sábado, 3 de julho de 2010

O Acossado entre a razão e a paixão

A primeira pergunta que um leitor de Philip Roth faz a si mesmo diante de um livro do escritor norte-americano esbarra em sua genealogia: por que razão um escritor judeu criaria um alter ego para criticar o judaísmo e ao mesmo tempo afirmar sua identidade? Parece um contrassenso, mas é justamente esse conflito interno que torna sua obra enigmática: Roth foge de tudo o que lhe atrai, da grande cidade à tradição religiosa. Saiu da cosmopolita Nova York para se refugiar em Connecticut, na Nova Inglaterra, região que tem tantas árvores como companhias de seguros. Finalmente, transferiu para o papel fantasias sexuais interditas por uma cultura que valoriza a solidariedade mas vê com desconfiança a liberdade individual – tema, aliás, desenvolvido em seu ensaio Writing About Jews (1963), que explora temas já presentes no marco zero de sua carreira literária, Adeus, Columbus (1959).




Nesse livro de estreia, uma coletânea de cinco historietas curtas, A Conversão dos Judeus aparece como uma carta literária de intenções. É um texto seminal que sintetiza a postura filosófica do escritor, empenhado em pular no abismo para descobrir seu mistério. Roth foi buscar num antigo poema metafísico do inglês Andrew Marvell (1621-1678) a inspiração para sua noveleta, que se passa nos anos 1950, década em que parte da comunidade judaica europeia sobrevivente do nazismo se fixou nos EUA.



Marvell, poeta e parlamentar do século 17, lutou pelos direitos individuais dos cidadãos ingleses – em benefício próprio, uma vez que a Inglaterra punia e continuou punindo a homossexualidade como crime até 1961. Seja como for, esse espírito libertário de Marvell o fez nadar contra a corrente. Numa época em que seu país punia com a morte o republicanismo, ele flertou com os revolucionários e o catolicismo, referindo-se, indiretamente, à conversão do judeus antes do Juízo Final no poema To His Coy Mistress – embora seu verdadeiro tema seja o incontrolável desejo sexual, o que justifica a atração de Roth pelas stanzas da obra poética de Marvell. Jovem nos anos 1950, Roth testemunhou o esforço dos judeus europeus para assimilar valores da cultura americana sem perder a identidade – ou a virgindade.



Assim, seu primeiro alter ego não foi Zuckerman, como defendem os críticos, mas o adolescente Ozzie Freedman do conto, que ousa contestar um rabino e conclamar à conversão os judeus que frequentam sua sinagoga. De certo modo, é o que tem feito Roth em seus livros, não exatamente por fatores religiosos, mas pelo motivo que descobriu no poema de Marvell: se o sagrado não se encontra aqui, na união dos corpos que se amam, então não está em lugar nenhum. O pouco tempo que os seres humanos passam na Terra deve ser, portanto, melhor aproveitado, defende o secular Roth, para escândalo de uma cultura religiosa que, já desenraizada nos anos 1950 e “contaminada” pelo liberalismo americano, se desintegra nas páginas de seus livros a ponto de o próprio autor se confundir com seus personagens e acabar consumido por eles num banquete autofágico. Foi o que aconteceu com Nathan Zuckerman, protagonista de vários trabalhos de Roth, que viveu entre 1974 (My Life as a Man) e 2007, ano de publicação de Fantasma Sai de Cena, que supostamente deveria marcar sua última aparição.



Há razões para desconfiar que Zuckerman não se trata tanto de um alter ego como de um alter cérebro, como defende o próprio Roth. Seus livros, embora não desprezem referências autobiográficas – Casei com um Comunista é uma clara resposta às memórias de sua ex-mulher atriz, Claire Bloom -, seguem mais o modelo confessional agostiniano do que propriamente o memorialístico de Henry Miller, considerando que usa personagens fictícios (o aspirante a escritor Nathan Zuckerman, por exemplo) como instrumentos de investigação do trauma pós-moderno, essa estranha mania de falar de si mesmo recorrendo a artifícios literários e falsas biografias. Se isso lembra masturbação, é lícito evocar que o primeiro sucesso de Roth foi O Complexo de Portnoy (1969), cujo protagonista, um jovem advogado, encontra no onanismo o alívio para a opressão materna. Portnoy, é bom lembrar, descobre-se impotente quando se separa da mulher ignorante e viaja para a pátria-mãe, Israel.



Desgarrado, Roth conclui que a falta de vínculos – afetivos, em especial – pode levar ao desejo de morte, por vezes associada ao sexo solitário, que abjura a geração. Em A Humilhação (2009), outro títere criado por Roth para o representar, Simon Axler, um veterano ator de teatro, interna-se numa clínica para escapar da ideia fixa do suicídio e de uma crise sexual. Antes, em Indignação (2008), ele troca a mãe superprotetora de Portnoy pela figura do pai açougueiro onipresente de Marcus Messner, um jovem nascido e criado em Newark, como Roth, que, para escapar, se refugia nos estudos antes de sucumbir ao jogo amoroso com uma colega de classe. Não são os melhores livros de Roth – e com certeza não é possível comparar A Humilhação com a obra-prima que é O Avesso da Vida (1986), até hoje a mais sofisticada construção literária de um autor que colecionou grandes títulos – dos quais ainda cabe destacar, entre tantos outros, Pastoral Americana (1997), e Homem Comum (2006).



O pessimismo de Roth parece intraduzível para outras mídias. Tanto que ele detestou a versão cinematográfica de O Animal Agonizante, aqui chamada de Fatal, com roteiro de Nicholas Meyer , também autor da adaptação de A Marca Humana, igualmente de Roth, lançado no Brasil como Revelações. Em Fatal, Ben Kingsley interpreta o egoísta acadêmico David Kepesh, que usa sexualmente uma aluna (Penélope Cruz) e fica dividido entre a razão e a paixão, o mesmo conflito que parece acuar Roth

Fonte : O Estado de São Paulo. 03/07 / 2010

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