segunda-feira, 27 de abril de 2015

LEIS DE MERCADO


não foi de uma vez só
foi pouco a pouco

ela era tão viva
tão bonita
tão autêntica

espalhava por aí
abraços, carícias
sonhos, cores,
beijos, fantasias
e possibilidades

não suportavam
vê-la tão leve, tão solta
tão cheia de amor

no primeiro dia
cortaram-lhe as asas

no segundo
arrancaram-lhe as cordas vocais

no terceiro
quebraram seus braços e pernas

no quarto
perfuraram-lhe os tímpanos

no quinto
furaram-lhe os olhos

no sexto
invadiram seu território
mais íntimo e mais sagrado
:
o sexo

no sétimo descansaram

agora é tarde
a liberdade está morta

Poema de BIANCA VELOSO,

Poeta gaúcha, cresceu e vive em Florianópolis. Optometrista por profissão, mãe por opção, escritora por paixão. É também programadora da Rádio Comunitária Campeche. Apresenta o “Sábado Arrastão”, um programa de entrevistas com foco em música e poesia. BIANCA VELOSO está na 59ª postagem da série AS MULHERES POETAS...

Se quiser ler mais, clique no link http://www.rubensjardim.com/blog.php?idb=44306


FRONTEIRAS


Uma só boca
para falar pouco
Dois ouvidos para ouvir mais
Uma
só Alma
para viver
entre a paixão e o caixão


Poema de CLAUDIA ALENCAR ,

Poeta paulistana, atriz de teatro, cinema e tv. Já publicou dois livros de pesquisas teatrais e lecionou artes cênicas. Publicou 4 livros de poemas: Maga Neón (1988), Sutil Felicidade (2001), 50 Poemas escolhidos pelo autor (2004) e Refinamento e Loucura(2013) Foi militante da ALN e em 1972 foi presa e torturada. CLAUDIA ALENCAR está na 59ª postagem da série AS MULHERES POETAS...

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HUMANO


Tudo teima em se alterar
O de dentro quer sair
O de fora quer entrar
Mas se eu não me engano
Não seria isso
Ser humano ?



poema de NATÁLIA BARROS ,

Poeta  santista, cantora, atriz e jardineira. Foi contemplada pelo Proac 2011 de literatura. Fez parte do grupo Luni como cantora e integrou o XPTO como atriz. Já foi repórter da TV Cultura e publicou apenas um livro com seus poemas, mini contos e ilustrações: Caligrafias, em 2012. NATÁLIA BARROS está na 59ª postagem da série AS MULHERES POETAS...

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nasci agora e o meu amor nasceu
da tua pele feita madrugada.
quando eu escrevo é que a emoção morreu."
RR
“Vivo no mundo plantando
fruto bom de qualidade,
estudando a faculdade
de quem vive improvisando.
Fazendo plano e sonhando
depois que o dia adormece,
e quando a noite aparece
eu me torno mais profundo,
e faço versos pro mundo
pra ver se ele não me esquece.”


(João Paulo, mestre de maracatu em Pernambuco)

Carlos Sousa

lascas metálicas dum sol de lata
esparramadas pel'um céu que duvida ser azul
onde lagarta a tarde vai deixando o casulo dia
pelas aberturas dos horizontes como ventres cortados

a lâminas asas da noite que vem alada e suave.
-Pai, tenho dezenove anos, decidi que não vou morar mais com o senhor, vou me mudar para Florianópolis!
--Entendo, está na hora mesmo de ter suas responsabilidades, Florianópolis, belas praias: Jurerê, Canasvieiras, Lagoa da Conceição , gosto mesmo do Ribeirão da Ilha! Pode mudar , filha. Mas não alugue apartamento, arrume uma casinha que tenha jardim no sul da ilha, com dois quartos! Papai vai morar com você.

JD

DE OUVIDOS - MINICONTOS

domingo, 26 de abril de 2015

Ave Palavra


POESIA E PORRADA


para José De Paula Ramos Jr.

De tanto tomar porrada
pedrada cuspe tapão
engolir sapos
cobras e lagartos
mascar rancor
saco roto de pancadas
eu
insulto
calei.
E petrifiquei
recusa muda
feito coisa só res-
saca só sono só res-
sentimento.
Minha poesia nada rala
que de ira se irrigava
secou
esquecida e rara.
Só lia e nada
impactava.
Tédio recato tédio
nos versos alheios.
E eu repetia falas sagradas
estante estéril
mote metralha
no esforço
de relembrar
o inverso do bocejo:
“Estou farto do lirismo comedido”
“Fera para a beleza disso”
“Te escrevo fezes”
“Mas ainda não é poesia."
E agora que impera o chato
o gesto eco
o versinho pré-parnaso
o correto dito certo
pé no gesso
regrado
pé no saco
dispenso a pose polida
e disparo petardos
incertas pedras
chutes feridas
de pé descalço
arrisco sem meta
ou metro estimado.
Eu
insulto
revolto o gesto.
Solto minha rocha em versos
pedras-de-raio
estrelas cadentes
chuva de meteoros indigestos.
Porradas, vinde: voltei.

in Contracorrente (2000)


Frederico Barbosa 

ESCRITURAS


Com um canivete
escrevo teu nome
na minha epiderme.
E descubro, rubro:
meu Deus, como sangram
a escritura e o amor!

[olw]
Otto Leopoldo Winck


O escritor nunca escreve 'de si', ainda que o queira. Nem 'independente de si', pois atrás de sua pena há uma mão, e esta mão tem um corpo, e este corpo tem uma história. O escritor sempre escreve 'a partir de si', e este 'si' não é um 'eu', que é uma ilusão, mas um feixe de memórias, experiências e anseios cujas raízes mergulham no solo duro e obscuro da história social.

sábado, 25 de abril de 2015

Em uma Páscoa passada


Três caras pararam o automóvel ao meu lado e saíram gritando:
- Perdeu, playboy! Pode ir passando o dinheiro e o telefone!
Eu, num arroubo de coragem e tentativa de esquiva lírica respondi:
- Playboy nada, rapá! Sou poeta.
Então o porta voz da empreitada tranquilizou-se e disse:
- Ele é poeta, malandrage, então tá com sorte hoje, não vamos mais te roubar, vamo é te bater pra largar mão de ser besta. Onde já se viu poesia ser profissão agora... pra ter este telefoninho de merda...
Aí, possuído de uma dose extra do arroubo, respondi:
- Oras, se vocês são ladrões de profissão, por que não posso ser poeta? Além do mais os poetas também são ladrões, ladrões de fogo, nunca leram Rimbaud?
Respondeu ele:
- Ler não li, mas quando era piá vi todos os filmes dele... tá bom, então pela consideração à camaradage profissional não vamos mais te bater... passa o dinheiro e o telefone...


Ricardo Pozzo
Clandestino na cidade que cresci, por três dias andarilho a deriva, qual vagasse pelas areias das praias de Troia, com as tripas coladas às costas, tragando apenas do alumínio do amargor.
Quando já exausto, uns irmãos de sei lá qual igreja me oferecem a marmita do Jardim das Delícias.

Há tempos, eu e meus  desseseis  dentes, não éramos tão felizes.



Ricardo Pozzo
quando as águas me chegam e eu derramo
quando as velas se apagam e eu escureço
quando a vida se quebra e eu te chamo."

RR

sexta-feira, 24 de abril de 2015

você fabrica a noite mais sombria do ano
logo em seguida faz a coisa certa
você amontoa histórias
e acha que tem uma armadura
você espera que eu seja uma lareira
você ama
me tira de um lugar de gelo
sussurrando cantam as urticárias do corpo
me ensine de novo tente
dessa vez quero conseguir
volte pra cá
e essa noite branca vai embora de nós
não deixe a temperatura despencar
segure a minha mão
você ampara a frente fria
foi rápido e sem som
você comeu o violão
doeu
ou foi pior do que doeu?
não se sai do outro como se sai do banho


luiz Felipe leprevost

domingo, 12 de abril de 2015

Notas para viver no fim do mundo


contemplar está no templo
o ar no amargo
a ilha é o lugar
mais perto ?
a hora mais amarga
é a f lt ? de memóri ?
ou o que morre lentamente
lembrando o imenso
+++
o direito de sonhar
pós morte. a cabeça baixa
sobre os papéis.
+++
a sombra some aos pés
do grande homem.
a formiga corre.
+++
o caracol leva a casa
nas costas. na sua cabeça,
quantas ?

marilia kubota

sábado, 11 de abril de 2015

sinto falta
da falta
que eu sentia de você
e esta falta
da falta
que eu sentia de você
não é só falta (lacuna, vazio)
mas também falta:
falha, erro
– e este não tem mais concerto.

[olw]
Então,
de nossos
afetos, afagos e fatos,
não fica nada?
Nem um gesto,
um risco, um ricto, um rito
de luto,
um perfume que seja,
erradio,
na brisa de um novo mundo?

[olw]

BEAT


entre a santidade
e a insanidade
não há mais que um vão
pois é: passei o rubicão
sou agora
– totalmente perdido
e beatificado –
pura iluminação.

[olw]
Diga tudo logo agora.
Não engrole, não enrole,
não adie, não invente.
Meu coração não é de mola
mas segura esta encrenca.
Diga tudo logo agora,
na bucha, na cara dura.
Pegue então este poema
e saia por aquela porta.

[olw]

SACRILÉGIO


Me aproximo de ti
como quem se aproxima da polpa do silêncio:
com gestos pausados e passos medrosos.
O mundo lá fora é muito grande,
os caminhos tão numerosos e loucos
que será inevitável o adeus.
Quando chove, contemplo as vidraças
e vejo teu rosto: envelheceste – penso em dizer-te.
Mas as palavras frequentemente são duras
e resta sempre uma paisagem vazia
onde nossos sonhos deixaram sulcos.
Me aproximo de ti
como quem se aproxima do nome de Deus:
com gestos medidos e passos de dança.
Se eu gritasse, sei que ninguém me ouviria.
Se eu dançasse, o universo implodiria.
Estive dentro dos pesadelos dos homens
e descobri que tudo é sagrado.
Menos o medo que tenho de ti.

Otto Leopoldo Winck

OUTRO TIGRE



Tigre, diamante vertebrado,
nenhuma jaula poderá
reter, inflexível, a fria
fúria do teu olhar.
Nosso inútil terror de humanos
extrairá, do mundo em que vives,
a força líquida (flutíssona) de
músculos invisíveis.
Tigre, metáfora do tempo,
demônio cego da distância:
que ser, ferido de beleza,

te admira em segurança?



Eduardo Sterzi 

(Porto Alegre, 7 de junho de 1973) é um poeta, jornalista e crítico literário brasileiro.Formou-se em Jornalismo pela UFRGS, tendo trabalhado no jornal Zero Hora. Mestre em Teoria da literatura (PUCRS) com dissertação sobre Murilo Mendes e doutorado em Teoria e História Literária na Unicamp, com tese sobre o livro Vita Nova, de Dante Alighieri. Atualmente reside em São Paulo, com a escritora e crítica de arte Veronica Stigger. Tem um bom conhecimento da língua Italiana. Esteve Roma durante o ano de 2009 para realizar estudos e pesquisas sobre critica literária.É um dos editores da revista de poesias Cacto e de K Jornal de Crítica. Entre suas publicações, os livros de poesia Prosa (2001) e O aleijão (2009) e os artigos Drummond e a poética da interrupção, no volume Drummond revisitado, organizado por Reynaldo Damazio (Universidade São Marcos), e O mito dissoluto, no número do 3 da Rivista di Studi Portoghesi e Brasiliani. Organizou o volume Do céu do futuro: cinco ensaios sobre Augusto de Campos.

OFERTA


Como a voz de muitas águas
você me acordou dentro da noite
e eu era como um velho navio naufragado.
O canto dos peregrinos
me chegava aos ouvidos
como uma recordação maldita.
E de repente eu desejei
que não houvesse sol – e nos tons sanguíneos
que antecedem o dia
tudo se revolvesse
e resolvesse.
(Tenho andado tanto
e cantado pouco – eu pensei.)
Por isso aqui estou
à tua porta
e trago como ex-voto
os veios que as bátegas da chuva
no meu rosto abriram
– e as minhas mãos cansadas
e vazias.

Otto Leopoldo Winck

OSA DE UM DOMINGO


A máquina do corpo, resumida nos sentidos,
dissolve a tempestade num cheiro de chuva:
recorda-me, qual súbita visagem
(sutilmente engastada
no tempo presente),
a dor de ser
sem ter
sido.
Nada
(nem cheiro
nem tempestade),
mesmo que reviva,
num segundo abençoado,
a sensação de uma outra vida (frágil
como a própria infância, dor secreta do poema),

pode, fugaz, dar-me a garantia de ter vivido.

Eduardo Sterzi
um dia o sol
vai parar de brilhar
mas teus olhos
dentro da minha escuridão
não

[olw]

DESAPARIÇÃO


Sereno, à flor do tempo,
recomponho o desejo
de estar vivo. Vejo
entrar pela janela
o mesmo sol de sempre;
finjo que não conheço
seu calor, sua máscara
amarela, hepática.
Sei mais da natureza
das nuvens, e do vácuo
entre as estrelas, negra
matéria; no entanto,
quando me entrego ao sol,
integro-me ao ser sol:
narciso mais que cego,

narciso cegaluz.

Eduardo Sterzi

PERMANÊNCIA


Entre o nada que se é
e o tudo que se quer,
quem sabe haja uma margem
onde eu possa inscrever meu nome
no branco de uma página
ou no mármore de uma lápide.
E entre um ponto e outro
deixar gravado -- por que não? --
minha marca
no coração que escondes
debaixo desses seios
que aos meus olhos são,
do espetáculo da vida,
a melhor tradução...

Otto Leopoldo Winck

O SENTIDO DA VIDA

Renato Vieira Ostrowski

A vida é feita de mão única
pra quem presta atenção
mas há quem goste
de andar na contramão
há os que adoram
ficar na sarjeta
implorando atenção
há os que param na calçada
só pra ver
a banda passar
tem até quem fura sinaleiro
e depois diz

que o mundo é que é encrenqueiro.
e entra a noite com sua música que
não faz rir e nem chorar
frutificando gomos em cascas
maduras e sem gosto
o movimento lento do movimento lento
entre a luz e a escuridão cansadas
de se cumprimentarem.
feliz por saber:
o que emociona é justamente esta
terra absoluta
sem braços para abraçar
ou pernas para fugir
de ninguém.


Alexandre França
Al Reiffer

I - otimista é aquele
que ao olhar para um céu ensolarado
enquanto cai um avião de passageiros
vê somente o sol
II – acreditar na humanidade
é desconhecer-se
III – pessimista é aquele
que ao olhar para o mar em tempestade
entende que o mar só é grandioso

porque nele há também Terror

mangas


1
no sempre eram so as mangas
todos com nacos de manga nos dentes
com suco de manga na carne
depois a plantação de tomates
o dia inteiro na plantação de tomates
sem vontade de comer tomates
apanhar tomates com dedos sujos
sem tocar nas folhas ao redor dos tomates
sem manchar o verde nem o vermelho
2
um arranca outro põe os tomates
como soldados dormindo na caixa
de plastico com raspas cruas de madeira
horas demais colhendo tomates
depois de engolir fatias de tomate
no meio e no fim pedaços de tomate
depois ha sempre as pulgas
as pragas o veneno borrifado assim
como quem lava a cara ou as feridas
3
coberto de terra os dedos racham
dos pes e das mãos e a virilha queima
mas ha sempre a doçura das mangas
roubadas assim no escuro
no centro infinito dos tomates
q se dividem como ratos e pulgas
todas essas caixas de tomate
não pagam as fatias de tomate
inda menos os nacos crus e cozidos
4
nem sei nem sabemos pra q tomates
esses oceanos de tomate essa agonia
de todos agarrados assim nos tomates
pois so se vive pra produzir tomates
pra colher pra fazer correr o negocio
essa coisa sem fim essa coisa doente
os senhores de tudo não fazem nada
mas tudo corre como uma roda de ratos
todos juntos pra chegar em nada
5
deve ser porisso q me desespero
vivo e gasto e perco a vida bem assim
so não sei porq nem pra q tudo isso
nem porq vivemos esperando
so esperando sem saber o q vira
talvez o fim da fome o fim do mundo
se não fossem essas mangas
tariamos todos feito essas pulgas
vivendo so so pra chupar nosso sangue

*
Alberto Lins Caldas

SONETO II


Mário Faustino (1930-1962)

Necessito de um ser, um ser humano
que me envolva de ser
contra o não-ser universal, arcano
impossível de ler
à luz da lua que ressarce o dano
cruel de adormecer
a sós, à noite, ao pé do desumano
desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu abraço
escuro e palpitante,
necessito de um ser dormente e lasso
contra meu ser arfante:
necessito de um ser sendo ao meu lado,
um ser profundo e aberto, um ser amado.


terça-feira, 7 de abril de 2015

A VIDA TEVE SUA CHANCE


Tanto sol ardendo em quem
procurava um bronzeado.
Tanta chuva, vento, e os
casulos: encasacados
buscando conforto, paz
entre paredes parentes.
O tempo faz sua parte.
As partes fazem do tempo
o que apetece, aparece
na avalanche, em andorinhas.
Êxtases ou acidentes
chamam a chama ardente
pronta sempre a aquecer,
também pronta a queimar
até o fogo perecer.
Quanta chance nas manhãs.
Carros, pessoas saindo.
Passeios, olhos, mãos,
corações em seu recreio
(sem esquecer o receio).
Entretanto há algo letal:
o tempo, que nada sabe
de sua capacidade
de envergar até o ferro.
Há o espaço também,
mas este viciou-se há muito.
Drogado, encolhe-se mais

e nos afasta uns dos outros.

Paulo Betancur

ACEITA


Aceita o não, a porta batendo,
o silêncio vindo no vento.
Aceita a dor sem heroísmo,
nenhuma trégua e a frustração.
Descansa da mágoa: não tiras pão.
Aceita, aceita, aceita morrer.
Morrer é difícil, é quase impossível.
Resistir é inútil ainda que
apaguem o sorriso, e o amor se afogue
no próprio suor de suas promessas.
Ausentes te mentem. Aceita perder


a ponde de onde cais na mais elementar
falta de recursos, aceita, minúsculo,
não te chamar Jó e topar o sacrifício
de perder (perdemos sempre)
a hora leve dos prazeres,
a impunidade das vantagens,
a sorte dos mais felizes.
Aceita, convém, aceita
na grandeza dos que morrem,
na gentileza dos que somem,
na compreensão dos que aceitam
o fim de seus dias doces,
o começo de tempos ásperos.
Aceita enterrar-te vivo
numa casa onde ao lado
explodem risos e brotam
fatos quase sempre belos.
Tu, feio, pobre, sujo,
se gritares impedirás
a passagem para o outro lado
que só te aceita em paz,
não admite resistência.
Aceita, sem aceitar,
te finge de morto e
desta forma surpreendente
– o derrotado que extrai
da derrota a sua seiva –
te ergues já morto e vais
para a frente sendo outro.
O que morreu é lembrança
só tua, que dele não lembram.
Eras a nulidade pro mundo.
Aceitaste o veredito,
cabeça pensa, olhos postos.
E esperaste o suspiro
que te depositou no olvido.
Morrendo, sim, desta forma
ninguém irá te enterrar.
E, só no próprio velório,
a luz modesta crescerá
e terás a vida toda
para então ressuscitar.
Ressurreição permanente
de quem construiu-se eterno
crescimento após o luto
de não lutar quanto tudo
o empurra para o solo.
Aceita, aceita, aceita
que te aceitará a vida,
essa orgulhosa. Essa víbora
de ti, de mim se alimenta.
E quando, saciada, ao sono
ela se entrega sem vigília,
tu que aceitaste o infortúnio
acordas enfim pra fortuna.


Paulo Bentancur

APNEIA

Paulo Bentancur

Ai daquele que não sente nada
diante da morte, flor bruta contra a indiferença.
Ai daquele que não sente nada
Diante da vida, pedra em floração.
Ai daquele que não sente nada,
nada, nada, nada, nada.
Assim se afoga em tanto
e sua cinza é sua brasa.





APONTAMENTOS DE PAISAGEM


Freme o tenso horizonte
Subjugado pelo peso de um céu
E tudo o que é meu cabe no bolso
Do casaco, sem contar
Esses óculos apontando para a frente.
O azul da abóbada, pleno,
Se esvai no leito indistinto
Da terra, ora verde, ora abóbora
E deste mirador, cimo da serra,
Cravo meus pés, fiando as horas.
O leito de terra se estende
Na distância, costurando a fusão
De ar, sua transparência lá no alto,
E as gretas, as rudes rochas dizimadas,
Feito água lá no longe deste chão.
É tudo o infinito sem alcance,
Mesmo este embaixo de meu corpo,
A sustentar peso e voo
Permitindo o alçar-se como um porto
Do qual parte o olhar – com ele roo
Toda a matéria que me separa.

Paulo Betancur




ARSENAL


Molho de chaves num bolso, no outro
Um pente Flamengo, a carteira,
A camisa escondida pelo casaco,
Lenço de papel pra rinite,
Que sempre se manifesta,
Faça frio ou calor.
E o Rivotril a acalmar
O ansioso expediente.
O fundamental é pouco
O arsenal dessas minúcias
Que levo no cotidiano,
Me equilibrando nas pernas.
Saio para o trabalho, as telas, as tintas,
Tomado desses objetos,
Minhas armas, meus remédios,
Como se eu fosse um armário,
Ser esgotado, abjeto –
Vir-se-á o tempo da leveza.
Fizeram disso o que foi
No passado um homem bom,
O suficiente, pacato. Com
Pouca coisa a levar.
A chave, a carteira, o revólver.

E bastava, e bastava.

Paulo Betancur

ARTE DE SANGRAR


Paulo Betancur

Torcido como corda sem a música,
o músculo retesa todo gesto,
força além do suportável.
Os poros expelem ouro, refletido,
liquefeito, suor que acaricia
a pele já cansada deste dia
recém chegado em seu meio.


ASCENSÃO E QUEDA DO DIÁLOGO

Paulo Bentancur

Um homem liga a tevê, o rádio, escuta o vozerio da rua.
Esse homem veste roupas que não combinam.
Aperta as mãos, sorri, goza o frio enervante da dúvida
em saber qualquer coisa que o conduza para algo
que se possa chamar de um lugar.
Nem precisa ser um destino.
Um homem que não conhecemos e que, cansado de si,
entende e aceita que não o verem não significa o fim
nem o começo de uma história, e portanto ele pode
continuar desse jeito, tevê, rádio e rua gritando
e ele nem aí, falando também, ao mesmo tempo,
sem que os outros escutem, imitando sua surdez.
Um homem que parece tudo, menos mudo – como tudo.
Que engole ávido a alheia mudez e a tomar conta do fluxo
de ruídos que explodem contra o silêncio faminto.


Vanessa Carvalho


mormaço
com o rosto queimado,
pés rachados
e bacia ainda pesada
na cabeça,
volta pra casa.
na ida
algum desconhecido disse
que pelo dia abafado
vinha chuva.
depois do dia abafado,
seus olhos são
sóis cansados

que deságuam.

PROCURA DA POESIA


Poeta que é poeta
não olha a lua
nunca viu a lua
nunca parou
para saber da presença
de um satélite
Poeta que é poeta
não abre gaiolas
para libertar passarinhos
Nem tem gaiolas
Nem olha o céu
Na terra reside o universo
Poeta que é poeta
mergulha no escuro
o sol é um fósforo queimando os dedos
ele observa, sem pressa,
o musgo crescendo em volta da pedra
Tempo e espaço não são metáforas
Poeta que é poeta
tem um jardim cercado
de arame farpado. Dentro,
as placas dos nomes dos mortos
para que floresçam
Nem flores, nem borboletas
nem voos que não sejam de aviões
Poeta que é poeta
habita a noite fechada do silêncio
agita sua cabeleira como se fosse uma tempestade
Poeta que é poeta
olha a bunda das mulheres
seus dissimulados olhares, os cílios:
uma cortina que nem abriu
e começou o espetáculo
O resto é mistificação.

Paulo Betancur



ALTAR

As portas defecam gente
Saem de todo lado
Prédios postados rente
Às apertadas ruas
Lua, sol ou céu nublado
Pássaros apodrecendo
Carros correm guinchando
Seja manhã ou tarde
À noite gritam as luzes
Num aceno extremado
Dentro das casas, mudos
Só os objetos são sagrados.

Paulo Betancur



ADOLESCENDO


Adoeço com a filha adolescente
Ela parece estar doente
Engole a internet a noite inteira
Dorme quase o dia todo
Não lê, não lava louça, não cozinha,
Espalha as roupas pelo piso
E friso:
Cada resposta sua é
Desnecessariamente afiada,
Um grito
Bate a porta
Não responde a nada,
Pergunta que lhe façam ou não façam
Não fala
Na pré-adolescência estranhamos
Agora sabemos que mora conosco
Uma estranha
A família tem enxaqueca
A família não é família
Não por enquanto

Alguns anos ainda.

Paulo Betancur

sábado, 4 de abril de 2015

todo sábado eu me vejo
um menino sem pecado
quando eu todo relampejo:
sou grosso, feio e rasgado."
RR

sexta-feira da paixão
pode haver sol lá fora
flores
moças bonitas
crianças brincando de roda
mas aqui dentro de mim
no fundo de mim
como num túmulo
jaz um coração
putrefato
que nunca conhecerá páscoa

[olw]
Otto Leopoldo Winck



Quando adolescente me apaixonei por Capitu. (Só um adolescente mesmo pra se apaixonar um personagem!) Seu jeito de cigana, seus olhos oblíquos e dissimulados... Eu sabia que ela ia me trair: com Bentinho, com Escobar e com milhares de leitores. Mas me apaixonei assim mesmo. A gente nem sempre se apaixona pelo que é certo, correto, justo... Muitas vezes o abismo é mais fascinante, sedutor. Desde então sou apaixonado pelo mar em noites de ressaca. Suas ondas se arremessando loucas contra as pedras... Me vejo sobre um promontório, contemplando a noite de borrasca. Como um poeta alemão do Sturm und Drang. Tudo isso culpa da Capitu. Mas eu traí Capitu também. Com Emma Bovary, com a Sra. Arnoux, com Anna Karenina... Ih, com tantas! Ah, mas não há nada como o primeiro amor... Capitu, eu sei que você não existe e nunca existiu, que é criação de um bruxo do Cosme Velho amargurado com a vida. Mas toma essas linhas tortas que escrevo nesta Sexta-Feira da Paixão como um beijo. Um beijo de paixão. Te amo, Capitu. Teu para toda a vida.

LAURA LABIRÍNTICA

Eduardo Oliveira Freire


A mente de Laura sempre foi um labirinto, perdida entre lembranças e devaneios. Um dia, teve certeza que o marido estava tendo um caso com a vizinha ao lado, pois ele não saia da casa dela. Surtada, matou a mulher.
Anos depois, na prisão, descobriu que a vizinha não era amante de seu marido. Na verdade, o esposo da vizinha que tinha um caso com ele. Por isso, vivia o tempo todo na casa ao lado.
Eles foram embora para o outro estado e dizem que adotaram até uma criança.
Laura está se tratando na prisão e estuda para ingressar na faculdade de Serviço Social.




Ahhhh, eu não resisto, cada vez que encontro uma perdida, na rua, com a maior delicadeza abro um espaço no meu bolso ou na minha bolsa e é pra lá que vai meu pequeno tesouro. Claro, junto moedas de rua também... e não são poucas. Hoje, o dia ainda dorme e eu com mil coisas para fazer, encontrei uma e outra entre meus guardados e arrumações.Somente então, súbita constatação, me deparei com indelicadeza maior, enorme, do tamanho do mundo: não sei seu nome em português. Para quem me conhece, sabe que sou escritora e ministro uma oficina palavreira há muito tempo. Então, a culpa é maior, como deixei escapar o nome deste anel das ruas, desta estrela do chão, deste desenho de aço? Em espanhol seu nome é "tuerca" (meu irmão Carlos Alberto Valdivia Galvez tem um quarto cheio delas e certamente quando vejo uma, na rua, recolho "tuercas" e saudade)
Alguém me falou que seu nome é porca. Não, não acreditei nisso. Porca é a mulher do porco. Alguém sabe seu nome verdadeiro? As coisas precisam ter nome para existir e eu não quero terminar o dia com esta dívida.
Bom dia meus queridos leitores, amigos daqui e de lá, que sempre ampliam meu vocabulário e minhas metáforas, em diferentes línguas.

Gloria Kirinus
– Se o amor é um engano eu prefiro andar enganada – disse a garota de brinco de argola.
– O problema é que o príncipe nunca chegará porque ele não existe – disse a de brinco de pérola.
– O jeito então é transformar o sapo em príncipe. Ou engolir o sapo.
– Não dá. Chega de sapos.
Riram. estavam no fim do terceiro daiquiri. E não estavam acostumadas a tanto álcool.
– Vamos pedir mais um? Por mim eu tomava todas esta noite – disse a do brinco de argola. – Se o amor é um drinque eu quero viver bêbada.
– Menina, você vai acordar de ressaca. E quando olhar pro lado, em vez do lindo príncipe da noite anterior, vai ver um sapo. Um sapo gigantesco, de mal hálito, que vai querer te comer de novo.
E a garota de brinco de pérola soltou uma sonora gargalhada, fazendo com que todos os sapos do recinto olhassem para as duas.


[olw]
Adriana Zapparoli

- eu não quero ser homem... quero apenas os mesmos direitos deles de ir e vir... eu sei que é difícil. porque nem todas as mulheres pensam assim... muitas mulheres ainda pensam que existem coisas que são para homens e coisas que são para mulheres... elas pensam. dificultando ainda mais o reconhecimento dos mesmos direitos.Negros e gays já conseguiram muito mais em direitos do que a mulher. mas acontece que entre eles há fluxo único. o influxo [refluxo?] entre as mulheres é um dos principais detonadores do movimento ...essa falta de um denominador comum. alinhamento de idéias e ideais. eu sinto assim

ETERNA ALIANÇA


Vamos fazer um pacto?
Você me enche de beijos,
eu te cubro de abraços.
E depois de tudo desfeito,
a gente refaz o trato.
E se não tiver mais jeito,
eu te cubro outra vez de beijos,
você me enche novamente de abraços.

Otto Leopoldo Winck

POEMA HERÉTICO


"Como todo iconoclasta,destrocei meus ídolos para consagrar-me a seus restos."
- Cioran, in Silogismos da Amargura
no instante do Kyrie Eléison
o sacerdote interrompeu a missa solene
despiu-se dos paramentos litúrgicos
e começou a cantar Luar do Sertão
São Gonçalo do Amarante desceu do altar
puxou da viola e pôs-se a acompanhá-lo
as mulheres da Liga das Senhoras Católicas
respeitosamente dançaram
e trocaram o ósculo da paz com um grupo
de prostitutas que rezava em silêncio
no fundo da igreja
(as santas Maria do Egito e Margarida de Cortona
faziam parte do grupo
mas não foram reconhecidas pelas piedosas mulheres da Liga)
São Francisco de Assis encheu o templo de cães e pássaros
Santo Antônio falou de novo aos peixes
que o escutavam atentos e respiravam fora da água
sem qualquer dificuldade
os anjos arrebentaram os vitrais que os prendiam há séculos
e foram juntar-se aos moleques
que cagavam estrelas azuis sobre as margaridas brancas
do jardim da praça
Judas chamado o Traidor apareceu de chofre
libertou o Cristo da cruz deu-lhe roupas decentes
e disse não fazer o menor sentido manter crucificado
aquele que ressuscitou dos mortos
no momento da comunhão
houve farta distribuição de refrigerantes doces e chocolates


Júlio Saraiva , Luso Poemas 

TIRANDO AS COSTELETAS


– Ninguém tem o direto de renomear os sentimentos da gente. Porra, se você diz que é amor, é porque é amor!
– É que tem muito marmanjo por aí que usa essas palavras só pra encantar a mulherada carente. E olha que a mulherada está carente mesmo: só tem macho alfa besta no mercado – e ele riu, o homem de cavanhaque, provavelmente achando espirituoso o trocadilho "alfa besta". – Mas aí, o que foi que você aprontou dessa vez?
– Pisei na bola, porra. De novo.
– Que você pisou na bola eu sei. Senão você não ia me ligar me intimando pra tomar uma cerveja a esta hora e nesta noite fria.
Com efeito, a noite estava fria. Garoava e os pingos amarelavam ao passar por sobre os globos da iluminação pública. Lá fora um vira-lata focinhava um saco de lixo. Dentro, o dono do boteco já passava um pano sobre o balcão como que indicando que o expediente em breve estaria encerrado.
– Mas o que foi dessa vez? – tornou o homem de cavanhaque.
– Saí com outra e a Nise ficou sabendo...
– A outra postou um selfie no Face e a Nise ficou puta.
– Não. A Nise perguntou e eu, numa crise de sinceridade, contei.
– Cara, se você quer ser garanhão e afirmar sua virilidade afetada pelo passar dos anos não pode ser honesto.
– Mas ela sempre disse que me dava liberdade, que não estávamos presos...
– Conversa de mulher ciumenta quando volta do analista.
– E agora o que eu faço? – perguntou o de costeletas.
– Corta o pau e manda de presente pra Nise. Não vai ter prova de amor maior – e o homem de cavanhaque soltou uma gargalhada.
Depois de um minuto de silêncio, pediram a saideira. O dono do bar já baixava as portas de ferro.
– Será que dói muito? – perguntou, com um ar taciturno, o de costeletas.
– O quê?
– Cortar o pau.
– Acho melhor você arrancar primeiro essas costeletas... Estão muito bregas.


Otto Leopoldo Winck

O SONHO E A PALAVRA


Casa dos Omaguás
O SONHO E A PALAVRA

Durmo e sonho poesia. Acordo. Traduzo-a em prosa. Contra a vontade, induzido por um cotidiano prosaico; parece restar apenas um mero registro. Quando me lembro – o mais das vezes – preciso acordar à noite e correr para a caderneta e num upa anotar o poema ou frase, ou mesmo um sentimento noturno. Quase sempre perco tudo ou quase. Parece haver uma hora da noite em que os sentimentos, palavras, ações, saem de sua fragmentação caótica e fazem um sentido – outro, diverso da prosa, que brutaliza a linguagem com sua razão estúpida. A poesia acontece de um certo jeito, parece atabalhoado, surreal e pura, palavra de fonte, talvez de um inconsciente fundo, origem de todos os princípios. A palavra vem límpida, parece de uma raiz primal, e amplia-se, rizomática, lapidar, arborescente. E esblandece como um sol interno. Vira música.
Agora todas as partes do ser estão religadas pela palavra. E eu posso me transformar em Eu. Falta agora o outro para a poesia acontecer na sua mais alta voz, como um sonho do mistério.

Hamilton Faria, junho 2014

Saramago


Dicas de como se dar bem na vida:

Otto Leopoldo Winck



Não mistures bebidas. Dá ressaca. Não mistures sentimentos. Dá ressentimento.
eu senti fome
de mundo
mas já era tarde
...
eu senti então
náusea do mundo
como se fosse sábado
e eu estivesse atrasada
pra me embriagar
e chorar e trepar com
o primeiro homem que
me olhasse com a mesma
raiva do mundo


Luciane Lopes
Pablo Villaça

Eduardo tinha dez anos de idade.

Eduardo tinha pais, irmãos e amigos.

Eduardo gostava de correr, de brincar, de ver televisão, de rir de desenho animado e de comer bobagem antes do almoço.

Eduardo queria ser bombeiro quando crescesse.

Mas Eduardo não vai crescer. Ele começou o dia criança e terminou cadáver. Tinha sonhos e agora é carne machucada e sem vida. Seus verbos agora são no passado.

Sonhou. Riu. Brincou. Viveu.

Eduardo foi executado por um policial militar no Morro do Alemão. Sua morte não foi o principal destaque dos portais e jornais. Quando foi noticiada, ele se transformou apenas em um "menino do Morro do Alemão", em uma estatística da violência.

Eduardo nasceu sem chances e sem chances morreu.

Talvez Eduardo tivesse medo do escuro. De monstros. De trovão. Talvez. Por outro lado, provavelmente tinha da polícia. E estava certo em ter. Se eu fosse pobre e morasse na favela, também teria - porque saberia que, para boa parte da sociedade e dos agentes da lei, eu não seria apenas uma criança; seria um criminoso à espera de meu primeiro crime.

Eduardo teve sua cabeça de criança destruída pela bala de um policial militar. E nos portais que noticiaram sua morte sem destaque, comentaristas agiram com escárnio e disseram que, se pudessem, ajudariam a polícia militar a matar 50 por dia. E gritam pela redução da maioridade penal em um país que já condena à morte crianças de dez anos.

Você está morto, Eduardo, e eu preciso ir ali abraçar meus filhos bem apertado enquanto penso na dor da sua mãe cujos braços vão para sempre sentir a falta do calor de seu corpinho de criança.


Desculpa esse mundo, Eduardo. Desculpa esse mundo.

AMOR E ONISCIÊNCIA


– Oi.
– Oi.
– Adorei aquele dia o sorvete com você – ela disse e ele reparou que ela estava linda.
– Eu também. Mas sobretudo a companhia.
– Oh, obrigada.
Riram. Timidamente. Todas as histórias de amor – reais ou fictícias – começam assim: com tímidos sorrisos. Se os apaixonados soubessem, não passariam disso. Depois vêm as dúvidas, os medos, os ciúmes, as brigas, as reconciliações dramáticas e, se o amor sobreviver a tudo isso, o longo e melancólico definhamento do tédio a dois.
– Bem, agora que eu entrei na sua história – ela prosseguiu, – qual é o próximo capítulo?
– O próximo capítulo? Não pensei ainda. Mas acho que é assim: eles se encontram dois dias depois no mesmo corredor do Bloco Amarelo. Aí ela diz que gostou muito do sorvete com ele e pergunta sobre o próximo capítulo.
– Acho que você está improvisando essa história...
– Às vezes o escritor sabe o que está escrevendo, outras vezes não. Como na vida, tem horas que é melhor seguir a intuição.
– E o que a sua intuição diz?
– Diz que ele deve convidar ela para um café agora.
– Aprovado. Está muito frio para um sorvete hoje.
– Mas vamos lá no outro bloco que aqui tem muita gente conhecida...
Mais risos tímidos.
Ai, meu Deus, como é dura a vida de narrador... Narrador sabe tudo. Sabe que depois deste café inocente haverá um outro, menos inocente, e depois será uma cerveja, e numa noite mais fria ainda um vinho tinto e doce (porque ela só toma vinho doce). E haverá um cinema, uma peça de teatro, o lançamento de um livro, longas horas de conversa nas redes sociais madrugada adentro, e um hotel no centro da cidade, e dúvidas, e medos, e ciúmes, e brigas, e reconciliações dramáticas e, se o amor sobreviver a tudo isso, o longo e melancólico definhamento do tédio compartido. Ou então – por que não? – haverá um rompimento. E eles ficarão anos sem se ver. Então um belo dia eles se cruzam numa festa, numa recepção, num encontro de trabalho. Eles estão separados (de outros, porque não casaram entre si), recasados e com filhos já grandes. Depois do reconhecimento, novamente a insegurança (“ela vai me achar velho”, “ele vai me achar gorda”), mas as conversa, movida a um excelente Bordeaux, evolui de insignificâncias (“fiz doutorado na França”, “meu marido é engenheiro”) a confissões (“nunca te esqueci”, “você foi o amor da minha vida”).
– Me lembro de como você era distraído...
– Me lembro daquele sorvete...
– E daquele café...
– E de como você tinha medo na primeira noite em que nos amamos...
– E de como você estava linda...
– Agora está tudo caído.
– Que nada, você está ótima.
– Você também.
– Bondade sua.

Riram. Um riso tímido como antigamente. No entanto, nada acontece. Cada um volta para sua casa ou seu hotel. Trocam algumas mensagens. Depois perdem o contato novamente. O tempo de os dois serem felizes tinha passado. Fora naqueles dias de sorvete e café e o primeiro beijo e o primeiro suspiro de saudade.
Mas agora eles ainda estão no café. O tempo não transcorreu ainda. E eles não sabem de nada do que vai acontecer. Não sabem das dúvidas, dos medos, dos ciúmes, das lágrimas roladas no travesseiro à noite, das reconciliações dramáticas e do rompimento final. Não sabem também do reencontro vinte anos depois. Não sabem da dor imensa que vão sentir, depois desse reencontro, ao voltarem para os seus quartos sozinhos e constatarem que o tempo de serem felizes passou e eles o desperdiçaram por causa de um orgulho besta. Não, não sabem de nada. E é bom que não saibam. Deixemo-los então tomando um café expresso e trocando tolos sorrisos. Às vezes a felicidade é só um sorriso tolo.
Ai, como é dura a vida de um narrador onisciente!


Otto Leopoldo Winck
Otto Leopoldo Winck


Quando ele tinha dois anos tentaram matá-lo porque algo dizia que ele seria perigoso. Finalmente, aos 33, conseguiram pegá-lo e o mataram lentamente pendurado numa cruz, ao lado de outros dois vagabundos. Seu crime? Desafiar os poderes vigentes, andar com mulheres da má fama, não cumprir as prescrições religiosas e pregar o amor e a tolerância. Se você é a favor da redução da maioridade penal e não se importa que garotos como Eduardo sejam mortos todos os dias na Palestina, no Iêmen ou no Morro do Alemão, você não está com as mãos limpas para celebrar esta Páscoa.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Bárbara Lia


Personagens dos meus romances inéditos tramam uma rebelião. Cansaram de ficar na gaveta. Sem ar, sem outros olhos a vasculhar suas almas e cenas. Estas meninas de nomes leves com vidas duras e pesadas. Aurora, Diana, Brisa, Beatriz... Presas dentro de narrativas, caminhos que passam pela noite, sempre. A noite é meu signo, e a solidão a casa onde hospedo esta gente. Quando termino um livro e coloco um final feliz, depois eu volto e desmonto o cenário. Tiro o amor do amor, alguém morre, alguém viaja, alguém desaparece... Acho piegas final feliz qual daqueles livros - Sabrina - Julia. Aqueles livros onde a mulher só existe para encontrar alguém. Como se não fosse um ser inteiro, como se fosse inferior e incompleta, sem o adendo - marido, homem, cavaleiro de armadura dourada ao lado. A mulher inteira é meu canto, só sei escrever interiores de pedra, mas, ao lado, sempre a leveza de flor que rompe - em vida - o árido. Uma mente liberta sabe que é possível ser livre e ser banhada na ternura quando está ao lado daquele. Aquele, o outro, o belo, o que remexe as estrias da alma. Aquele que embala em suave tecido o ser inteiro, quando os olhos cerram e a memória recupera, o não-príncipe, o não-dono, o outro... Talhado para cruzar – ao seu lado - pântanos e nuvens... O homem-poema.

Noon

Poetas gozam
Cenas açucenas
Lençol de Kandinsky
Que cobre
O sangue coagulado
Da humanidade ferida
A esconder a realidade
Que rasga suas almas
De madressilvas
Bárbara Lia

Noon (21 gramas/2010)
Bárbara Lia
Bárbara Lia


Encontrei um conto incompleto, escrito à lápis, em um dos dois últimos exemplares do livro - A última chuva. Encontrei poemas esquecidos, amores mofados, uma espécie de relíquia invisível, pois há um pedaço do meu interior em cada fragmento. Muito bom rever todos os meus escritos. Encontrar poemas esquecidos, contos inconclusos, romances inéditos, duas décadas de palavras, aferrar-me à estes "filhos antigos" como quem reencontra o - perdido. Ao som dos pássaros, que vieram para este novo endereço. Temia não acordar com suas melodias, mas, o bem-te-vi está aqui, para dizer - o que é bom nos segue: pássaros, asas, filhos, toda poesia... Que seja recomeço e ressurreição... Que seja esta claridade de céu e esta aura e este ar... Respirar!

Cantos de Contar

Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.
É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.
Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.

Alberto da Cunha Melo


em “Cantos de Contar”. Recife: Paés, 2012, p. 30

quinta-feira, 2 de abril de 2015

HIATO

João Nery Pestana

para cessar a lonjura
abrirei em mim
novo caminho
por onde correrá
teu corpo-rio
numa leveza de gozo
então
meu rosto reversivo
se guardará em ti
como se soubesse

dos ritos da sede.