quinta-feira, 22 de julho de 2010

De volta a vida real

Depois da Copa, começo enfim a voltar à vida real. Achei que foi uma copinha meio sem-vergonha, quase sempre retrancada e sem graça. Mas já circula o logotipo da Copa 2014, para felicidade dos cartunistas. Criaram a estética do realismo socialista brasileiro, a pátria amada cheia de mãos no jarro, tudo em verde e amarelo. Parece que vamos continuar com o mesmo assunto por muito tempo.


 O Irã, por exemplo, determinou o corte oficial dos cabelos no país – todo mundo tem de cortar o ca­­belo de acordo com o padrão de Estado, que seria supostamente o da religião. A barba continua livre; parece que em muitos casos ela é até mesmo obrigatória. Assim, um jovem iraniano que queira exercer o sagrado direito de protestar, deve cortar a barba e deixar o cabelo crescer. Nos meus saudosos anos 70, o cabelo comprido era uniforme obrigatório da contestação, com a moldura da barba, tudo sem aparar, na­­quele jeito maldormido dos rebeldes com e sem causa. A barba não tirei até hoje, mas agora sem ideologia – é preguiça mesmo. A ideia de o Estado controlar também o corte do cabelo até que seria boa para mim – não teria de explicar penosamente ao ca­­be­­leireiro como resolver esse ralo matagal que me cobre a cabeça, naquele sofrimento a que me submeto, por insistência da fa­­mília, todo semestre. Com um mo­­delo obrigatório de cabelo, o problema estaria automaticamente resolvido, já que tento ser um cidadão obediente.

Mas, no Irã, o risco da desobedecer à lei é maior do que aqui; eles não estão brincando. Por exemplo: enquanto o Brasil aprovou a lei do divórcio automático – basta a concordância mútua dos cônjuges e o contrato está desfeito, porque ninguém tem nada a ver com a vida dos outros –, o Estado iraniano condena à pena de morte por apedrejamento (assim mesmo) a mulher que pratica adultério. Pobre madame Bovary, a célebre personagem de Gustave Flaubert, proibida de circular na França do século 19 por atentado ao pudor e aos bons costumes! Eles ficaram tão traumatizados com a condenação de ma­­dame Bovary que hoje proíbem o uso público da burca, no me­­lhor estilo francês: mulher tem de aparecer!

Mas as coisas estão melhorando. Leio na Gazeta que a iraniana Sakineh Ashtiani, acusada de manter “relações ilícitas”, teve a pena de morte por apedrejamento suspensa, depois de uma gritaria mundial. In­­felizmente ela não escapou de receber as “99 chicotadas” preliminares pelo seu crime. Fiquei matutando: por que “99”? Se não fosse trágico, lembraria a pergunta retórica de Borges: por que a obra-prima da literatura oriental se refere a “1001 noites”, e não simplesmente mil, ou novecentas, ou mil e cem? A comparação talvez não seja tão absurda – na verdade, trata-se do mundo vivido sob o pensamento mágico, que, trans­­posto à vida real, às vezes resulta em tragédia.


Cristovão Tezza.
Fonte:Gazeta do Povo 22/07/2010

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