segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Sentia apertar o sapato, então parou na janela para esconder a meia que cobria o tornozelo. Antes de tirar pensou na existência humana, já que o simbolismo era notório em seu léxico causal. Tornou a volver os olhos sobre si mesma e pensou o porque sofrera tanto a palmatória dos outros, meninos. Alojaria em si tamanha incongruência? Pensaria em gerar no útero a criatura monoaureolada especulada nas fábulas modernas? Tinha auto-compaixão e pensou em não cometer o suicídio, mas ficar em casa para ligar para alguém de sua lista de contatos esotéricos:

-Olá Márcia, está em casa? Gostaria de trocar as figurinhas de sempre. Tem tempo pra mim? Estou me sentindo mal, enjoada. E não estou grávida. Sou eu, a Helena, lembra? Dos tempos de cinema e literatura nas sessões de psicoterapia. Sinto que estou tendo uma recaída. Olho para as paredes e vejo aranhas imensas, como garras demoníacas em odor masculino e homores fétidos e putrefatos. Gostaria que me explicasse como faço para livrar-me a mim e o meu filho - que ainda não tinha - dessas terríveis visões.

- Helena querida, comprei um sapato que estava na feira. Saiu o preço da sacola. Eu tinha que levar o presente para mamãe, então tornei e fugir de mim mesma. Agora estou longe e não entendo como levar o presente para a mamãe. Acho que amanhã ela vai estar em casa e posso conversar. O que acha disso?

-Márcia, você não prestou atenção a meus vaticínios. Acho que estamos entrando em uma nova fase lunar não descrita no calendário. A camisa que uso me aperta e não consigo fugir dela como um vestuário que me foi imposto, masculino, contra o assédio dos homens. Gostaria que me contasse o que devo, fazer um retrato fiel de suas idas na feira não me revela algo de novo sobre mim mesma. O que acha que tenho?

-Helena, já falamos milhares de vezes sobre isso. Sabe que tem que conseguir um namorado. Sair mais de casa e conhecer pessoas interessantes. Anda muito contida em si mesma e não presta atenção no cenário que se arma à sua volta. Amiga, tenho muito o que fazer, por isso não conseguirei fazer com que reflita.

-Márcia, somos só eu e você, como sempre, excluindo você. Então penso que estou sozinha.

-Helena esse é o destino. Chamo pelo seu nome várias vezes porque acho que dá pessoalidade. Se não quer ouvir o que tenho a dizer, vou desligar. Sabe que já falamos sobre esse assunto.

-Gostaria de ter essa sua força. Dentro de mim um turbilhão de idéias, como gotas de mim sendo persuadidas a frasear ininterruptamente sobre a situação dos seus namorados. Estava fugindo dessa opressão e encontrei a confusão do espírito.

-Infortunada me encontro. Vitimada pelo próprio cabelo! Gostaria de me encontrar a sós comigo mesma e estou rodeada de víboras ininteligentes. Que os céus e a terra recolham esse sofrimento na masmorra do pensamento que não se embasa na verdade das palavras, mas no horizonte da alma. Tenho em mim mais do que certeza de o dia findará a dor como anestesia da significação da minha dor. Não vejo mal em sofrer a dor dos anjos pois esses se compadecem da humanidade, ao contrário das serpentes egoístas que me rodeiam. Seu mais aflito gesto de amizade apenas me faz entender o quanto estou só diante destas visões macabras que se travestem em presença e me atormentam os sonhos de beleza.

-Sua continuidade faz eu refletir sobre o cabelo, Helena, tenho que cortar amanhã. Quer ir comigo. Podemos passar no médico.

Sobressaíndo a conversa das duas amigas em colóquio aviltado se transformam as luzes da noite em holofotes do pensamento. Curitiba se torna uma mazela de sofrimento psíquico envolto em possibilidade de carnificina interior. Ter a presença dos entes queridos no enterro é a vontade de esclarecer a angústia acerca da possibilidade da cura. Por demais sofremos neste mundo e por demais as amigas se atormentam com a confusão do espírito que corrobora o assédio dessas forças.
Anderson Carlos Maciel

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