sexta-feira, 31 de julho de 2015

Classificados


Estou procurando apartamento novo. A família cresceu, precisamos de mais um quarto, e os corretores me enviam listas e mais listas de imóveis vazios. Aliás, falei em apartamento novo, mas só me agradam os mais velhos, aqui mesmo, no Centro. São muitos, e tenho me lançado a uma rotina labiríntica de visitações, saindo de um imóvel para cair em outro, exatamente como naquele verso de Silvina Ocampo: “com a beleza e o horror como guias”.

Mas o que procurar num apartamento vazio? Luz, vista, horizonte. Primeiro olhamos pela janela da sala, avaliando a vizinhança. A proximidade das outras janelas, o destino dos terrenos ao redor. Ali, um casarão antigo. É ruim: logo seus habitantes estarão mortos, e tudo vai virar comida de escavadeira. Mais adiante, um estacionamento. É bom: talvez ele não se torne um prédio nos próximos dez anos, me roubando a vista da Serra do Mar.

Sim, somos proprietários das vistas. Donos do contorno azul da Mata Atlântica e de cada onça a se extinguir naquelas montanhas. Todos os dias nos furtam um trecho da paisagem, uma muda de manacá, um filhote de graxaim. Mas não, não há delegacia que registre queixas dessa natureza.
E o sol? Nunca pensamos tanto nele como quando estamos comprando um apartamento. Olhamos para o leste, feito astrônomos experientes, marujos de cinema, e vamos desenhando com o indicador, no céu, o arco a ser percorrido pelo astro-rei até sua tumba no oeste. Calculamos o quanto de sombra teremos na área de serviço, antevendo um futuro infeliz entre os fungos. Porque temos direito ao sol e à face norte. Em Curitiba, a face norte é um sonho. O sol é o ouro dos curitibanos. Se fôssemos místicos imaginativos, nosso paraíso seria um garimpo no firmamento, quente e dourado.

Depois checamos os cômodos, um a um, tentando priorizar questões práticas de engenharia, e não a qualidade das vidas que se levaram por lá, desde meados do século 20, ou o cadáver das dinastias que se formaram e perderam em cada cama. Mas nos desviamos. Alguém escolheu, para esta cozinha mofada, estes azulejos com frutas tropicais. E aquele papel de parede estampado de arabescos, alguém o achou bonito um dia, e quem sabe o tenha elogiado em voz alta. Pois é, estas paredes, que já tiveram ouvidos, hoje têm apenas memórias. Dormem, suam, e talvez sonhem.

Nos armários, encontramos coleções inteiras de objetos esquecidos. Sobreviveram a quem os comprou (quase tudo que compramos sobreviverá a nós). Um cinzeiro de vidro azul. Chaves cujas fechaduras deixaram de existir. Um skate no closet de uma senhora falecida. O adesivo de um finado candidato a vereador numa lasca de espelho. E os vinis de bolero de um homem que, agora, mora num caixão, assim como a música de seus mortos jaz num caixote.

Livros, no entanto, são difíceis de achar. No bidê desta suíte, o umbral das leituras, um volume de Chico Xavier vai amarelando. Detonado, ele espera por uma justa, mas improvável reencadernação.

Apartamento após apartamento, é a mesma sucessão de paredes nuas, sulcadas pelo delta de mil infiltrações. E às vezes, nesta quilométrica galeria de abandonos, nos surge um quadro renegado, uma empoeirada Santa Ceia. Você se aproxima dela e vê, pendurada no dedo de Tomé, dançando com a brisa, a pele vazia de uma aranha-marrom.


Num rodapé ali perto, você sabe, aquela aranha está viva, em obras, dormindo, talvez sonhando, ou sendo sonhada. E, por um segundo, estudando aquela casca oca, translúcida e quase imóvel, você fantasia ter finalmente descoberto o seu novo endereço, a beleza e o horror reformados. Um lugar perfeito onde estocar o veneno para os seus últimos dias.


LUIS HENRIQUE PELLANDA

lhpellanda@gmail.com

Gazeta do Povo. 28/07/2015  

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