segunda-feira, 19 de julho de 2010

O amor em visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.



Cantar? Longamente cantar,

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar trespassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas,

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes

ele – imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.



Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;

e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.

- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria.



Dai-me uma mulher tão nova como a resina

e o cheiro da terra.

Com uma flecha em meu flanco, cantarei.



E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,

cantarei seu sorriso ardendo,

suas mamas de pura substância,

a curva quente dos cabelos.

Beberei sua boca, para depois cantar a morte

e a alegria da morte.



Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro

pescoço de planta,

onde uma chama comece a florir o espírito.

À tona da sua face se moverão as águas,

dentro da sua face estará a pedra da noite.

- Então cantarei a exaltante alegria da morte.



Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela

despenhada de sua órbita viva.



- Porém, tu sempre me incendeias.

Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite

imagem pungente

com seu deus esmagado e ascendido.

- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.



Entontece meu hálito com a sombra,

tua boca penetra a minha voz como a espada

se perde no arco.

E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua

estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo

se desfibra – invento para ti a música, a loucura

e o mar.



Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,

a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.

Vou para ti com a beleza oculta,

o corpo iluminado pelas luzes longas.

Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos

transfiguram-se, tuas mãos descobrem

a sombra da minha face. Agarro tua cabeça

áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou

aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -

eu sou a beleza.

Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem

teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.



Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti

que me vem o fogo.

Não há gesto ou verdade onde não dormissem

tua noite e loucura,

não há vindima ou água

em que não estivesses pousando o silêncio criador.

Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos

originais.

Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra

a carne transcendente. E em ti

principiam o mar e o mundo.



Minha memória perde em sua espuma

o sinal e a vinha.

Plantas, bichos, águas cresceram como religião

sobre a vida – e eu nisso demorei

meu frágil instante. Porém

teu silêncio de fogo e leite repõe

a força maternal, e tudo circula entre teu sopro

e teu amor. As coisas nascem de ti

como as luas nascem dos campos fecundos,

os instantes começam da tua oferenda

como as guitarras tiram seu início da música nocturna.



Mais inocente que as árvores, mais vasta

que a pedra e a morte,

a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,

tinge a aurora pobre,

insiste de violência a imobilidade aquática.

E os astros quebram-se em luz sobre

as casas, a cidade arrebata-se,

os bichos erguem seus olhos dementes,

arde a madeira – para que tudo cante

pelo teu poder fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,

eu sei quanto és o íntimo pudor

e a água inicial de outros sentidos.



Começa o tempo onde a mulher começa,

é sua carne que do minuto obscuro e morto

se devolve à luz.

Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras

com uma imagem.

Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito

de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade

uma ideia de pedra e de brancura.

És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,

que te alimentas de desejos puros.

E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,

a sombra canta baixo.



Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,

onde a beleza que transportas como um peso árduo

se quebra em glória junto ao meu flanco

martirizado e vivo.

- Para consagração da noite erguerei um violino,

beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada

darei minha voz confundida com a tua.



Oh teoria de instintos, dom de inocência,

taça para beber junto à perturbada intimidade

em que me acolhes.



Começa o tempo na insuportável ternura

com que te adivinho, o tempo onde

a vária dor envolve o barro e a estrela, onde

o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida

ingénua e cara, o que pressente o coração

engasta seu contorno de lume ao longe.

Bom será o tempo, bom será o espírito,

boa será nossa carne presa e morosa.

- Começa o tempo onde se une a vida

à nossa vida breve.



Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna

salina, imagem fechada em sua força e pungência.

E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado

em torno das violas, a morte que não beijo,

a erva incendiada que se derrama na íntima noite

- o que se perde de ti, minha voz o renova

num estilo de prata viva.



Quando o fruto empolga um instante a eternidade

inteira, eu estou no fruto como sol

e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada

matriz de sumo e vivo gosto.

- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices

das nuvens florescem, a resina tinge

a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.

E estás em mim como a flor na ideia

e o livro no espaço triste.



Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento

na cevada pura, de ti viriam cheias

minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses

em minha espuma,

que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?

- No entanto és tu que te moverás na matéria

da minha boca, e serás uma árvore

dormindo e acordando onde existe o meu sangue.



Beijar teus olhos será morrer pela esperança.

Ver no aro de fogo de uma entrega

tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus

será criar-te para luz dos meus pulsos e instante

do meu perpétuo instante.

- Eu devo rasgar minha face para que a tua face

se encha de um minuto sobrenatural,

devo murmurar cada coisa do mundo

até que sejas o incêndio da minha voz.



As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso

jovem da carne aspiram longamente

a nossa vida. As sombras que rodeiam

o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto

seu bárbaro fulgor, o rosto divino

impresso no lodo, a casa morta, a montanha

inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo

- aspiram longamente a nossa vida.



Por isso é que estamos morrendo na boca

um do outro. Por isso é que

nos desfazemos no arco do verão, no pensamento

da brisa, no sorriso, no peixe,

no cubo, no linho, no mosto aberto

- no amor mais terrível do que a vida.



Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz

o perfume da tua noite.

Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua

e branca das mulheres. Correm em mim o lacre

e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca

ao círculo de meu ardente pensamento.

Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam

sobre o teu sorriso imenso.

Em cada espasmo eu morrerei contigo.



E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente

das urzes, um silêncio, uma palavra;

traz da montanha um pássaro de resina, uma lua

vermelha.

Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,

casa de madeira do planalto,

rios imaginados,

espadas, danças, superstições, cânticos, coisas

maravilhosas da noite. Ó meu amor,

em cada espasmo eu morrerei contigo.



De meu recente coração a vida inteira sobe,

o povo renasce,

o tempo ganha a alma. Meu desejo devora

a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma

de crepúsculos e crateras.



Ó pensada corola de linho, mulher que a fome

encanta pela noite equilibrada, imponderável -

em cada espasmo eu morrerei contigo.



E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se

entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro

da tua entrega. Bichos inclinam-se

para dentro do sono, levantam-se rosas respirando

contra o ar. Tua voz canta

o horto e a água – e eu caminho pelas ruas frias com

o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo

eu morrerei contigo.

Herberto Helder

Um comentário:

Anônimo disse...

tão, mas tão lindo! *.*