terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cropopoesia

por que é o mesmo o pudor de escrever e defecar?

(joão cabral de melo neto)




quem gosta de poesia “visceral”,

ou seja, porca, preguiçosa, lerda,

que vá ao fundo e seja literal,

pedindo ao poeta, em vez de poemas, merda.

(antonio cicero)




o ânus é sempre o terror e eu não aceito que alguém perca um pedaço de excremento sem dilacerar-se por estar perdendo também a alma.

(antonin artaud)




para glauco mattoso.




Quero escrever

um poema

a partir da incontinência

de escrever

o poema

(triunfante

como uma cagada),

da imundície

de escrever

o poema.




mais que ruim,

poema fétido:

minha camisa aberta,

a peixaria das axilas,

a alegria gratuita




e irresponsável

de escrever

meu nome

nas coisas,

inda que sujando,

com uma fuzilaria

de engulhos.

que, se jogado fora,

não faça falta no

curso geral do dia

nem, de desimportante,

pese em algum

sistema de erros.

mas sobrevenha

num esquema de porcarias,

misturado a meu mijo

e meus pentelhos.




que feda,

que some aos meus

olhos de esgoto

e flua,

mais que um tietê de bolso,

fluente como diarreia.

(o idioma




da merda, seu fedor,

é direto como um murro,

mais sincero e universal

que o olor das flores.)




que este poema

não aperte os olhos

de um míope,

ou levante os óculos

na testa do comentarista.

que, a contrapelo,

lhes entorte a pose,

a um só tempo

com náuseas

e dores de barriga.




que não seja uma canção,

de tão irregular,

nem, de tão pastoso,

geométrico.

sórdido, cínico, laxativo,

mas infinitamente sincero,

que seja




pegajoso como esterco novo,




sob o assédio do sol




e dos vermes.

quero escrever

um poema

a partir da necessidade

fisiológica

de escrever

o poema.

ele será péssimo, mas

terá serventia,

mesmo infensa:

poema pelo prazer

de jogá-lo fora

(e emporcalhar a cidade)

em limpa consciência.




ou a poesia que há

em não dar descarga,

em não lavar as mãos,




digno do imundo




banheiro público.

poema infecto,

câncer de língua,

lixo literário,

febre do amoníaco,

vala aberta na página,

que vou querer

(menos que não quero) suprimir

do livro,

da memória,

da história

de meu corpo.

mas que, antes,

será motivo de vanglória,

quando o mostrar

ao amigo

como quem exibe no vaso

o design inusitado

da própria bosta.




(quem lhe negará ser

húmus possível

da boa poesia,

perfumosa como o milho?




a stink of beauty




is a joy forever.)




poema abjeto,




que cause urticária

nos querubins,

ânsias de vômito

nas musas,

inesquecível de ruim,

pior




que um gole




de água sanitária.




o menos que se diga,

em flatos barulhentos

(como quem afina




um trompete),

é que é ruim, ruim

de dar nojo, de dar gosto,

entre babas de diarremia,

à liquidez da anemia,

escrito na língua

da impureza,

pra que ninguém

o entenda

senão como um nauseante




e pedestre

acerto.




ou vaso a céu aberto,




coprolatria,

muito além de poema:

a latrina feita templo,

guirlandada com

papel higiênico,

sob anjos feios como urubus.

deus (como todo deus, de dentro)

será um fedor insistente,

será filho de meu cu.




e quando eu excretar

esta obra-crime

(agora mesmo),

aureolado de moscas,

me vaie como quem

me eleva,

que eu sairei andando

com a naturalidade

de quem caga e anda,

de quem assina com a tinta




de sua própria merda.


Rodrigo Madeira
po&Teias

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