, o risco da desobedecer à lei é maior do que aqui; eles não estão brincando. Por exemplo: enquanto o Brasil aprovou a lei do divórcio automático – basta a concordância mútua dos cônjuges e o contrato está desfeito, porque ninguém tem nada a ver com a vida dos outros –, o Estado iraniano condena à pena de morte por apedrejamento (assim mesmo) a mulher que pratica adultério. Pobre madame Bovary, a célebre personagem de Gustave Flaubert, proibida de circular na França do século 19 por atentado ao pudor e aos bons costumes! Eles ficaram tão traumatizados com a condenação de madame Bovary que hoje proíbem o uso público da burca, no melhor estilo francês: mulher tem de aparecer!
Mas as coisas estão melhorando. Leio na Gazeta que a iraniana Sakineh Ashtiani, acusada de manter “relações ilícitas”, teve a pena de morte por apedrejamento suspensa, depois de uma gritaria mundial. Infelizmente ela não escapou de receber as “99 chicotadas” preliminares pelo seu crime. Fiquei matutando: por que “99”? Se não fosse trágico, lembraria a pergunta retórica de Borges: por que a obra-prima da literatura oriental se refere a “1001 noites”, e não simplesmente mil, ou novecentas, ou mil e cem? A comparação talvez não seja tão absurda – na verdade, trata-se do mundo vivido sob o pensamento mágico, que, transposto à vida real, às vezes resulta em tragédia.
Cristovão Tezza.
Fonte:Gazeta do Povo 22/07/2010
O Irã, por exemplo, determinou o corte oficial dos cabelos no país – todo mundo tem de cortar o cabelo de acordo com o padrão de Estado, que seria supostamente o da religião. A barba continua livre; parece que em muitos casos ela é até mesmo obrigatória. Assim, um jovem iraniano que queira exercer o sagrado direito de protestar, deve cortar a barba e deixar o cabelo crescer. Nos meus saudosos anos 70, o cabelo comprido era uniforme obrigatório da contestação, com a moldura da barba, tudo sem aparar, naquele jeito maldormido dos rebeldes com e sem causa. A barba não tirei até hoje, mas agora sem ideologia – é preguiça mesmo. A ideia de o Estado controlar também o corte do cabelo até que seria boa para mim – não teria de explicar penosamente ao cabeleireiro como resolver esse ralo matagal que me cobre a cabeça, naquele sofrimento a que me submeto, por insistência da família, todo semestre. Com um modelo obrigatório de cabelo, o problema estaria automaticamente resolvido, já que tento ser um cidadão obediente.
Mas, no Irã, o risco da desobedecer à lei é maior do que aqui; eles não estão brincando. Por exemplo: enquanto o Brasil aprovou a lei do divórcio automático – basta a concordância mútua dos cônjuges e o contrato está desfeito, porque ninguém tem nada a ver com a vida dos outros –, o Estado iraniano condena à pena de morte por apedrejamento (assim mesmo) a mulher que pratica adultério. Pobre madame Bovary, a célebre personagem de Gustave Flaubert, proibida de circular na França do século 19 por atentado ao pudor e aos bons costumes! Eles ficaram tão traumatizados com a condenação de madame Bovary que hoje proíbem o uso público da burca, no melhor estilo francês: mulher tem de aparecer!
Mas as coisas estão melhorando. Leio na Gazeta que a iraniana Sakineh Ashtiani, acusada de manter “relações ilícitas”, teve a pena de morte por apedrejamento suspensa, depois de uma gritaria mundial. Infelizmente ela não escapou de receber as “99 chicotadas” preliminares pelo seu crime. Fiquei matutando: por que “99”? Se não fosse trágico, lembraria a pergunta retórica de Borges: por que a obra-prima da literatura oriental se refere a “1001 noites”, e não simplesmente mil, ou novecentas, ou mil e cem? A comparação talvez não seja tão absurda – na verdade, trata-se do mundo vivido sob o pensamento mágico, que, transposto à vida real, às vezes resulta em tragédia.
Cristovão Tezza.
Fonte:Gazeta do Povo 22/07/2010
terça-feira, 20 de julho de 2010
A Cartomante
HAMLET observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa
filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sextafeira
de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma
cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela
adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era: Apenas
começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que
sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu
tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou, interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você
sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito,
que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a
melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente
andar por essas casas. Villela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa;
eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita
coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo
é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila
e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele,
em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a
mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair tôda
essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da
mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só
negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não
possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda
afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em
levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo,
não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por
mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro
era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu
pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da
Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Villela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens.
Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Villela seguiu a carreira de
magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo
médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou
um emprego público. No princípio de 1869, voltou Villela da província, onde casara
com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de
advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é
seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Villela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo
confessou de si para si que a mulher do Villela não desmentia as cartas do marido.
Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era
um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Villela vinte e nove e Camilo
vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Villela fazia-o parecer mais velho que a
mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a
ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para
adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de
Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Villela
cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e
ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar
as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente
era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para
incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios.
Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para
lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos
teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o
fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu
de Villela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar
cumprimento a lápis, e foi então que ele pode ler no próprio coração, não conseguia
arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou,
pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste
com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,
assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pode. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o
veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos,
tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos!
Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços
dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais
que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de
Villela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido,
e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as
suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Villela. Este notou-lhe as ausências.
Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia.
As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do
marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultála
sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante
restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram
ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão
apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum
pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou
este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o
interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Villela,
e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá
aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Villela começou a mostrar-se sombrio,
falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso
deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e
pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo
divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais
valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se
corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Villela: "Vem já,
já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo;
na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa?
Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe
trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no
papel.
Imaginariámente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa,
Villela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e
esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em
todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir
a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem
ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais
verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara
antes; podia ser que Villela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas,
sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam
decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe
murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Villela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso
falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e
ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de
minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo.
Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada
houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si
mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num
tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não
tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de
parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo,
estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à
esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez,
e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas,
quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dirse-
ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro
tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à
primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E
inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a
cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas;
desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra
vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens,
safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras
coisas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já,
já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas
queriam descer e entrar. Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou
rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de
casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro:
"Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que perdia ele, se... ?
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou
pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o
corrimão pegajoso; mais ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo
ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as
fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era
a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão,
por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha,
mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes,
paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas
para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo.
Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as
baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma
mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos.
Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas
e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem,
transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha
os olhos nela curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não
tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava
tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Faloulhe
do amor que os ligava, da beleza de Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A
cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da
mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a
mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual
estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las,
mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum,
a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse;
ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar
buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O
preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá,
vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um
leve sotaque. Camilo despediu-se dela em baixo, e desceu a escada que levava à rua,
enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola.
Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava
límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou
os termos da carta de Villela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que
ele lhe descobriu a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em
demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que
formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De
volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela
adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não
adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e
contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério
empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado;
mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo
innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os
elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora
e nas que haviam de vir.
Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a
água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo,
interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Villela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e
entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de
bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Villela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Villela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma
saleta interior. Entrando, Camilo não pode sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre
o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Villela pegou-o pela gola, e, com dois
tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
FIM
Fonte :site da abl :
filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sextafeira
de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma
cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela
adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era: Apenas
começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que
sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu
tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou, interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você
sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito,
que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a
melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente
andar por essas casas. Villela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa;
eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita
coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo
é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila
e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele,
em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a
mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair tôda
essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da
mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só
negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não
possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda
afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em
levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo,
não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por
mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro
era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu
pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da
Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Villela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens.
Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Villela seguiu a carreira de
magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo
médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou
um emprego público. No princípio de 1869, voltou Villela da província, onde casara
com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de
advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é
seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Villela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo
confessou de si para si que a mulher do Villela não desmentia as cartas do marido.
Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era
um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Villela vinte e nove e Camilo
vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Villela fazia-o parecer mais velho que a
mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a
ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para
adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de
Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Villela
cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e
ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar
as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente
era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para
incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios.
Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para
lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos
teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o
fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu
de Villela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar
cumprimento a lápis, e foi então que ele pode ler no próprio coração, não conseguia
arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou,
pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste
com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,
assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pode. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o
veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos,
tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos!
Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços
dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais
que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de
Villela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido,
e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as
suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Villela. Este notou-lhe as ausências.
Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia.
As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do
marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultála
sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante
restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram
ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão
apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum
pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou
este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o
interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Villela,
e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá
aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Villela começou a mostrar-se sombrio,
falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso
deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e
pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo
divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais
valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se
corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Villela: "Vem já,
já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo;
na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa?
Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe
trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no
papel.
Imaginariámente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa,
Villela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e
esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em
todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir
a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem
ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais
verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara
antes; podia ser que Villela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas,
sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam
decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe
murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Villela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso
falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e
ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de
minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo.
Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada
houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si
mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num
tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não
tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de
parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo,
estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à
esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez,
e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas,
quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dirse-
ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro
tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à
primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E
inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a
cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas;
desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra
vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens,
safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras
coisas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já,
já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas
queriam descer e entrar. Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou
rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de
casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro:
"Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que perdia ele, se... ?
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou
pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o
corrimão pegajoso; mais ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo
ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as
fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era
a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão,
por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha,
mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes,
paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas
para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo.
Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as
baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma
mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos.
Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas
e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem,
transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha
os olhos nela curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não
tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava
tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Faloulhe
do amor que os ligava, da beleza de Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A
cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da
mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a
mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual
estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las,
mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum,
a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse;
ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar
buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O
preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá,
vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um
leve sotaque. Camilo despediu-se dela em baixo, e desceu a escada que levava à rua,
enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola.
Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava
límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou
os termos da carta de Villela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que
ele lhe descobriu a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em
demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que
formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De
volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela
adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não
adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e
contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério
empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado;
mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo
innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os
elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora
e nas que haviam de vir.
Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a
água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo,
interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Villela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e
entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de
bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Villela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Villela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma
saleta interior. Entrando, Camilo não pode sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre
o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Villela pegou-o pela gola, e, com dois
tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
FIM
Fonte :site da abl :
Informes Aedos
ABL lança novo concurso cultural: "Conte o conto sem aumentar um ponto"
Devido a grande repercussão do concurso de Microcontos do Twitter da ABL, o Abletras, a Academia Brasileira de Letras lança hoje, 20 de julho, dia do seu aniversário de 113 anos, um novo concurso cultural, intitulado "Conte o conto sem aumentar um ponto", baseado na obra "A Cartomante", de Machado de Assis.
"Conte o conto sem aumentar um ponto" tem como objetivo dar um final distinto do original ao conto "A Cartomante", de Machado de Assis, utilizando-se o mesmo número de caracteres - ou inferior - que Machado concluiu seu trabalho, ou seja, 1778 caracteres.
Vale ressaltar que, para participar do concurso, o concorrente deverá ser seguidor do Twitter da ABL, o Abletras.
Saiba mais
Leia a obra A Cartomante, de Machado de Assis
Regulamento do concurso Conte o conto sem aumentar um ponto
Veja também
Twitter da ABL
Comente o evento no Orkut
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Assuntos relacionados
Resultado do Concurso Cultural de Microcontos do Abletras
Fonte :Academia Brasileira de Letras
http://www.academia.org.br/
Devido a grande repercussão do concurso de Microcontos do Twitter da ABL, o Abletras, a Academia Brasileira de Letras lança hoje, 20 de julho, dia do seu aniversário de 113 anos, um novo concurso cultural, intitulado "Conte o conto sem aumentar um ponto", baseado na obra "A Cartomante", de Machado de Assis.
"Conte o conto sem aumentar um ponto" tem como objetivo dar um final distinto do original ao conto "A Cartomante", de Machado de Assis, utilizando-se o mesmo número de caracteres - ou inferior - que Machado concluiu seu trabalho, ou seja, 1778 caracteres.
Vale ressaltar que, para participar do concurso, o concorrente deverá ser seguidor do Twitter da ABL, o Abletras.
Saiba mais
Leia a obra A Cartomante, de Machado de Assis
Regulamento do concurso Conte o conto sem aumentar um ponto
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Assuntos relacionados
Resultado do Concurso Cultural de Microcontos do Abletras
Fonte :Academia Brasileira de Letras
http://www.academia.org.br/
RUE NOTRE-DAME-DES-CHAMPS
Danaide - Auguste Rodin
Rue Notre-Dame-des-Champs
Recordas?
Entre nós não foi apenas valsa
Como a que dancei com Debussy
E talhei em mármore.
Não foi espanto apenas
Como meu olhar azul na onda
- Fuji ao fundo -
Terna reverência à Hokusai.
Lampejos de esperança – nosso encontro -
Sem saber que em minha vaga
Ao tecer crianças prestes a um naufrágio
Reproduzia o meu destino trágico
Antes um plágio – roubar o barco de Hokusai, não colocar-me ali.
Mas, com minhas mãos pequenas
Esculpo apenas o que pulsa
Cão criança mulher amado.
Amado!
Raptado pela rosa fendida
Rose, meu espinho
Tu, carinho que eu perdi
Entre as vagas e a maré de egos.
Rue Notre-Dame-des-Champs
Recordas?
A minha agonia que nem podia
Esperar o novo dia
Estar em tua porta
Deitar-me
Natureza morta
Para que me eternizasse
- Danaide -
Sem saber que meus dedos
Iam moldar meu alienado fim:
Rupturas e súplicas.
Espanto em rostos de Ninfas
Medusa, Castelãs, Crianças.
Rue Notre-Dame-des-Champs
Tua criança amorável eu era
Dezoito anos, olhos de céu no dia da criação
Lábios sensuais em flor. Comecei a esculpir
– Pés, pés, pés...
Sem saber que dentro
Da alma fera e feminina
Esculpia um coração de vidro
Sem imaginar que um dia os estilhaços
Ergueria a onda mais alta e brilhante
E me soterraria – viva!
BÁRBARA LIA
Para Camille, com uma flor de pedra
ed.21gramas/2010
segunda-feira, 19 de julho de 2010
O amor em visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele – imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.
Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra – invento para ti a música, a loucura
e o mar.
Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.
Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira – para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.
Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.
Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.
Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.
Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.
Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.
Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.
Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.
E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.
E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água – e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.
Herberto Helder
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele – imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.
Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra – invento para ti a música, a loucura
e o mar.
Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.
Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira – para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.
Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.
Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.
Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.
Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.
Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.
Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.
Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.
E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.
E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água – e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.
Herberto Helder
A Deriva
À deriva
enxofres calcinados
derivam e perseguem :
Chofres
do espanto mudo
cinzas
da chama interrompida
não apagada...
Chofres do alheio
Chofres do filamento.
O tempo alheio,
fita
com olhos de cacto
e bebo-lhe a água parca
a triturar espinhos;
lágrimas-letras
me escrevem
o acúmulo vespertino
e a incessante vontade
que deriva
e reluz...
À deriva
das ruas,
ímpia madrugada,
enxofres azuis
como veias
veias sedentas
do cloreto
do bromuro
do cianureto
À deriva,
ronda visionária
da alma
qual acalanto
por embates
do não mais ser
e ainda ser.
Doce amargo
é o Palácio Desejo,
precipício das horas
e sibilante ascenção do gozo.
Chofres da lembrança
recordam
as agulhas
que costuram
epílogos cerrados
da coragem
e do medo.
Antíteses
ventam
o soerguido.
Tullio Stefano
http://www.poeteias.blogspot.com/
enxofres calcinados
derivam e perseguem :
Chofres
do espanto mudo
cinzas
da chama interrompida
não apagada...
Chofres do alheio
Chofres do filamento.
O tempo alheio,
fita
com olhos de cacto
e bebo-lhe a água parca
a triturar espinhos;
lágrimas-letras
me escrevem
o acúmulo vespertino
e a incessante vontade
que deriva
e reluz...
À deriva
das ruas,
ímpia madrugada,
enxofres azuis
como veias
veias sedentas
do cloreto
do bromuro
do cianureto
À deriva,
ronda visionária
da alma
qual acalanto
por embates
do não mais ser
e ainda ser.
Doce amargo
é o Palácio Desejo,
precipício das horas
e sibilante ascenção do gozo.
Chofres da lembrança
recordam
as agulhas
que costuram
epílogos cerrados
da coragem
e do medo.
Antíteses
ventam
o soerguido.
Tullio Stefano
http://www.poeteias.blogspot.com/
Informes Aedos
bom dia,
a segunda etapa dos artesanais concluida, com o título - Ônix & Cereja - poesia
e prosa poética em sete livros a saber:
Ônix & Cereja
- À sombra de um rio (o livro do amor)
- Como eu vim parar aqui? (prosa poética)
- Coreógrafa do Caos (prosa poética)
- Nebulosas no Quintal (poemas estelares)
- O Lugar do Segredo (peça de teatro)
- Réquiem (o livro da lágrima)
- Uma Lua em teu Ventre (poema-epopéia)
toda a maratona deste projeto está na página
http://edicoes21gramas.blogspot.com/
os primeiros livros foram bem recebidos pelos leitores e amigos e poetas,
quem desejar algum dos livros acima, envie endereço para meu email
o valor agora é 7,00(sete reais) cada livro.
á conta é
Bárbara Lia Soares
conta-poupança - Caixa Econômica Federal (código 13)
ag. 2553
conta 22133-8
grande abraço
a segunda etapa dos artesanais concluida, com o título - Ônix & Cereja - poesia
e prosa poética em sete livros a saber:
Ônix & Cereja
- À sombra de um rio (o livro do amor)
- Como eu vim parar aqui? (prosa poética)
- Coreógrafa do Caos (prosa poética)
- Nebulosas no Quintal (poemas estelares)
- O Lugar do Segredo (peça de teatro)
- Réquiem (o livro da lágrima)
- Uma Lua em teu Ventre (poema-epopéia)
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á conta é
Bárbara Lia Soares
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ag. 2553
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grande abraço
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Musa? Inspiradora?
Musa? Inspiradora?
Poetas
somos
apaixonados tolos
sofrendo de amor
Olhos nos olhos
prevemos o fim
sabemos tolice
enganamo-nos a toa
com plena consciência
que o sol e a lua
riem
dos sentimentos caquéticos
nutridos de sonhos
expressos e crentes
de seres poéticos
Informes Aedos
De 1º a 10 de outubro de 2010, Curitiba será a capital da literatura. A cidade vai receber a Bienal do Livro do Paraná, no Estação Embratel Convention Center. A Bienal será uma realização da Fagga Eventos, em conjunto com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e a Câmara Brasileira do Livro (CBL). O objetivo do evento é incentivar o hábito da leitura e democratizar o acesso aos livros e a literatura, fortalecendo a Educação e a Cultura no país.
A Bienal do Livro do Paraná seguirá o modelo já consagrado da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, que em 2009 chega à sua 14ª edição, e das Bienais do Livro de Minas Gerais e da Bahia, sendo muito diferente do evento literário recentemente realizado em Curitiba.
Uma grande festa do livro. Assim será a Bienal do Livro do Paraná. Uma vasta programação cultural, direcionada para todos os públicos – de todas as idades – irá proporcionar o encontro dos leitores com seus autores, incluindo palestras, debates, sessões de autógrafos e visitação escolar. A expectativa é receber, durante os 10 dias de evento, público de aproximadamente 200 mil pessoas – sendo 40 mil alunos de escolas da rede pública e privada.
O evento vai ocupar dois auditórios do Estação Embratel, um total de 246 metros quadrados de área. São esperados 60 expositores na edição de 2010. Uma das grandes atrações da Bienal será o Café Literário, palco de encontros informais e descontraídos entre autores e público. A programação diversificada possibilita que sejam apresentados temas como humor, processo criativo e preferências literárias, entre outros.
Com foco no público infanto-juvenil, a Bienal vai oferecer uma série de atividades especiais que irão estimular o prazer pela leitura. Uma área será transformada no Circo das Letras, com direito a picadeiro e luzes coloridas, onde serão realizadas oficinas de leitura e apresentação de contadores de histórias.
Serviço - Bienal do Livro do Paraná
Data: 01 a 10 de outubro de 2010
Local: Estação Embratel Convention Center – Avenida Sete de Setembro 2.775 - Curitiba
Realização: Fagga Eventos, Sindicato Nacional dos Editores de Livros – SNEL, Câmara Brasileira do Livro – CBL
Mais informações: http://www.bienaldoparana.com.br/
fonte : clickfoz
A Bienal do Livro do Paraná seguirá o modelo já consagrado da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, que em 2009 chega à sua 14ª edição, e das Bienais do Livro de Minas Gerais e da Bahia, sendo muito diferente do evento literário recentemente realizado em Curitiba.
Uma grande festa do livro. Assim será a Bienal do Livro do Paraná. Uma vasta programação cultural, direcionada para todos os públicos – de todas as idades – irá proporcionar o encontro dos leitores com seus autores, incluindo palestras, debates, sessões de autógrafos e visitação escolar. A expectativa é receber, durante os 10 dias de evento, público de aproximadamente 200 mil pessoas – sendo 40 mil alunos de escolas da rede pública e privada.
O evento vai ocupar dois auditórios do Estação Embratel, um total de 246 metros quadrados de área. São esperados 60 expositores na edição de 2010. Uma das grandes atrações da Bienal será o Café Literário, palco de encontros informais e descontraídos entre autores e público. A programação diversificada possibilita que sejam apresentados temas como humor, processo criativo e preferências literárias, entre outros.
Com foco no público infanto-juvenil, a Bienal vai oferecer uma série de atividades especiais que irão estimular o prazer pela leitura. Uma área será transformada no Circo das Letras, com direito a picadeiro e luzes coloridas, onde serão realizadas oficinas de leitura e apresentação de contadores de histórias.
Serviço - Bienal do Livro do Paraná
Data: 01 a 10 de outubro de 2010
Local: Estação Embratel Convention Center – Avenida Sete de Setembro 2.775 - Curitiba
Realização: Fagga Eventos, Sindicato Nacional dos Editores de Livros – SNEL, Câmara Brasileira do Livro – CBL
Mais informações: http://www.bienaldoparana.com.br/
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quinta-feira, 15 de julho de 2010
El orador
En una hermosa mañana se celebraba el entierro del asesor colegiado Kirill Ivanovich Vavilonov, muerto de dos enfermedades sumamente frecuentes en nuestra patria: una esposa maligna y el vicio del alcohol. Mientras el cortejo fúnebre se dirigía de la iglesia al cementerio, uno de los compañeros de trabajo del difunto, un tal Poplavski, tomó un coche y se dirigió a toda prisa a casa de su amigo Grigorii Petrovich Zapoikin, hombre, aunque joven, ya bastante popular. Tenía Zapoikin (como saben los lectores) un talento extraordinario para pronunciar discursos en bodas, jubilaciones y entierros. Estaba capacitado para hablar en cualquier momento: lo mismo recién despierto, que en ayunas, que borracho o que preso de fiebre. Su discurso fluía llanamente, sin interrupción..., tan abundantemente como fluye por una canaleta el agua de la lluvia. Para expresar aflicción, encerraba el vocabulario del orador muchas más palabras que cucarachas tiene cualquier taberna. Sus discursos eran tan elocuentes y largos, que a veces, sobre todo en las bodas de los comerciantes, había que recurrir a la ayuda de la Policía para hacerle callar.
-Vengo a buscarte, hermanito -empezó a decir Poplavski al encontrarlo en casa-. Vístete en seguida y vámonos. Ha muerto uno de los nuestros, al que estamos ahora mismo en trance de enviar al otro mundo, conque hace falta, hermanito, que haya quien diga alguna cosita para su despedida. Nuestra única esperanza eres tú. Si el muerto fuera uno de los subalternos... no te molestaríamos; pero éste era un secretario..., en cierto modo un jefe... Es desagradable enterrar a un personaje de su categoría sin que se diga algún discurso...
-¡Ah!..., ¡el secretario!... -bostezó Zapoikin-. ¿Aquel borracho?
-Sí, aquel borracho... Habrá comida..., blini..., entremeses... Además nos pagan el coche. ¡Vamos, alma mía! ¡Allí, junto a la tumba, pronunciarás un discurso ciceroniano y ya verás lo que te lo agradecen!
Zapoikin accedió de buen grado. Desmelenó su cabello, obligó a adoptar a su rostro una expresión de melancolía y salió a la calle en compañía de Poplavski.
-Conocía a tu secretario -dijo cuando se sentaba en el coche-. Que en paz descanse..., pero era un pillo y una bestia como hay pocos.
-No está bien, Grischa, eso de ofender a los difuntos...
-Cierto que aut mortiu nihil bene... No obstante, era un bribón.
Los dos amigos dieron alcance al cortejo y se unieron a él. Como el féretro iba conducido a un paso muy lento, antes de llegar al cementerio, los amigos tuvieron tiempo de entrar cerca de tres veces en la taberna y de beber unas copitas al eterno descanso del difunto.
En el cementerio se celebró un oficio religioso. La suegra, la mujer y la cuñada, como es costumbre, lloraron copiosamente y la mujer hasta gritó cuando bajaban el ataúd a la fosa. "¡Déjenme ir con él!..." A pesar de lo cual, y recordando sin duda la pensión por viudez que había de recibir... no se fue con él. Después de esperar un poco a que todo se tranquilizara, Zapoikin avanzó unos pasos, paseó su mirada sobre los presentes y empezó a decir:
-¿Puede uno creer lo que ven los ojos y oyen los oídos?... ¿Este ataúd... estas caras llorosas..., estos lamentos y estos sollozos..., no serán una pesadilla?... ¡Ay de mí! ¡No es un sueño, no! ¡No nos engaña la vista! ¡Aquel que hasta hace tan poco vimos lleno de vigor, de juventud, de frescura y lozanía!..., ¡aquel que aún hace tan poco tiempo, ante nuestros mismos ojos, llevaba su miel, cual abeja incansable, a la colmena común del bien del Estado... ¡es el mismo que vemos ahora convertido en nada..., en un mirage! ¡La muerte irreductible puso su mano sobre él cuando, a pesar de su avanzada edad, se encontraba aún lleno de fuerza y de esperanzas ultraterrenales!... ¡Su pérdida es irremplazable! ¿Quién nos lo puede reemplazar?... Tenemos muchos buenos funcionarios, pero puede decirse que Procofii Osipich era único en su género... Devoto hasta lo más profundo de su alma del honrado cumplimiento de sus obligaciones, lejos de regatear sus fuerzas, pasaba las noches en vela y era desinteresado e insobornable. ¡Cuánto despreciaba a aquellos que con perjuicio del interés general pretendían comprarlo!..., ¡que ofreciéndole tentadores bienes terrenales, se esforzaban en atraerlo hacia la traición a su deber! ¡Sí!... ¡Ante nuestros ojos hemos visto a Procofii Osipich repartir su modesto sueldo entre los más pobres de sus compañeros, y ustedes mismos acaban de oír hace un instante los sollozos de las viudas y de los huérfanos que vivían gracias a sus limosnas. Esclavo del servicio, de su deber y de la bondad, no conoció la alegría, y hasta se rehusó a sí mismo la felicidad de la vida matrimonial. ¡Ya saben ustedes que hasta el final de su vida permaneció soltero! ¿Y como compañero?... ¿Quién podría reemplazarlo? ¡Lo mismo que si fuera ayer me parece ver su rostro conmovido y afeitado, dirigido hacia nosotros!... ¡Su bondadosa sonrisa!... ¡Como si todavía fuera ayer, oigo su suave, cariñosa y afable voz!... ¡Descansa en paz: Procofii Osipich!... ¡Descansa..., honrado y noble trabajador!
Zapoikin continuaba perorando, pero los oyentes empezaron a hablar entre sí en voz baja. El discurso gustaba a todos y hacía verter algunas lágrimas. Mucho de él, sin embargo, resultaba extraño... En primer lugar era incomprensible por qué el orador llamaba al difunto Procofii Osipich cuando su nombre era Kirill Ivanovich. En segundo, todos sabían que éste había pasado la vida entera en perpetua lucha con su legítima esposa y que, por tanto, no podía calificarle de soltero..., y en tercero, era inexplicable que habiendo tenido una espesa barba de color rojizo, que en su vida había hecho afeitar ni una sola vez, hubiera llamado el orador a su rostro afeitado. Los oyentes se miraban con extrañeza.
-¡Procofii Osipich! -proseguía el orador mirando inspirado a la tumba-. ¡Tu rostro era feo!... ¡hasta deforme!... ¡Eras taciturno y severo, pero todos sabíamos que bajo aquella corteza latía un corazón honrado y afectuoso!...
Pronto, sin embargo, empezaron a observar los oyentes que algo extraño ocurría al orador, que sin apartar la vista de un mismo punto, se agitaba nervioso. De repente quedó callado y con la boca abierta para el asombro, se volvió hacia Poplavski.
-¡Pero, oye!... ¡Si está vivo!... -dijo con ojos espantados.
-¿Quién está vivo?
-¡Pues... Procofii Osipich!... ¡Está junto al mausoleo!
-¡Si el muerto no es él! ¡Es Kirill Ivanovich!
-¡Si has sido tú mismo el que me ha dicho que había muerto el secretario!
-¡No!... ¡El secretario era Kirill Ivanovich! ¡Te has confundido, tonto!... ¡Claro que también Procofii Osipich fue secretario..., pero hace ya dos años que le destituyeron!
-¡Diablo!
-¿Por qué te paras? ... ¡Sigue!
Zapoikin volvió la cabeza hacia la fosa y con la misma elocuencia que antes prosiguió su interrumpido discurso.
Al lado del mausoleo se encontraba, en efecto, Procofii Osipich, el viejo funcionario de la cara afeitada. Miraba éste con enojo al orador y fruncía las cejas.
-¿Qué ocurrencia te ha dado -reían los funcionarios, volviendo del entierro en compañía de Zapoikin- de enterrar a un vivo?
-¡Esto no está bien, joven! -gruñía Procofii Osipich-. ¡Su discurso puede ser apropiado para un difunto, pero aplicado a un vivo es una burla! ¿Qué no me ha llamado usted?... Desinteresado..., incapaz de sobornar... ¡Tales cosas, refiriéndose a un vivo, sólo pueden decirse en son de burla! ¡Nadie le ha pedido tampoco, caballero, que hablara sobre mi cara!... Si soy feo y deforme..., ¡qué le vamos a hacer! ¿Para qué decir mi apellido delante de todo el mundo? ¡Esto es una ofensa!
FIN
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Sobre el arte de narrar
-Vengo a buscarte, hermanito -empezó a decir Poplavski al encontrarlo en casa-. Vístete en seguida y vámonos. Ha muerto uno de los nuestros, al que estamos ahora mismo en trance de enviar al otro mundo, conque hace falta, hermanito, que haya quien diga alguna cosita para su despedida. Nuestra única esperanza eres tú. Si el muerto fuera uno de los subalternos... no te molestaríamos; pero éste era un secretario..., en cierto modo un jefe... Es desagradable enterrar a un personaje de su categoría sin que se diga algún discurso...
-¡Ah!..., ¡el secretario!... -bostezó Zapoikin-. ¿Aquel borracho?
-Sí, aquel borracho... Habrá comida..., blini..., entremeses... Además nos pagan el coche. ¡Vamos, alma mía! ¡Allí, junto a la tumba, pronunciarás un discurso ciceroniano y ya verás lo que te lo agradecen!
Zapoikin accedió de buen grado. Desmelenó su cabello, obligó a adoptar a su rostro una expresión de melancolía y salió a la calle en compañía de Poplavski.
-Conocía a tu secretario -dijo cuando se sentaba en el coche-. Que en paz descanse..., pero era un pillo y una bestia como hay pocos.
-No está bien, Grischa, eso de ofender a los difuntos...
-Cierto que aut mortiu nihil bene... No obstante, era un bribón.
Los dos amigos dieron alcance al cortejo y se unieron a él. Como el féretro iba conducido a un paso muy lento, antes de llegar al cementerio, los amigos tuvieron tiempo de entrar cerca de tres veces en la taberna y de beber unas copitas al eterno descanso del difunto.
En el cementerio se celebró un oficio religioso. La suegra, la mujer y la cuñada, como es costumbre, lloraron copiosamente y la mujer hasta gritó cuando bajaban el ataúd a la fosa. "¡Déjenme ir con él!..." A pesar de lo cual, y recordando sin duda la pensión por viudez que había de recibir... no se fue con él. Después de esperar un poco a que todo se tranquilizara, Zapoikin avanzó unos pasos, paseó su mirada sobre los presentes y empezó a decir:
-¿Puede uno creer lo que ven los ojos y oyen los oídos?... ¿Este ataúd... estas caras llorosas..., estos lamentos y estos sollozos..., no serán una pesadilla?... ¡Ay de mí! ¡No es un sueño, no! ¡No nos engaña la vista! ¡Aquel que hasta hace tan poco vimos lleno de vigor, de juventud, de frescura y lozanía!..., ¡aquel que aún hace tan poco tiempo, ante nuestros mismos ojos, llevaba su miel, cual abeja incansable, a la colmena común del bien del Estado... ¡es el mismo que vemos ahora convertido en nada..., en un mirage! ¡La muerte irreductible puso su mano sobre él cuando, a pesar de su avanzada edad, se encontraba aún lleno de fuerza y de esperanzas ultraterrenales!... ¡Su pérdida es irremplazable! ¿Quién nos lo puede reemplazar?... Tenemos muchos buenos funcionarios, pero puede decirse que Procofii Osipich era único en su género... Devoto hasta lo más profundo de su alma del honrado cumplimiento de sus obligaciones, lejos de regatear sus fuerzas, pasaba las noches en vela y era desinteresado e insobornable. ¡Cuánto despreciaba a aquellos que con perjuicio del interés general pretendían comprarlo!..., ¡que ofreciéndole tentadores bienes terrenales, se esforzaban en atraerlo hacia la traición a su deber! ¡Sí!... ¡Ante nuestros ojos hemos visto a Procofii Osipich repartir su modesto sueldo entre los más pobres de sus compañeros, y ustedes mismos acaban de oír hace un instante los sollozos de las viudas y de los huérfanos que vivían gracias a sus limosnas. Esclavo del servicio, de su deber y de la bondad, no conoció la alegría, y hasta se rehusó a sí mismo la felicidad de la vida matrimonial. ¡Ya saben ustedes que hasta el final de su vida permaneció soltero! ¿Y como compañero?... ¿Quién podría reemplazarlo? ¡Lo mismo que si fuera ayer me parece ver su rostro conmovido y afeitado, dirigido hacia nosotros!... ¡Su bondadosa sonrisa!... ¡Como si todavía fuera ayer, oigo su suave, cariñosa y afable voz!... ¡Descansa en paz: Procofii Osipich!... ¡Descansa..., honrado y noble trabajador!
Zapoikin continuaba perorando, pero los oyentes empezaron a hablar entre sí en voz baja. El discurso gustaba a todos y hacía verter algunas lágrimas. Mucho de él, sin embargo, resultaba extraño... En primer lugar era incomprensible por qué el orador llamaba al difunto Procofii Osipich cuando su nombre era Kirill Ivanovich. En segundo, todos sabían que éste había pasado la vida entera en perpetua lucha con su legítima esposa y que, por tanto, no podía calificarle de soltero..., y en tercero, era inexplicable que habiendo tenido una espesa barba de color rojizo, que en su vida había hecho afeitar ni una sola vez, hubiera llamado el orador a su rostro afeitado. Los oyentes se miraban con extrañeza.
-¡Procofii Osipich! -proseguía el orador mirando inspirado a la tumba-. ¡Tu rostro era feo!... ¡hasta deforme!... ¡Eras taciturno y severo, pero todos sabíamos que bajo aquella corteza latía un corazón honrado y afectuoso!...
Pronto, sin embargo, empezaron a observar los oyentes que algo extraño ocurría al orador, que sin apartar la vista de un mismo punto, se agitaba nervioso. De repente quedó callado y con la boca abierta para el asombro, se volvió hacia Poplavski.
-¡Pero, oye!... ¡Si está vivo!... -dijo con ojos espantados.
-¿Quién está vivo?
-¡Pues... Procofii Osipich!... ¡Está junto al mausoleo!
-¡Si el muerto no es él! ¡Es Kirill Ivanovich!
-¡Si has sido tú mismo el que me ha dicho que había muerto el secretario!
-¡No!... ¡El secretario era Kirill Ivanovich! ¡Te has confundido, tonto!... ¡Claro que también Procofii Osipich fue secretario..., pero hace ya dos años que le destituyeron!
-¡Diablo!
-¿Por qué te paras? ... ¡Sigue!
Zapoikin volvió la cabeza hacia la fosa y con la misma elocuencia que antes prosiguió su interrumpido discurso.
Al lado del mausoleo se encontraba, en efecto, Procofii Osipich, el viejo funcionario de la cara afeitada. Miraba éste con enojo al orador y fruncía las cejas.
-¿Qué ocurrencia te ha dado -reían los funcionarios, volviendo del entierro en compañía de Zapoikin- de enterrar a un vivo?
-¡Esto no está bien, joven! -gruñía Procofii Osipich-. ¡Su discurso puede ser apropiado para un difunto, pero aplicado a un vivo es una burla! ¿Qué no me ha llamado usted?... Desinteresado..., incapaz de sobornar... ¡Tales cosas, refiriéndose a un vivo, sólo pueden decirse en son de burla! ¡Nadie le ha pedido tampoco, caballero, que hablara sobre mi cara!... Si soy feo y deforme..., ¡qué le vamos a hacer! ¿Para qué decir mi apellido delante de todo el mundo? ¡Esto es una ofensa!
FIN
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quarta-feira, 14 de julho de 2010
terça-feira, 13 de julho de 2010
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Poema Óbvio
Não sou idêntica a mim mesma
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista
não sou divina, não tenho causa
não tenho razão de ser nem finalidade própria
sou a própria lógica circundante.
Ana Cristina César
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista
não sou divina, não tenho causa
não tenho razão de ser nem finalidade própria
sou a própria lógica circundante.
Ana Cristina César
sábado, 10 de julho de 2010
sexta-feira, 9 de julho de 2010
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Lábios de Cetim.
Devagar rever meu ser vi
nascer um afã nas palavras
discretas cobertas de memórias
escondidas nas lidas da
timidez acordar o mundo
de um estranho cortês
degustar a pele e a fera
escorrer os dedos nas maças
entre os lábios ancora a flor
insiste o beijo de cetim e
acalma o ar que em chamas
se derreteu aquece o sangue e
a sede de ficar nasci pra ser
seu sim e você meu ar
respirar o seu calor e
transpirar murmúrios
musicar os seus cabelos
contornar seu corpo nu nos
carinhos que o desejo
conduz desenhar os traços
de um perfil de pele de
veludo e o quarto guarda as
faces de semblantes que
clareiam luz.
Beijos de lábios de cetim.
Glaucia Nasser
Fonte: blog leituras favre
nascer um afã nas palavras
discretas cobertas de memórias
escondidas nas lidas da
timidez acordar o mundo
de um estranho cortês
degustar a pele e a fera
escorrer os dedos nas maças
entre os lábios ancora a flor
insiste o beijo de cetim e
acalma o ar que em chamas
se derreteu aquece o sangue e
a sede de ficar nasci pra ser
seu sim e você meu ar
respirar o seu calor e
transpirar murmúrios
musicar os seus cabelos
contornar seu corpo nu nos
carinhos que o desejo
conduz desenhar os traços
de um perfil de pele de
veludo e o quarto guarda as
faces de semblantes que
clareiam luz.
Beijos de lábios de cetim.
Glaucia Nasser
Fonte: blog leituras favre
Ledo Engano
Ledo engano
ler a mão
Pois ela é minha
e não sua
nem no inverno
nem no verão
Melhor leria
Interpretando o coração
que bate, bate
e só apanha
bombeia e não reclama
e quando cheio, avisa:
agora é tarde!
Deisi Perin
ler a mão
Pois ela é minha
e não sua
nem no inverno
nem no verão
Melhor leria
Interpretando o coração
que bate, bate
e só apanha
bombeia e não reclama
e quando cheio, avisa:
agora é tarde!
Deisi Perin
terça-feira, 6 de julho de 2010
Dans l’air
Tínhamos a mesma idade
Quando vimos o mar
Este mistério de impaciência
Tínhamos a mesma impaciência
– Rimbaud e eu –
Por isto
Pisamos telhados
Ao invés do chão
Por isto
Machucamos nossos amores
Com nossas próprias mãos
Por isto
As velas acabam na madrugada
Antes que o poema acabe
- Por isto, tão pouca a vida para tanta voracidade
Bárbara Lia
Fonte: Cronópios
Quando vimos o mar
Este mistério de impaciência
Tínhamos a mesma impaciência
– Rimbaud e eu –
Por isto
Pisamos telhados
Ao invés do chão
Por isto
Machucamos nossos amores
Com nossas próprias mãos
Por isto
As velas acabam na madrugada
Antes que o poema acabe
- Por isto, tão pouca a vida para tanta voracidade
Bárbara Lia
Fonte: Cronópios
Mar/absinto
Nossos olhos de dezoito anos
acomodaram o mar
Sobrou a maré em torno
um sussurro de conchas
a nos acordar nas noites brancas
Nossos olhos de dezoito anos
beberem do mar/absinto
como ao vinho santo.
Nossos olhos embriagados.
Nossos olhos negros e azulados.
Uma sereia recolhendo a rede
os corações de dois poetas ali
enredados
Nossos olhos de dezoito anos.
Nossas almas milenares.
Nossos amores fracos à soleira da incerteza.
Tanta beleza em ti, Rimbaud!
Tanta ausência em mim!
E nas marquises
bêbados ainda caminham
buscando o sol
que você guardou prá mim
Bárbara Lia
Fonte: Cronópios
acomodaram o mar
Sobrou a maré em torno
um sussurro de conchas
a nos acordar nas noites brancas
Nossos olhos de dezoito anos
beberem do mar/absinto
como ao vinho santo.
Nossos olhos embriagados.
Nossos olhos negros e azulados.
Uma sereia recolhendo a rede
os corações de dois poetas ali
enredados
Nossos olhos de dezoito anos.
Nossas almas milenares.
Nossos amores fracos à soleira da incerteza.
Tanta beleza em ti, Rimbaud!
Tanta ausência em mim!
E nas marquises
bêbados ainda caminham
buscando o sol
que você guardou prá mim
Bárbara Lia
Fonte: Cronópios
segunda-feira, 5 de julho de 2010
O rasurado azul de Paris – poemas para Arthur Rimbaud
Flor escandalosa
Meu pai sonhava o deserto
E viveu ao lado do amor
Rimbaud sonhava as areias
Também reinventar o amor
Rimbaud viveu no deserto
Meu pai morreu de amor
Meu pai surfava o mar de estrelas
Com um teodolito da cor da destemperança
- verde oliva que tende ao amarelo –
Quando eu dormia ele soprava
Sementes de poesia
Por cima das minhas cobertas
Rimbaud passava noites inteiras
Regando com um regador de nuvens
Minha alma de fogo e a semente
Nasceu esta flor escandalosa
Misto de estrela e rosa
Da cor dos olhos do amor
E do deserto sonhado
Por meu pai e Rimbaud
Meu pai viveu em poesia
Nunca escreveu um verso
Rimbaud desistiu bem cedo
Meu pai sabia; sabia Rimbaud
O vento que atravessa a cortina
Traz a voz de ambos, mixada:
Ilumine o verbo!
Incendeie a alma!
Faça de corações desertos
Cactos em flor
Sangue em ebulição
*
quando ele corria
pelos telhados de ardósia
as pombas arrulhavam
em ventania
seu casaco – vela sacudida
estremecia
a maré da monotonia
Bárbara Lia
Fonte – Cronópios
Bárbara Lia é poeta e escritora. Vive em Curitiba. Livros publicados: O sorriso de Leonardo (Kafka ed. – 2.004), Noir (ed. do autor – 2.006), O sal das rosas (Lumme editor – 2.007), A última chuva (ME – ed. alternativas – MG – 2.007). No prelo, lançamento para agosto, o romance Solidão Calcinada (Secretaria da Cultura / Imprensa Oficial do Paraná, romance finalista do Prêmio Nacional do Sesc 2.005 – Site http://www.chaparaasborboletas.blogspot./
E-mail: barbaralia@gmail.com
Meu pai sonhava o deserto
E viveu ao lado do amor
Rimbaud sonhava as areias
Também reinventar o amor
Rimbaud viveu no deserto
Meu pai morreu de amor
Meu pai surfava o mar de estrelas
Com um teodolito da cor da destemperança
- verde oliva que tende ao amarelo –
Quando eu dormia ele soprava
Sementes de poesia
Por cima das minhas cobertas
Rimbaud passava noites inteiras
Regando com um regador de nuvens
Minha alma de fogo e a semente
Nasceu esta flor escandalosa
Misto de estrela e rosa
Da cor dos olhos do amor
E do deserto sonhado
Por meu pai e Rimbaud
Meu pai viveu em poesia
Nunca escreveu um verso
Rimbaud desistiu bem cedo
Meu pai sabia; sabia Rimbaud
O vento que atravessa a cortina
Traz a voz de ambos, mixada:
Ilumine o verbo!
Incendeie a alma!
Faça de corações desertos
Cactos em flor
Sangue em ebulição
*
quando ele corria
pelos telhados de ardósia
as pombas arrulhavam
em ventania
seu casaco – vela sacudida
estremecia
a maré da monotonia
Bárbara Lia
Fonte – Cronópios
Bárbara Lia é poeta e escritora. Vive em Curitiba. Livros publicados: O sorriso de Leonardo (Kafka ed. – 2.004), Noir (ed. do autor – 2.006), O sal das rosas (Lumme editor – 2.007), A última chuva (ME – ed. alternativas – MG – 2.007). No prelo, lançamento para agosto, o romance Solidão Calcinada (Secretaria da Cultura / Imprensa Oficial do Paraná, romance finalista do Prêmio Nacional do Sesc 2.005 – Site http://www.chaparaasborboletas.blogspot./
E-mail: barbaralia@gmail.com
sábado, 3 de julho de 2010
O Acossado entre a razão e a paixão
A primeira pergunta que um leitor de Philip Roth faz a si mesmo diante de um livro do escritor norte-americano esbarra em sua genealogia: por que razão um escritor judeu criaria um alter ego para criticar o judaísmo e ao mesmo tempo afirmar sua identidade? Parece um contrassenso, mas é justamente esse conflito interno que torna sua obra enigmática: Roth foge de tudo o que lhe atrai, da grande cidade à tradição religiosa. Saiu da cosmopolita Nova York para se refugiar em Connecticut, na Nova Inglaterra, região que tem tantas árvores como companhias de seguros. Finalmente, transferiu para o papel fantasias sexuais interditas por uma cultura que valoriza a solidariedade mas vê com desconfiança a liberdade individual – tema, aliás, desenvolvido em seu ensaio Writing About Jews (1963), que explora temas já presentes no marco zero de sua carreira literária, Adeus, Columbus (1959).
Nesse livro de estreia, uma coletânea de cinco historietas curtas, A Conversão dos Judeus aparece como uma carta literária de intenções. É um texto seminal que sintetiza a postura filosófica do escritor, empenhado em pular no abismo para descobrir seu mistério. Roth foi buscar num antigo poema metafísico do inglês Andrew Marvell (1621-1678) a inspiração para sua noveleta, que se passa nos anos 1950, década em que parte da comunidade judaica europeia sobrevivente do nazismo se fixou nos EUA.
Marvell, poeta e parlamentar do século 17, lutou pelos direitos individuais dos cidadãos ingleses – em benefício próprio, uma vez que a Inglaterra punia e continuou punindo a homossexualidade como crime até 1961. Seja como for, esse espírito libertário de Marvell o fez nadar contra a corrente. Numa época em que seu país punia com a morte o republicanismo, ele flertou com os revolucionários e o catolicismo, referindo-se, indiretamente, à conversão do judeus antes do Juízo Final no poema To His Coy Mistress – embora seu verdadeiro tema seja o incontrolável desejo sexual, o que justifica a atração de Roth pelas stanzas da obra poética de Marvell. Jovem nos anos 1950, Roth testemunhou o esforço dos judeus europeus para assimilar valores da cultura americana sem perder a identidade – ou a virgindade.
Assim, seu primeiro alter ego não foi Zuckerman, como defendem os críticos, mas o adolescente Ozzie Freedman do conto, que ousa contestar um rabino e conclamar à conversão os judeus que frequentam sua sinagoga. De certo modo, é o que tem feito Roth em seus livros, não exatamente por fatores religiosos, mas pelo motivo que descobriu no poema de Marvell: se o sagrado não se encontra aqui, na união dos corpos que se amam, então não está em lugar nenhum. O pouco tempo que os seres humanos passam na Terra deve ser, portanto, melhor aproveitado, defende o secular Roth, para escândalo de uma cultura religiosa que, já desenraizada nos anos 1950 e “contaminada” pelo liberalismo americano, se desintegra nas páginas de seus livros a ponto de o próprio autor se confundir com seus personagens e acabar consumido por eles num banquete autofágico. Foi o que aconteceu com Nathan Zuckerman, protagonista de vários trabalhos de Roth, que viveu entre 1974 (My Life as a Man) e 2007, ano de publicação de Fantasma Sai de Cena, que supostamente deveria marcar sua última aparição.
Há razões para desconfiar que Zuckerman não se trata tanto de um alter ego como de um alter cérebro, como defende o próprio Roth. Seus livros, embora não desprezem referências autobiográficas – Casei com um Comunista é uma clara resposta às memórias de sua ex-mulher atriz, Claire Bloom -, seguem mais o modelo confessional agostiniano do que propriamente o memorialístico de Henry Miller, considerando que usa personagens fictícios (o aspirante a escritor Nathan Zuckerman, por exemplo) como instrumentos de investigação do trauma pós-moderno, essa estranha mania de falar de si mesmo recorrendo a artifícios literários e falsas biografias. Se isso lembra masturbação, é lícito evocar que o primeiro sucesso de Roth foi O Complexo de Portnoy (1969), cujo protagonista, um jovem advogado, encontra no onanismo o alívio para a opressão materna. Portnoy, é bom lembrar, descobre-se impotente quando se separa da mulher ignorante e viaja para a pátria-mãe, Israel.
Desgarrado, Roth conclui que a falta de vínculos – afetivos, em especial – pode levar ao desejo de morte, por vezes associada ao sexo solitário, que abjura a geração. Em A Humilhação (2009), outro títere criado por Roth para o representar, Simon Axler, um veterano ator de teatro, interna-se numa clínica para escapar da ideia fixa do suicídio e de uma crise sexual. Antes, em Indignação (2008), ele troca a mãe superprotetora de Portnoy pela figura do pai açougueiro onipresente de Marcus Messner, um jovem nascido e criado em Newark, como Roth, que, para escapar, se refugia nos estudos antes de sucumbir ao jogo amoroso com uma colega de classe. Não são os melhores livros de Roth – e com certeza não é possível comparar A Humilhação com a obra-prima que é O Avesso da Vida (1986), até hoje a mais sofisticada construção literária de um autor que colecionou grandes títulos – dos quais ainda cabe destacar, entre tantos outros, Pastoral Americana (1997), e Homem Comum (2006).
O pessimismo de Roth parece intraduzível para outras mídias. Tanto que ele detestou a versão cinematográfica de O Animal Agonizante, aqui chamada de Fatal, com roteiro de Nicholas Meyer , também autor da adaptação de A Marca Humana, igualmente de Roth, lançado no Brasil como Revelações. Em Fatal, Ben Kingsley interpreta o egoísta acadêmico David Kepesh, que usa sexualmente uma aluna (Penélope Cruz) e fica dividido entre a razão e a paixão, o mesmo conflito que parece acuar Roth
Fonte : O Estado de São Paulo. 03/07 / 2010
Nesse livro de estreia, uma coletânea de cinco historietas curtas, A Conversão dos Judeus aparece como uma carta literária de intenções. É um texto seminal que sintetiza a postura filosófica do escritor, empenhado em pular no abismo para descobrir seu mistério. Roth foi buscar num antigo poema metafísico do inglês Andrew Marvell (1621-1678) a inspiração para sua noveleta, que se passa nos anos 1950, década em que parte da comunidade judaica europeia sobrevivente do nazismo se fixou nos EUA.
Marvell, poeta e parlamentar do século 17, lutou pelos direitos individuais dos cidadãos ingleses – em benefício próprio, uma vez que a Inglaterra punia e continuou punindo a homossexualidade como crime até 1961. Seja como for, esse espírito libertário de Marvell o fez nadar contra a corrente. Numa época em que seu país punia com a morte o republicanismo, ele flertou com os revolucionários e o catolicismo, referindo-se, indiretamente, à conversão do judeus antes do Juízo Final no poema To His Coy Mistress – embora seu verdadeiro tema seja o incontrolável desejo sexual, o que justifica a atração de Roth pelas stanzas da obra poética de Marvell. Jovem nos anos 1950, Roth testemunhou o esforço dos judeus europeus para assimilar valores da cultura americana sem perder a identidade – ou a virgindade.
Assim, seu primeiro alter ego não foi Zuckerman, como defendem os críticos, mas o adolescente Ozzie Freedman do conto, que ousa contestar um rabino e conclamar à conversão os judeus que frequentam sua sinagoga. De certo modo, é o que tem feito Roth em seus livros, não exatamente por fatores religiosos, mas pelo motivo que descobriu no poema de Marvell: se o sagrado não se encontra aqui, na união dos corpos que se amam, então não está em lugar nenhum. O pouco tempo que os seres humanos passam na Terra deve ser, portanto, melhor aproveitado, defende o secular Roth, para escândalo de uma cultura religiosa que, já desenraizada nos anos 1950 e “contaminada” pelo liberalismo americano, se desintegra nas páginas de seus livros a ponto de o próprio autor se confundir com seus personagens e acabar consumido por eles num banquete autofágico. Foi o que aconteceu com Nathan Zuckerman, protagonista de vários trabalhos de Roth, que viveu entre 1974 (My Life as a Man) e 2007, ano de publicação de Fantasma Sai de Cena, que supostamente deveria marcar sua última aparição.
Há razões para desconfiar que Zuckerman não se trata tanto de um alter ego como de um alter cérebro, como defende o próprio Roth. Seus livros, embora não desprezem referências autobiográficas – Casei com um Comunista é uma clara resposta às memórias de sua ex-mulher atriz, Claire Bloom -, seguem mais o modelo confessional agostiniano do que propriamente o memorialístico de Henry Miller, considerando que usa personagens fictícios (o aspirante a escritor Nathan Zuckerman, por exemplo) como instrumentos de investigação do trauma pós-moderno, essa estranha mania de falar de si mesmo recorrendo a artifícios literários e falsas biografias. Se isso lembra masturbação, é lícito evocar que o primeiro sucesso de Roth foi O Complexo de Portnoy (1969), cujo protagonista, um jovem advogado, encontra no onanismo o alívio para a opressão materna. Portnoy, é bom lembrar, descobre-se impotente quando se separa da mulher ignorante e viaja para a pátria-mãe, Israel.
Desgarrado, Roth conclui que a falta de vínculos – afetivos, em especial – pode levar ao desejo de morte, por vezes associada ao sexo solitário, que abjura a geração. Em A Humilhação (2009), outro títere criado por Roth para o representar, Simon Axler, um veterano ator de teatro, interna-se numa clínica para escapar da ideia fixa do suicídio e de uma crise sexual. Antes, em Indignação (2008), ele troca a mãe superprotetora de Portnoy pela figura do pai açougueiro onipresente de Marcus Messner, um jovem nascido e criado em Newark, como Roth, que, para escapar, se refugia nos estudos antes de sucumbir ao jogo amoroso com uma colega de classe. Não são os melhores livros de Roth – e com certeza não é possível comparar A Humilhação com a obra-prima que é O Avesso da Vida (1986), até hoje a mais sofisticada construção literária de um autor que colecionou grandes títulos – dos quais ainda cabe destacar, entre tantos outros, Pastoral Americana (1997), e Homem Comum (2006).
O pessimismo de Roth parece intraduzível para outras mídias. Tanto que ele detestou a versão cinematográfica de O Animal Agonizante, aqui chamada de Fatal, com roteiro de Nicholas Meyer , também autor da adaptação de A Marca Humana, igualmente de Roth, lançado no Brasil como Revelações. Em Fatal, Ben Kingsley interpreta o egoísta acadêmico David Kepesh, que usa sexualmente uma aluna (Penélope Cruz) e fica dividido entre a razão e a paixão, o mesmo conflito que parece acuar Roth
Fonte : O Estado de São Paulo. 03/07 / 2010
Philip Roth fala de seu novo romance 'Nemesis'
Lucia Guimarães – O Estado de São Paulo
Em entrevista exclusiva, escritor fala de Obama, da presença da morte em sua obra, do Nobel
CONNECTICUT – O serviço de meteorologia previa pancadas de chuva para o noroeste do Estado de Connecticut. Enquanto eu dirigia pelas estradinhas sinuosas, o cinegrafista Sean Conaboy, um irlandês-americano cuja teimosia haveria de ser um grande trunfo naquela tarde, ia resmungando no assento ao meu lado. Discordava das instruções que imprimi para chegar até o esconderijo do lendário casmurro das letras americanas.
A ameaça de chuva oferecia um problema logístico considerável para a entrevista com Philip Roth que, dependendo do pronunciamento crítico, é o maior autor da língua inglesa ou o maior romancista vivo. Nenhum dos dois epítetos justificaria a presença do terceiro ocupante do carro, Franklin, um pastor Corgi cujo dono estava fora do país, de férias. Não é sempre que você recebe um e-mail sucinto de uma amiga: seu cachorro vai visitar Philip Roth em Connecticut porque não encontro quem tome conta dele. Podemos deduzir facilmente que o autor de O Animal Agonizante não recebe equipes de correspondentes acompanhada de animais de estimação.
No breve A Humilhação (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto, 104 páginas, R$ 32), lançado recentemente no Brasil, um ator que “perdera sua magia” tenta curar a impotência dramática com o rejuvenescimento sexual. O protagonista Simon Axler acolhe a filha lésbica de um casal de atores amigos. Pegeen chega com uma sacola de artefatos. Numa cena de sexo que Roth me garante não ser fruto de nenhuma forma de pesquisa de campo (”Eu tenho alguma imaginação…”), a mulher temporariamente heterossexual manuseia seus instrumentos e o amante mais velho sabe que, naquele palco, a sua performance está com os dias contados.
A Humilhação é o terceiro volume de um quarteto de romances que “não foram reunidos ainda, a não ser na minha cabeça”, explica Roth. O livro volta ao tema da decrepitude masculina que tem afligido o criador de personagens recorrentes como Nathan Zuckerman e David Kapesh.
As provas do romance final do quarteto, Nemesis, me caíram nas mãos por acaso, pouco antes de chegar a resposta ao pedido de uma visita à antiga casa de fazenda da Nova Inglaterra, que desde 1972 é o refúgio onde Roth trabalha diariamente, num confortável escritório com lareira, separado da casa principal por um gramado. Nemesis vai ser publicado nos Estados Unidos em outubro. A história se passa durante uma epidemia de pólio em 1944, na Newark natal de Roth, a cidade que poderia substituir Manchester no famoso comentário de Mark Twain: “Eu gostaria de morar em Manchester, na Inglaterra. A transição entre Manchester e a morte não seria notada.”
Mas Roth, aos 77 anos, não tem feito outra coisa senão notar a transição que nos espera. A pólio que mata crianças e separa amantes em Nemesis, foi, em sua infância, a maior ameaça à existência, depois da 2.ª Guerra. Há um tom elegíaco no romance, um Roth mais evocativo e apegado às memórias distantes, que “continuam claras e intensas”.
Philip Roth confia no próprio faro meteorológico. Quando digo que deixei as janelas do carro abertas, sem revelar o motivo, ele me corta, “pode deixar, não deve chover até a noite”.
Nesta entrevista ao Estado, ele manifestou melancolia e bom humor, com uma candura surpreendente para quem costuma controlar sua interação com a imprensa. Quando perguntei sobre a injustiça de não ter recebido ainda o Prêmio Nobel de Literatura, o grande autor americano me convocou para o jardim, me mandou olhar a natureza em volta e devolveu a pergunta: você acha que ainda preciso de um Nobel?
Tendo sobrevivido a um segundo encontro com o homem que se recusa a sorrir para fotos mas nos deixou ligar a câmera de vídeo para registrar uma gargalhada ocasional, concluí que estava segura. Abri a porta do carro e murmurei algo para o paciente Franklin. Nosso anfitrião, apanhado de surpresa diante da criatura de olhos igualmente arregalados e orelhas muito maiores do que as suas, exclamou: “Puppy!” (filhote de cachorro). O lendário ator W.C Fields alertava para o risco de contracenar com animais e crianças. A criatura peluda que começou a pular em torno do entrevistado arrancou dele o que nenhum entrevistador conseguiu até hoje. Um flagrante de ternura genuína e não calculada. Que foi imediatamente corrigida por um firme aperto de mão de adeus, enquanto as nuvens obedeciam ao romancista e começavam a despejar o aguaceiro sobre nós.
O senhor não anda matando muitos personagens nos últimos livros?
Será? Me conte.
Além do ator em A Humilhação, há o Marcus Messner, em Indignação; Nathan Zuckerman enfartou – mas sobreviveu…
Zuckerman ainda vai morrer. E há a mulher em Homem Comum que também se mata.
Devemos apreender algo disso?
Suponho que sim. Nos últimos anos, tenho me encontrado cercado pela morte de amigos. E, antes disso, meus pais morreram. Mas, nos últimos cinco anos, morreram meus amigos e meu irmão. Então é muita morte. Você começa a passar mais tempo em cemitérios. Passa algum tempo escrevendo tributos e falando nos funerais. E trata com os sobreviventes dos mortos. Volta para casa e se lembra dos mortos. Então, a morte entrou na minha vida com mais força do que em qualquer outro momento. Acho que, nesse período, perdi seis dos meus amigos mais próximos, a maioria 5 ou 10 anos mais velhos do que eu. A minha reação à morte dessas pessoas não foi de raiva. Não. Foi de tristeza e de incredulidade diante do fato de que partiram. Eu sentia, sim, raiva quando era adolescente, com 12, 13 anos, quando primeiro descobri a morte. Mas talvez tenha sido mais medo do que raiva. A ideia da morte me assustava muito.
“Ele perdera a magia.” O senhor já disse que começou A Humilhação a partir daí. Por que o romance decola com a frase?
É uma boa frase de abertura. Eu gosto de declarar o que está em jogo logo no começo de um livro. Então, “Ele perdera a magia” é uma grande declaração. E se torna necessário, ao longo do livro, justificar a declaração.
O suicídio do personagem Simon Axler é uma declaração moral?
Minha? Qual seria?
Ele se mata porque é o que lhe restou?
Eu diria que o componente emocional é mais forte.
O senhor acredita na intimidade profunda entre um homem e uma mulher? Não falo de intimidade sexual.
Sim, com certeza.
Os personagens Simon e Pegeen, em A Humilhação, podem ser lidos como duas pessoas constantemente batendo num obstáculo?
Não ficamos sabendo por que ela vai embora. Pode ser porque já estava cheia dele, ou porque a experiência de ser heterossexual se esgotou, ou porque a diferença de idade é grande demais. Ela pode ter ido embora porque seus pais não gostam do relacionamento, há muitas razões potenciais. Mas, sim, eles têm intimidade real, antes de se separarem.
Sei que o senhor pesquisa bastante as tramas e, quando conversamos no ano passado, mencionou que tinha ouvido uma história sobre um ator que não consegue mais atuar.
Sim, ouvi mesmo.
É verdade que Al Pacino comprou os direitos de A Humilhação para viver Simon Axler no cinema?
Sim.
E o que acha disso?
Ele é um ator esplêndido, esplêndido, não é? Maravilhoso. E o que quer que faça é distinto, imaginativo e você quer assistir.
Quem vai escrever o roteiro?
Alguém vai escrever. Acho que ele contratou um roteirista.
O mesmo roteirista escreveu duas adaptações recentes de romances seus, A Marca Humana e O Animal Agonizante.
Ele é horrível! Não fui eu quem sugeriu. A produtora de cinema o contratou.
Não ficou feliz com a adaptação dos dois?
O roteirista é horrível. Arruinou tudo. Nicholas Mayer, é o nome dele? O roteiro dele para A Marca Humana foi um desastre.
Perdão por concordar.
Não, eu sei muito bem. E depois ele escreveu o roteiro para O Animal Agonizante, com o título de Fatal e foi um desastre também. Mas agora a produtora é do Al Pacino.
O senhor não tentou influenciar a escolha de roteiristas antes?
Não conheço nenhum roteirista. Assisto a alguns filmes que aprecio e suponho que devia ter prestado atenção nos nomes dos roteiristas. Mas não entendo nada disso.
Seu próximo romance, Nemesis, que será publicado em outubro, completaria um ciclo de quatro unidos por um tema?
Eles não foram reunidos ainda, a não ser na minha cabeça. Mas pensei em Nemesis como a conclusão de um ciclo de romances curtos. E os chamo de nêmeses, no plural. Eles começam com Homem Comum, em que a nêmese é a doença e a morte – mortalidade. Em Indignação, a nêmese é a indignação e a guerra. No terceiro, A Humilhação, a nêmese é a circunstância fora de controle que aflige o protagonista. E no romance final é a epidemia de pólio em 1944.
Precisa de silêncio para escrever?
Sim. Silêncio absoluto. Quando eu morava em Nova York era um problema, eu me mudava com frequência. Porque havia alguém com o aparelho hi-fi muito alto. Ou um sujeito batendo na mulher toda noite.
O senhor chegou aqui nos anos 70. Por que escolheu este lugar?
Eu me mudei para cá na primavera de 1972. Tinha amigos a meia hora daqui. O Bill, William Styron, e sua mulher moravam próximos. Num verão dos anos 60 eu fiquei hospedado no estúdio do Bill, enquanto eles estavam em Martha’s Vineyard. Passei o verão sozinho, andei de carro por aqui e gostei muito. E, quando comecei a procurar um lugar no campo, eles me ajudaram a encontrar esta casa e eu comprei rapidamente. Chegou até aqui pelo vilarejo?
Sim.
Não é nem uma cidade, é um quarto de cidade. Não tem correio. Meu endereço postal tem que ser na outra cidade, que tem um armazém, uma loja de ferragens e um banco. Aqui não tem nada. Mas vi que abriram um pequeno hotel, com um nome de Galo alguma coisa. E parece que servem jantar lá…
Não dá para sair e comer fora por aqui.
Só se dirigir muito.
O senhor apoiou o Barack Obama e votou nele. Teria imaginado, diante do otimismo que levou Obama ao poder, que o país estaria logo tão dividido, que haveria um movimento de direita como o Tea Party?
Não teria imaginado mas, agora que aconteceu, acho fácil acreditar na realidade.
Por quê?
Quando o Franklin Roosevelt chegou ao poder, em 1933, para fazer mudanças expressivas no governo, com o país mergulhado na Grande Depressão, a oposição a ele era feroz. Ele ganhou a eleição como o Obama mas a oposição foi imediata e feroz, não menos do que Obama enfrenta hoje. Quando você tem um poderoso novo líder, ele mobiliza a oposição. A oposição não havia desaparecido. Mas Obama conseguiu passar o seguro saúde – foi um começo. E o que ele poderia ter feito sobre o desastre do Golfo do Mexico? Quanto mais descobrimos sobre a BP, mais irresponsáveis eles parecem.
A mídia americana não critica Obama por confiar na força de sua retórica, do discurso eloquente e, em seguida, o critica por não expressar indignação o bastante?
Eu não compreendo este papo da indignação, o importante é oferecer soluções práticas e não tratar de emoções. Ele está sob uma pressão tremenda, sendo muito criticado e a direita está fazendo tudo o que pode para enfraquecer Obama.
O senhor vai muito a Newark, sua cidade natal?
No ano passado, em outubro, fiz uma visita divertida a Newark. É difícil se divertir com Newark. É um lugar devastador. Você deve conhecer o bairro português lá. É a melhor área, no distrito Ironbound, na minha infância era uma favela industrial. Eu me juntei a um tour de ônibus que se chama “A Newark de Philip Roth”. Há uma mulher do Comitê de Monumentos e Preservação da cidade que lidera o tour algumas vezes por ano.
Os turistas levaram o maior susto ao vê-lo?
Eles ficaram meio atônitos, sim. Peguei o ônibus e havia uma turma da minha escola secundária, 10 anos mais novos do que eu, celebrando um aniversário de formatura. Parte da celebração era fazer o tour. E o ônibus foi passando por todos estes lugares que aparecem nos meus livros. Nós paramos na frente de um hotel decadente que, na minha época, era o chique Hotel Riviera. Riviera, imagine. Foi onde minha mãe e meu pai passaram a primeira noite do casamento. Se meus pais fossem vivos estariam morrendo de rir. Tenho certeza de que sua primeira noite não foi nada incrível. (Risos) Tenho certeza de que foi uma noite meio quieta. Eu me diverti, desfrutei daquele dia. Passamos por uns 10 ou 12 lugares e acabamos na casa onde passei a infância, na Avenida Summit. Agora há uma placa lá registrando o tombamento da casa.
Quem vive lá?
Uma moça negra que hoje é minha amiga, Roberta Harrington. Um amor, Mrs. Harrington. Agora que puseram a placa, ela quer que a prefeitura tome providências sobre o gramado. Escrevi para o antigo prefeito pedindo ajuda. Na rua, há a Praça Philip Roth.
O senhor deu aula de escrita criativa em Iowa, mas depois criticou esses cursos como “o equivalente a estudar rabiscos”.
(Risos) Eu disse isso? Eu dei aula em Iowa de 1960 a 1962.
Foi compensador?
Sim, eu era casado na época, precisava me sustentar e ganhava US$ 5.500 por ano. E já não era muito dinheiro em 1960. Sempre não foi muito dinheiro.
Ainda acredita que seja bobagem ensinar escrita criativa?
Sim. Ensinam isso no Brasil?
Contraímos tudo o que vocês transmitem.
Acho que é uma grande perda de tempo.
Tenho uma confissão a fazer. Este livro encapado no meu colo é Nemesis. Consegui as provas do seu próximo romance com um conhecido seu.
Que bom.
Estou sob o impacto da leitura, acabei durante a noite. Uma beleza.
É mesmo? Agora pode desencapar o livro.
Este romance, bem diferente dos três livros anteriores, é mais evocativo.
Sim, é verdade. De certa forma, ele volta à Conspiração Contra a América. Ali, a comunidade estava ameaçada pelo fascismo, ou o que considerava fascismo. E aqui a comunidade está ameaçada pela pólio. Há ameaças nos três romances anteriores, mas aqui é especial. Quando comecei a escrever Nemesis, eu pensei, o que mais representava uma ameaça no tempo em que eu cresci? Nasci em 1933, em plena Grande Depressão, só que era jovem demais para ter uma experiência direta. A primeira experiência forte que tive foi a Segunda Guerra. Eu tinha 8 anos e era uma criança inteligente. A guerra me assustava e eu acompanhava tudo pelo rádio, jornais, ouvia meus pais e os amigos deles conversando. E perguntei, o que mais nos ameaçava? Lembrei que era a pólio. Era uma ameaça tão grande quanto a guerra. Os nossos pais viviam mais ainda a ameaça. Nós sabíamos que ela existia e saíamos para brincar. A realidade não era compreendida pelas crianças. Até um amigo contrair a doença. O que aconteceu com todo mundo, comigo também, um menino na minha rua contraiu pólio, quando eu tinha 11 anos. E nos forçou a enfrentar o fato de que a ameaça era real. A vacina apareceu em 1955, quando eu fazia mestrado em Chicago. Em dois anos, a doença desapareceu. Portanto, qualquer americano com menos de 50 anos não sabe o que é a pólio, só sabe o que é a vacina.
A pólio formou a sua percepção da mortalidade?
Não só isso, mas percebi que havia coisas sobre as quais não tinha controle. Coisas que chegavam e transformavam a gente num aleijado. Ou nos matavam. E não havia proteção, a doença poderia escolher arbitrariamente quem contaminar e destruir.
O senhor já está trabalhando no próximo romance?
Não.
Por que o senhor disse que preferia escrever um livro só até morrer?
Porque esta história de começar e completar e começar de novo é um inferno.
Não precisa se livrar de um romance depois de algum tempo?
Não, eu preferia ficar escrevendo continuamente e, quando eu morrer, eles publicam.
Não é bom entregar um romance para os leitores?
Mas o problema é que você tem que começar o próximo! E começar o novo livro é puro inferno.
O senhor já disse, com ironia, que o comitê do Prêmio Nobel de Literatura não o tem decepcionado, ano após ano. Há muitos que o consideram o grande injustiçado desta honraria. Alguma vez pensou no discurso que vai escrever se ganhar o Nobel?
Não. (Roth abre um sorriso maroto.) Vamos lá fora que eu lhe dou a resposta. (Paramos no meio do imenso gramado, cercados de árvores centenárias.) Aqui está. Olhe em volta. Eu preciso de um Nobel quando tenho isso tudo? Agora vamos continuar caminhando. Vamos buscar a correspondência na caixa do correio.
Fonte :O Estado de São Paulo
Em entrevista exclusiva, escritor fala de Obama, da presença da morte em sua obra, do Nobel
CONNECTICUT – O serviço de meteorologia previa pancadas de chuva para o noroeste do Estado de Connecticut. Enquanto eu dirigia pelas estradinhas sinuosas, o cinegrafista Sean Conaboy, um irlandês-americano cuja teimosia haveria de ser um grande trunfo naquela tarde, ia resmungando no assento ao meu lado. Discordava das instruções que imprimi para chegar até o esconderijo do lendário casmurro das letras americanas.
A ameaça de chuva oferecia um problema logístico considerável para a entrevista com Philip Roth que, dependendo do pronunciamento crítico, é o maior autor da língua inglesa ou o maior romancista vivo. Nenhum dos dois epítetos justificaria a presença do terceiro ocupante do carro, Franklin, um pastor Corgi cujo dono estava fora do país, de férias. Não é sempre que você recebe um e-mail sucinto de uma amiga: seu cachorro vai visitar Philip Roth em Connecticut porque não encontro quem tome conta dele. Podemos deduzir facilmente que o autor de O Animal Agonizante não recebe equipes de correspondentes acompanhada de animais de estimação.
No breve A Humilhação (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto, 104 páginas, R$ 32), lançado recentemente no Brasil, um ator que “perdera sua magia” tenta curar a impotência dramática com o rejuvenescimento sexual. O protagonista Simon Axler acolhe a filha lésbica de um casal de atores amigos. Pegeen chega com uma sacola de artefatos. Numa cena de sexo que Roth me garante não ser fruto de nenhuma forma de pesquisa de campo (”Eu tenho alguma imaginação…”), a mulher temporariamente heterossexual manuseia seus instrumentos e o amante mais velho sabe que, naquele palco, a sua performance está com os dias contados.
A Humilhação é o terceiro volume de um quarteto de romances que “não foram reunidos ainda, a não ser na minha cabeça”, explica Roth. O livro volta ao tema da decrepitude masculina que tem afligido o criador de personagens recorrentes como Nathan Zuckerman e David Kapesh.
As provas do romance final do quarteto, Nemesis, me caíram nas mãos por acaso, pouco antes de chegar a resposta ao pedido de uma visita à antiga casa de fazenda da Nova Inglaterra, que desde 1972 é o refúgio onde Roth trabalha diariamente, num confortável escritório com lareira, separado da casa principal por um gramado. Nemesis vai ser publicado nos Estados Unidos em outubro. A história se passa durante uma epidemia de pólio em 1944, na Newark natal de Roth, a cidade que poderia substituir Manchester no famoso comentário de Mark Twain: “Eu gostaria de morar em Manchester, na Inglaterra. A transição entre Manchester e a morte não seria notada.”
Mas Roth, aos 77 anos, não tem feito outra coisa senão notar a transição que nos espera. A pólio que mata crianças e separa amantes em Nemesis, foi, em sua infância, a maior ameaça à existência, depois da 2.ª Guerra. Há um tom elegíaco no romance, um Roth mais evocativo e apegado às memórias distantes, que “continuam claras e intensas”.
Philip Roth confia no próprio faro meteorológico. Quando digo que deixei as janelas do carro abertas, sem revelar o motivo, ele me corta, “pode deixar, não deve chover até a noite”.
Nesta entrevista ao Estado, ele manifestou melancolia e bom humor, com uma candura surpreendente para quem costuma controlar sua interação com a imprensa. Quando perguntei sobre a injustiça de não ter recebido ainda o Prêmio Nobel de Literatura, o grande autor americano me convocou para o jardim, me mandou olhar a natureza em volta e devolveu a pergunta: você acha que ainda preciso de um Nobel?
Tendo sobrevivido a um segundo encontro com o homem que se recusa a sorrir para fotos mas nos deixou ligar a câmera de vídeo para registrar uma gargalhada ocasional, concluí que estava segura. Abri a porta do carro e murmurei algo para o paciente Franklin. Nosso anfitrião, apanhado de surpresa diante da criatura de olhos igualmente arregalados e orelhas muito maiores do que as suas, exclamou: “Puppy!” (filhote de cachorro). O lendário ator W.C Fields alertava para o risco de contracenar com animais e crianças. A criatura peluda que começou a pular em torno do entrevistado arrancou dele o que nenhum entrevistador conseguiu até hoje. Um flagrante de ternura genuína e não calculada. Que foi imediatamente corrigida por um firme aperto de mão de adeus, enquanto as nuvens obedeciam ao romancista e começavam a despejar o aguaceiro sobre nós.
O senhor não anda matando muitos personagens nos últimos livros?
Será? Me conte.
Além do ator em A Humilhação, há o Marcus Messner, em Indignação; Nathan Zuckerman enfartou – mas sobreviveu…
Zuckerman ainda vai morrer. E há a mulher em Homem Comum que também se mata.
Devemos apreender algo disso?
Suponho que sim. Nos últimos anos, tenho me encontrado cercado pela morte de amigos. E, antes disso, meus pais morreram. Mas, nos últimos cinco anos, morreram meus amigos e meu irmão. Então é muita morte. Você começa a passar mais tempo em cemitérios. Passa algum tempo escrevendo tributos e falando nos funerais. E trata com os sobreviventes dos mortos. Volta para casa e se lembra dos mortos. Então, a morte entrou na minha vida com mais força do que em qualquer outro momento. Acho que, nesse período, perdi seis dos meus amigos mais próximos, a maioria 5 ou 10 anos mais velhos do que eu. A minha reação à morte dessas pessoas não foi de raiva. Não. Foi de tristeza e de incredulidade diante do fato de que partiram. Eu sentia, sim, raiva quando era adolescente, com 12, 13 anos, quando primeiro descobri a morte. Mas talvez tenha sido mais medo do que raiva. A ideia da morte me assustava muito.
“Ele perdera a magia.” O senhor já disse que começou A Humilhação a partir daí. Por que o romance decola com a frase?
É uma boa frase de abertura. Eu gosto de declarar o que está em jogo logo no começo de um livro. Então, “Ele perdera a magia” é uma grande declaração. E se torna necessário, ao longo do livro, justificar a declaração.
O suicídio do personagem Simon Axler é uma declaração moral?
Minha? Qual seria?
Ele se mata porque é o que lhe restou?
Eu diria que o componente emocional é mais forte.
O senhor acredita na intimidade profunda entre um homem e uma mulher? Não falo de intimidade sexual.
Sim, com certeza.
Os personagens Simon e Pegeen, em A Humilhação, podem ser lidos como duas pessoas constantemente batendo num obstáculo?
Não ficamos sabendo por que ela vai embora. Pode ser porque já estava cheia dele, ou porque a experiência de ser heterossexual se esgotou, ou porque a diferença de idade é grande demais. Ela pode ter ido embora porque seus pais não gostam do relacionamento, há muitas razões potenciais. Mas, sim, eles têm intimidade real, antes de se separarem.
Sei que o senhor pesquisa bastante as tramas e, quando conversamos no ano passado, mencionou que tinha ouvido uma história sobre um ator que não consegue mais atuar.
Sim, ouvi mesmo.
É verdade que Al Pacino comprou os direitos de A Humilhação para viver Simon Axler no cinema?
Sim.
E o que acha disso?
Ele é um ator esplêndido, esplêndido, não é? Maravilhoso. E o que quer que faça é distinto, imaginativo e você quer assistir.
Quem vai escrever o roteiro?
Alguém vai escrever. Acho que ele contratou um roteirista.
O mesmo roteirista escreveu duas adaptações recentes de romances seus, A Marca Humana e O Animal Agonizante.
Ele é horrível! Não fui eu quem sugeriu. A produtora de cinema o contratou.
Não ficou feliz com a adaptação dos dois?
O roteirista é horrível. Arruinou tudo. Nicholas Mayer, é o nome dele? O roteiro dele para A Marca Humana foi um desastre.
Perdão por concordar.
Não, eu sei muito bem. E depois ele escreveu o roteiro para O Animal Agonizante, com o título de Fatal e foi um desastre também. Mas agora a produtora é do Al Pacino.
O senhor não tentou influenciar a escolha de roteiristas antes?
Não conheço nenhum roteirista. Assisto a alguns filmes que aprecio e suponho que devia ter prestado atenção nos nomes dos roteiristas. Mas não entendo nada disso.
Seu próximo romance, Nemesis, que será publicado em outubro, completaria um ciclo de quatro unidos por um tema?
Eles não foram reunidos ainda, a não ser na minha cabeça. Mas pensei em Nemesis como a conclusão de um ciclo de romances curtos. E os chamo de nêmeses, no plural. Eles começam com Homem Comum, em que a nêmese é a doença e a morte – mortalidade. Em Indignação, a nêmese é a indignação e a guerra. No terceiro, A Humilhação, a nêmese é a circunstância fora de controle que aflige o protagonista. E no romance final é a epidemia de pólio em 1944.
Precisa de silêncio para escrever?
Sim. Silêncio absoluto. Quando eu morava em Nova York era um problema, eu me mudava com frequência. Porque havia alguém com o aparelho hi-fi muito alto. Ou um sujeito batendo na mulher toda noite.
O senhor chegou aqui nos anos 70. Por que escolheu este lugar?
Eu me mudei para cá na primavera de 1972. Tinha amigos a meia hora daqui. O Bill, William Styron, e sua mulher moravam próximos. Num verão dos anos 60 eu fiquei hospedado no estúdio do Bill, enquanto eles estavam em Martha’s Vineyard. Passei o verão sozinho, andei de carro por aqui e gostei muito. E, quando comecei a procurar um lugar no campo, eles me ajudaram a encontrar esta casa e eu comprei rapidamente. Chegou até aqui pelo vilarejo?
Sim.
Não é nem uma cidade, é um quarto de cidade. Não tem correio. Meu endereço postal tem que ser na outra cidade, que tem um armazém, uma loja de ferragens e um banco. Aqui não tem nada. Mas vi que abriram um pequeno hotel, com um nome de Galo alguma coisa. E parece que servem jantar lá…
Não dá para sair e comer fora por aqui.
Só se dirigir muito.
O senhor apoiou o Barack Obama e votou nele. Teria imaginado, diante do otimismo que levou Obama ao poder, que o país estaria logo tão dividido, que haveria um movimento de direita como o Tea Party?
Não teria imaginado mas, agora que aconteceu, acho fácil acreditar na realidade.
Por quê?
Quando o Franklin Roosevelt chegou ao poder, em 1933, para fazer mudanças expressivas no governo, com o país mergulhado na Grande Depressão, a oposição a ele era feroz. Ele ganhou a eleição como o Obama mas a oposição foi imediata e feroz, não menos do que Obama enfrenta hoje. Quando você tem um poderoso novo líder, ele mobiliza a oposição. A oposição não havia desaparecido. Mas Obama conseguiu passar o seguro saúde – foi um começo. E o que ele poderia ter feito sobre o desastre do Golfo do Mexico? Quanto mais descobrimos sobre a BP, mais irresponsáveis eles parecem.
A mídia americana não critica Obama por confiar na força de sua retórica, do discurso eloquente e, em seguida, o critica por não expressar indignação o bastante?
Eu não compreendo este papo da indignação, o importante é oferecer soluções práticas e não tratar de emoções. Ele está sob uma pressão tremenda, sendo muito criticado e a direita está fazendo tudo o que pode para enfraquecer Obama.
O senhor vai muito a Newark, sua cidade natal?
No ano passado, em outubro, fiz uma visita divertida a Newark. É difícil se divertir com Newark. É um lugar devastador. Você deve conhecer o bairro português lá. É a melhor área, no distrito Ironbound, na minha infância era uma favela industrial. Eu me juntei a um tour de ônibus que se chama “A Newark de Philip Roth”. Há uma mulher do Comitê de Monumentos e Preservação da cidade que lidera o tour algumas vezes por ano.
Os turistas levaram o maior susto ao vê-lo?
Eles ficaram meio atônitos, sim. Peguei o ônibus e havia uma turma da minha escola secundária, 10 anos mais novos do que eu, celebrando um aniversário de formatura. Parte da celebração era fazer o tour. E o ônibus foi passando por todos estes lugares que aparecem nos meus livros. Nós paramos na frente de um hotel decadente que, na minha época, era o chique Hotel Riviera. Riviera, imagine. Foi onde minha mãe e meu pai passaram a primeira noite do casamento. Se meus pais fossem vivos estariam morrendo de rir. Tenho certeza de que sua primeira noite não foi nada incrível. (Risos) Tenho certeza de que foi uma noite meio quieta. Eu me diverti, desfrutei daquele dia. Passamos por uns 10 ou 12 lugares e acabamos na casa onde passei a infância, na Avenida Summit. Agora há uma placa lá registrando o tombamento da casa.
Quem vive lá?
Uma moça negra que hoje é minha amiga, Roberta Harrington. Um amor, Mrs. Harrington. Agora que puseram a placa, ela quer que a prefeitura tome providências sobre o gramado. Escrevi para o antigo prefeito pedindo ajuda. Na rua, há a Praça Philip Roth.
O senhor deu aula de escrita criativa em Iowa, mas depois criticou esses cursos como “o equivalente a estudar rabiscos”.
(Risos) Eu disse isso? Eu dei aula em Iowa de 1960 a 1962.
Foi compensador?
Sim, eu era casado na época, precisava me sustentar e ganhava US$ 5.500 por ano. E já não era muito dinheiro em 1960. Sempre não foi muito dinheiro.
Ainda acredita que seja bobagem ensinar escrita criativa?
Sim. Ensinam isso no Brasil?
Contraímos tudo o que vocês transmitem.
Acho que é uma grande perda de tempo.
Tenho uma confissão a fazer. Este livro encapado no meu colo é Nemesis. Consegui as provas do seu próximo romance com um conhecido seu.
Que bom.
Estou sob o impacto da leitura, acabei durante a noite. Uma beleza.
É mesmo? Agora pode desencapar o livro.
Este romance, bem diferente dos três livros anteriores, é mais evocativo.
Sim, é verdade. De certa forma, ele volta à Conspiração Contra a América. Ali, a comunidade estava ameaçada pelo fascismo, ou o que considerava fascismo. E aqui a comunidade está ameaçada pela pólio. Há ameaças nos três romances anteriores, mas aqui é especial. Quando comecei a escrever Nemesis, eu pensei, o que mais representava uma ameaça no tempo em que eu cresci? Nasci em 1933, em plena Grande Depressão, só que era jovem demais para ter uma experiência direta. A primeira experiência forte que tive foi a Segunda Guerra. Eu tinha 8 anos e era uma criança inteligente. A guerra me assustava e eu acompanhava tudo pelo rádio, jornais, ouvia meus pais e os amigos deles conversando. E perguntei, o que mais nos ameaçava? Lembrei que era a pólio. Era uma ameaça tão grande quanto a guerra. Os nossos pais viviam mais ainda a ameaça. Nós sabíamos que ela existia e saíamos para brincar. A realidade não era compreendida pelas crianças. Até um amigo contrair a doença. O que aconteceu com todo mundo, comigo também, um menino na minha rua contraiu pólio, quando eu tinha 11 anos. E nos forçou a enfrentar o fato de que a ameaça era real. A vacina apareceu em 1955, quando eu fazia mestrado em Chicago. Em dois anos, a doença desapareceu. Portanto, qualquer americano com menos de 50 anos não sabe o que é a pólio, só sabe o que é a vacina.
A pólio formou a sua percepção da mortalidade?
Não só isso, mas percebi que havia coisas sobre as quais não tinha controle. Coisas que chegavam e transformavam a gente num aleijado. Ou nos matavam. E não havia proteção, a doença poderia escolher arbitrariamente quem contaminar e destruir.
O senhor já está trabalhando no próximo romance?
Não.
Por que o senhor disse que preferia escrever um livro só até morrer?
Porque esta história de começar e completar e começar de novo é um inferno.
Não precisa se livrar de um romance depois de algum tempo?
Não, eu preferia ficar escrevendo continuamente e, quando eu morrer, eles publicam.
Não é bom entregar um romance para os leitores?
Mas o problema é que você tem que começar o próximo! E começar o novo livro é puro inferno.
O senhor já disse, com ironia, que o comitê do Prêmio Nobel de Literatura não o tem decepcionado, ano após ano. Há muitos que o consideram o grande injustiçado desta honraria. Alguma vez pensou no discurso que vai escrever se ganhar o Nobel?
Não. (Roth abre um sorriso maroto.) Vamos lá fora que eu lhe dou a resposta. (Paramos no meio do imenso gramado, cercados de árvores centenárias.) Aqui está. Olhe em volta. Eu preciso de um Nobel quando tenho isso tudo? Agora vamos continuar caminhando. Vamos buscar a correspondência na caixa do correio.
Fonte :O Estado de São Paulo
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