Lucia Guimarães – O Estado de São Paulo
Em entrevista exclusiva, escritor fala de Obama, da presença da morte em sua obra, do Nobel
CONNECTICUT – O serviço de meteorologia previa pancadas de chuva para o noroeste do Estado de Connecticut. Enquanto eu dirigia pelas estradinhas sinuosas, o cinegrafista Sean Conaboy, um irlandês-americano cuja teimosia haveria de ser um grande trunfo naquela tarde, ia resmungando no assento ao meu lado. Discordava das instruções que imprimi para chegar até o esconderijo do lendário casmurro das letras americanas.
A ameaça de chuva oferecia um problema logístico considerável para a entrevista com Philip Roth que, dependendo do pronunciamento crítico, é o maior autor da língua inglesa ou o maior romancista vivo. Nenhum dos dois epítetos justificaria a presença do terceiro ocupante do carro, Franklin, um pastor Corgi cujo dono estava fora do país, de férias. Não é sempre que você recebe um e-mail sucinto de uma amiga: seu cachorro vai visitar Philip Roth em Connecticut porque não encontro quem tome conta dele. Podemos deduzir facilmente que o autor de O Animal Agonizante não recebe equipes de correspondentes acompanhada de animais de estimação.
No breve A Humilhação (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto, 104 páginas, R$ 32), lançado recentemente no Brasil, um ator que “perdera sua magia” tenta curar a impotência dramática com o rejuvenescimento sexual. O protagonista Simon Axler acolhe a filha lésbica de um casal de atores amigos. Pegeen chega com uma sacola de artefatos. Numa cena de sexo que Roth me garante não ser fruto de nenhuma forma de pesquisa de campo (”Eu tenho alguma imaginação…”), a mulher temporariamente heterossexual manuseia seus instrumentos e o amante mais velho sabe que, naquele palco, a sua performance está com os dias contados.
A Humilhação é o terceiro volume de um quarteto de romances que “não foram reunidos ainda, a não ser na minha cabeça”, explica Roth. O livro volta ao tema da decrepitude masculina que tem afligido o criador de personagens recorrentes como Nathan Zuckerman e David Kapesh.
As provas do romance final do quarteto, Nemesis, me caíram nas mãos por acaso, pouco antes de chegar a resposta ao pedido de uma visita à antiga casa de fazenda da Nova Inglaterra, que desde 1972 é o refúgio onde Roth trabalha diariamente, num confortável escritório com lareira, separado da casa principal por um gramado. Nemesis vai ser publicado nos Estados Unidos em outubro. A história se passa durante uma epidemia de pólio em 1944, na Newark natal de Roth, a cidade que poderia substituir Manchester no famoso comentário de Mark Twain: “Eu gostaria de morar em Manchester, na Inglaterra. A transição entre Manchester e a morte não seria notada.”
Mas Roth, aos 77 anos, não tem feito outra coisa senão notar a transição que nos espera. A pólio que mata crianças e separa amantes em Nemesis, foi, em sua infância, a maior ameaça à existência, depois da 2.ª Guerra. Há um tom elegíaco no romance, um Roth mais evocativo e apegado às memórias distantes, que “continuam claras e intensas”.
Philip Roth confia no próprio faro meteorológico. Quando digo que deixei as janelas do carro abertas, sem revelar o motivo, ele me corta, “pode deixar, não deve chover até a noite”.
Nesta entrevista ao Estado, ele manifestou melancolia e bom humor, com uma candura surpreendente para quem costuma controlar sua interação com a imprensa. Quando perguntei sobre a injustiça de não ter recebido ainda o Prêmio Nobel de Literatura, o grande autor americano me convocou para o jardim, me mandou olhar a natureza em volta e devolveu a pergunta: você acha que ainda preciso de um Nobel?
Tendo sobrevivido a um segundo encontro com o homem que se recusa a sorrir para fotos mas nos deixou ligar a câmera de vídeo para registrar uma gargalhada ocasional, concluí que estava segura. Abri a porta do carro e murmurei algo para o paciente Franklin. Nosso anfitrião, apanhado de surpresa diante da criatura de olhos igualmente arregalados e orelhas muito maiores do que as suas, exclamou: “Puppy!” (filhote de cachorro). O lendário ator W.C Fields alertava para o risco de contracenar com animais e crianças. A criatura peluda que começou a pular em torno do entrevistado arrancou dele o que nenhum entrevistador conseguiu até hoje. Um flagrante de ternura genuína e não calculada. Que foi imediatamente corrigida por um firme aperto de mão de adeus, enquanto as nuvens obedeciam ao romancista e começavam a despejar o aguaceiro sobre nós.
O senhor não anda matando muitos personagens nos últimos livros?
Será? Me conte.
Além do ator em A Humilhação, há o Marcus Messner, em Indignação; Nathan Zuckerman enfartou – mas sobreviveu…
Zuckerman ainda vai morrer. E há a mulher em Homem Comum que também se mata.
Devemos apreender algo disso?
Suponho que sim. Nos últimos anos, tenho me encontrado cercado pela morte de amigos. E, antes disso, meus pais morreram. Mas, nos últimos cinco anos, morreram meus amigos e meu irmão. Então é muita morte. Você começa a passar mais tempo em cemitérios. Passa algum tempo escrevendo tributos e falando nos funerais. E trata com os sobreviventes dos mortos. Volta para casa e se lembra dos mortos. Então, a morte entrou na minha vida com mais força do que em qualquer outro momento. Acho que, nesse período, perdi seis dos meus amigos mais próximos, a maioria 5 ou 10 anos mais velhos do que eu. A minha reação à morte dessas pessoas não foi de raiva. Não. Foi de tristeza e de incredulidade diante do fato de que partiram. Eu sentia, sim, raiva quando era adolescente, com 12, 13 anos, quando primeiro descobri a morte. Mas talvez tenha sido mais medo do que raiva. A ideia da morte me assustava muito.
“Ele perdera a magia.” O senhor já disse que começou A Humilhação a partir daí. Por que o romance decola com a frase?
É uma boa frase de abertura. Eu gosto de declarar o que está em jogo logo no começo de um livro. Então, “Ele perdera a magia” é uma grande declaração. E se torna necessário, ao longo do livro, justificar a declaração.
O suicídio do personagem Simon Axler é uma declaração moral?
Minha? Qual seria?
Ele se mata porque é o que lhe restou?
Eu diria que o componente emocional é mais forte.
O senhor acredita na intimidade profunda entre um homem e uma mulher? Não falo de intimidade sexual.
Sim, com certeza.
Os personagens Simon e Pegeen, em A Humilhação, podem ser lidos como duas pessoas constantemente batendo num obstáculo?
Não ficamos sabendo por que ela vai embora. Pode ser porque já estava cheia dele, ou porque a experiência de ser heterossexual se esgotou, ou porque a diferença de idade é grande demais. Ela pode ter ido embora porque seus pais não gostam do relacionamento, há muitas razões potenciais. Mas, sim, eles têm intimidade real, antes de se separarem.
Sei que o senhor pesquisa bastante as tramas e, quando conversamos no ano passado, mencionou que tinha ouvido uma história sobre um ator que não consegue mais atuar.
Sim, ouvi mesmo.
É verdade que Al Pacino comprou os direitos de A Humilhação para viver Simon Axler no cinema?
Sim.
E o que acha disso?
Ele é um ator esplêndido, esplêndido, não é? Maravilhoso. E o que quer que faça é distinto, imaginativo e você quer assistir.
Quem vai escrever o roteiro?
Alguém vai escrever. Acho que ele contratou um roteirista.
O mesmo roteirista escreveu duas adaptações recentes de romances seus, A Marca Humana e O Animal Agonizante.
Ele é horrível! Não fui eu quem sugeriu. A produtora de cinema o contratou.
Não ficou feliz com a adaptação dos dois?
O roteirista é horrível. Arruinou tudo. Nicholas Mayer, é o nome dele? O roteiro dele para A Marca Humana foi um desastre.
Perdão por concordar.
Não, eu sei muito bem. E depois ele escreveu o roteiro para O Animal Agonizante, com o título de Fatal e foi um desastre também. Mas agora a produtora é do Al Pacino.
O senhor não tentou influenciar a escolha de roteiristas antes?
Não conheço nenhum roteirista. Assisto a alguns filmes que aprecio e suponho que devia ter prestado atenção nos nomes dos roteiristas. Mas não entendo nada disso.
Seu próximo romance, Nemesis, que será publicado em outubro, completaria um ciclo de quatro unidos por um tema?
Eles não foram reunidos ainda, a não ser na minha cabeça. Mas pensei em Nemesis como a conclusão de um ciclo de romances curtos. E os chamo de nêmeses, no plural. Eles começam com Homem Comum, em que a nêmese é a doença e a morte – mortalidade. Em Indignação, a nêmese é a indignação e a guerra. No terceiro, A Humilhação, a nêmese é a circunstância fora de controle que aflige o protagonista. E no romance final é a epidemia de pólio em 1944.
Precisa de silêncio para escrever?
Sim. Silêncio absoluto. Quando eu morava em Nova York era um problema, eu me mudava com frequência. Porque havia alguém com o aparelho hi-fi muito alto. Ou um sujeito batendo na mulher toda noite.
O senhor chegou aqui nos anos 70. Por que escolheu este lugar?
Eu me mudei para cá na primavera de 1972. Tinha amigos a meia hora daqui. O Bill, William Styron, e sua mulher moravam próximos. Num verão dos anos 60 eu fiquei hospedado no estúdio do Bill, enquanto eles estavam em Martha’s Vineyard. Passei o verão sozinho, andei de carro por aqui e gostei muito. E, quando comecei a procurar um lugar no campo, eles me ajudaram a encontrar esta casa e eu comprei rapidamente. Chegou até aqui pelo vilarejo?
Sim.
Não é nem uma cidade, é um quarto de cidade. Não tem correio. Meu endereço postal tem que ser na outra cidade, que tem um armazém, uma loja de ferragens e um banco. Aqui não tem nada. Mas vi que abriram um pequeno hotel, com um nome de Galo alguma coisa. E parece que servem jantar lá…
Não dá para sair e comer fora por aqui.
Só se dirigir muito.
O senhor apoiou o Barack Obama e votou nele. Teria imaginado, diante do otimismo que levou Obama ao poder, que o país estaria logo tão dividido, que haveria um movimento de direita como o Tea Party?
Não teria imaginado mas, agora que aconteceu, acho fácil acreditar na realidade.
Por quê?
Quando o Franklin Roosevelt chegou ao poder, em 1933, para fazer mudanças expressivas no governo, com o país mergulhado na Grande Depressão, a oposição a ele era feroz. Ele ganhou a eleição como o Obama mas a oposição foi imediata e feroz, não menos do que Obama enfrenta hoje. Quando você tem um poderoso novo líder, ele mobiliza a oposição. A oposição não havia desaparecido. Mas Obama conseguiu passar o seguro saúde – foi um começo. E o que ele poderia ter feito sobre o desastre do Golfo do Mexico? Quanto mais descobrimos sobre a BP, mais irresponsáveis eles parecem.
A mídia americana não critica Obama por confiar na força de sua retórica, do discurso eloquente e, em seguida, o critica por não expressar indignação o bastante?
Eu não compreendo este papo da indignação, o importante é oferecer soluções práticas e não tratar de emoções. Ele está sob uma pressão tremenda, sendo muito criticado e a direita está fazendo tudo o que pode para enfraquecer Obama.
O senhor vai muito a Newark, sua cidade natal?
No ano passado, em outubro, fiz uma visita divertida a Newark. É difícil se divertir com Newark. É um lugar devastador. Você deve conhecer o bairro português lá. É a melhor área, no distrito Ironbound, na minha infância era uma favela industrial. Eu me juntei a um tour de ônibus que se chama “A Newark de Philip Roth”. Há uma mulher do Comitê de Monumentos e Preservação da cidade que lidera o tour algumas vezes por ano.
Os turistas levaram o maior susto ao vê-lo?
Eles ficaram meio atônitos, sim. Peguei o ônibus e havia uma turma da minha escola secundária, 10 anos mais novos do que eu, celebrando um aniversário de formatura. Parte da celebração era fazer o tour. E o ônibus foi passando por todos estes lugares que aparecem nos meus livros. Nós paramos na frente de um hotel decadente que, na minha época, era o chique Hotel Riviera. Riviera, imagine. Foi onde minha mãe e meu pai passaram a primeira noite do casamento. Se meus pais fossem vivos estariam morrendo de rir. Tenho certeza de que sua primeira noite não foi nada incrível. (Risos) Tenho certeza de que foi uma noite meio quieta. Eu me diverti, desfrutei daquele dia. Passamos por uns 10 ou 12 lugares e acabamos na casa onde passei a infância, na Avenida Summit. Agora há uma placa lá registrando o tombamento da casa.
Quem vive lá?
Uma moça negra que hoje é minha amiga, Roberta Harrington. Um amor, Mrs. Harrington. Agora que puseram a placa, ela quer que a prefeitura tome providências sobre o gramado. Escrevi para o antigo prefeito pedindo ajuda. Na rua, há a Praça Philip Roth.
O senhor deu aula de escrita criativa em Iowa, mas depois criticou esses cursos como “o equivalente a estudar rabiscos”.
(Risos) Eu disse isso? Eu dei aula em Iowa de 1960 a 1962.
Foi compensador?
Sim, eu era casado na época, precisava me sustentar e ganhava US$ 5.500 por ano. E já não era muito dinheiro em 1960. Sempre não foi muito dinheiro.
Ainda acredita que seja bobagem ensinar escrita criativa?
Sim. Ensinam isso no Brasil?
Contraímos tudo o que vocês transmitem.
Acho que é uma grande perda de tempo.
Tenho uma confissão a fazer. Este livro encapado no meu colo é Nemesis. Consegui as provas do seu próximo romance com um conhecido seu.
Que bom.
Estou sob o impacto da leitura, acabei durante a noite. Uma beleza.
É mesmo? Agora pode desencapar o livro.
Este romance, bem diferente dos três livros anteriores, é mais evocativo.
Sim, é verdade. De certa forma, ele volta à Conspiração Contra a América. Ali, a comunidade estava ameaçada pelo fascismo, ou o que considerava fascismo. E aqui a comunidade está ameaçada pela pólio. Há ameaças nos três romances anteriores, mas aqui é especial. Quando comecei a escrever Nemesis, eu pensei, o que mais representava uma ameaça no tempo em que eu cresci? Nasci em 1933, em plena Grande Depressão, só que era jovem demais para ter uma experiência direta. A primeira experiência forte que tive foi a Segunda Guerra. Eu tinha 8 anos e era uma criança inteligente. A guerra me assustava e eu acompanhava tudo pelo rádio, jornais, ouvia meus pais e os amigos deles conversando. E perguntei, o que mais nos ameaçava? Lembrei que era a pólio. Era uma ameaça tão grande quanto a guerra. Os nossos pais viviam mais ainda a ameaça. Nós sabíamos que ela existia e saíamos para brincar. A realidade não era compreendida pelas crianças. Até um amigo contrair a doença. O que aconteceu com todo mundo, comigo também, um menino na minha rua contraiu pólio, quando eu tinha 11 anos. E nos forçou a enfrentar o fato de que a ameaça era real. A vacina apareceu em 1955, quando eu fazia mestrado em Chicago. Em dois anos, a doença desapareceu. Portanto, qualquer americano com menos de 50 anos não sabe o que é a pólio, só sabe o que é a vacina.
A pólio formou a sua percepção da mortalidade?
Não só isso, mas percebi que havia coisas sobre as quais não tinha controle. Coisas que chegavam e transformavam a gente num aleijado. Ou nos matavam. E não havia proteção, a doença poderia escolher arbitrariamente quem contaminar e destruir.
O senhor já está trabalhando no próximo romance?
Não.
Por que o senhor disse que preferia escrever um livro só até morrer?
Porque esta história de começar e completar e começar de novo é um inferno.
Não precisa se livrar de um romance depois de algum tempo?
Não, eu preferia ficar escrevendo continuamente e, quando eu morrer, eles publicam.
Não é bom entregar um romance para os leitores?
Mas o problema é que você tem que começar o próximo! E começar o novo livro é puro inferno.
O senhor já disse, com ironia, que o comitê do Prêmio Nobel de Literatura não o tem decepcionado, ano após ano. Há muitos que o consideram o grande injustiçado desta honraria. Alguma vez pensou no discurso que vai escrever se ganhar o Nobel?
Não. (Roth abre um sorriso maroto.) Vamos lá fora que eu lhe dou a resposta. (Paramos no meio do imenso gramado, cercados de árvores centenárias.) Aqui está. Olhe em volta. Eu preciso de um Nobel quando tenho isso tudo? Agora vamos continuar caminhando. Vamos buscar a correspondência na caixa do correio.
Fonte :O Estado de São Paulo
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