Aguardado na Flip de 2011, o angolano Valter Hugo Mãe fala sobre o premiado romance O Remorso de Baltazar Serapião, lançado no Brasil e comparado a um ”tsunami” literário
Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo
E os sismógrafos não registraram nada?, quis saber José Saramago (1922-2010) quando, em outubro de 2007, descobriu que O Remorso de Baltazar Serapião, romance então agraciado com o prêmio que leva seu nome, estava à venda desde março do ano anterior. Só semanas antes da premiação o escritor havia lido a obra do angolano Valter Hugo Mãe e sentido o impacto daquele “tsunami linguístico, semântico e sintático”.
Hoje devidamente reconhecido em Portugal, Valter Hugo Mãe já esteve cinco vezes no Brasil sem que os sismógrafos literários dessem sinal de abalo. A visita mais recente, em 2008, foi como convidado de uma feira literária em Brasília, mas sem nenhum livro lançado por aqui; das outras vezes veio em nome da extinta Quasi Edições, que publicou no além-mar Ferreira Gullar e Caetano Veloso, entre outros. O próximo desembarque será diferente. Confirmado para a 9.ª Flip, o autor chegará ao público já com seus dois mais elogiados romances lançados por aqui. O Remorso de Baltazar Serapião está previsto para os próximos dias pela Editora 34 (leia texto abaixo), e A Máquina de Fazer Espanhóis, que arrebatou a crítica portuguesa no ano passado, foi comprado pela Cosac Naify, que pretende publicá-lo a tempo da festa literária, em agosto.
Dono de uma narrativa desconcertante – a começar pela grafia, toda em letras minúsculas, o que vale inclusive para o modo como assina o próprio nome -, o autor de 39 anos se diz entusiasmado por voltar à terra onde fica “como menino sonhando com água de coco e queijo coalho”. Veja, a seguir, trechos da entrevista que concedeu por e-mail ao Sabático.
Em O Remorso de Baltazar Serapião, você coloca o amor desse personagem em contraponto às violências que ele comete contra a mulher que ama – e ela não faz mais que cumprir seu papel na sociedade. Nesse sentido, embora transcorra num tempo medieval, a história não poderia se passar nos dias atuais?
Sim. O livro é uma ostentação de estigmas sociais que sobrevivem até hoje. Lutamos ainda para que a dignificação deixe de ser um problema de gênero, mas a cultura continua a exigir do homem uma predominância que atira as mulheres para um poder quase sempre apenas sensual e muito objetificado. O baltazar serapião julga fazer tudo pelo bem, instigado por uma mentalidade que parece reclamar dele uma intervenção sempre impiedosa. Como advogado, defendi quase só mulheres em processo de divórcio cujas vidas poderiam ultrapassar no horror a vida da bela ermesinda do meu livro. Não poderei nunca esquecer essas conversas e o desespero dessas mulheres com idade para serem minhas mães e absolutamente perdidas num preconceito social que não as protege e permite ao homem toda a devassidão e agressividade.
A desconfiança por uma traição feminina nunca confirmada, como a que atormenta Baltazar Serapião, é tema de Dom Casmurro, que causa discussão entre leitores mais de um século depois. Consegue imaginar efeito similar numa história de traição do homem?
Claro que não. A sociedade quase espera do homem essa traição, de uma mulher nunca. A mulher traidora é corrompida pelo mal, o homem traidor pode ser um herói, o galã sedutor que não faz mais que exercer com esplendor a solicitação do seu código hormonal. Interessa muito, em termos simbólicos, que a desconfiança acerca da traição da mulher nunca seja comprovada ou justificada, porque o tempo ainda não se redimiu da história das mulheres. A história ainda não conseguiu desculpar-se e, nesse sentido, aquilo por que as mulheres passaram e passam continua a ser assente no disparate e no abuso revoltante do poder por parte do homem. As mulheres são, de algum modo, um ser humano para o futuro, porque o passado e o presente não lhes pertenceram e não pertencem.
Como foi recriar, ou inventar, a linguagem arcaica do livro? Fez algum tipo de pesquisa ou foi um exercício de imaginação?
Sou fascinado por deixar a imaginação decidir quase tudo, mesmo correndo riscos. Gosto de trabalhar a partir da minha quietude e da possibilidade de fabular. Não pesquisei, só estive atento para não usar algo descabido. Com a linguagem, no entanto, tudo pode caber se houver coerência e sentido estético. Claro que o sentido estético não pode abdicar do conteúdo. Importa ter algo a dizer, porque é fundamental que um romance, mesmo sendo ficção, contenha uma tese, um pensamento que provoque no leitor a necessidade de decidir algo, de concordar ou discordar de um tema maior.
A relação entre sagrado e profano também é central no romance. São características indissociáveis do homem?
Estou sem convicções na transcendência, mas a questão espiritual me acompanha. Somos votados a uma sacralização de nós mesmos, ainda que sem deus. É importante que vejamos o homem, o planeta, a vida, como algo de dimensão interior, urgente de respeitar e apaziguar. Meus livros têm a ansiedade perante o respeito e a dignificação das coisas relevantes, do que pode produzir felicidade. Como não acredito na felicidade após a morte, gosto de pensar na criação de uma espiritualidade diferente, que seja feita de acreditarmos em nós, e uns nos outros, em vez de num deus inventado.
Você diz que o uso de minúsculas cria uma aceleração na leitura que lhe interessa. A leitura mais lenta não pode, por vezes, permitir ao leitor a percepção de mais significados?
Sim, concordo que a lentidão pode fornecer esse tempo de reflexão, mas tenho urticária a coisas chatas, textos, filmes, conversas que não progridem logo e ficam ritmadas. Talvez meus livros revelem essa impaciência. Sou até um indivíduo contemplativo, mas em pouco tempo de contemplação posso já ter ficado impressionado, comovido, chorado litros de lágrimas e mudado minha vida. Não fico nunca parado muito tempo. Meus livros têm todos um sentido de urgência, quer porque sempre ando ocupado com assuntos que me agridem e sobre os quais quero pensar melhor, quer por essa vontade de envolver logo o leitor e o fazer correr dentro da história sem travão.
Como editor da Quasi Edições, você ajudou a levar ao público português autores brasileiros como Caetano Veloso e Ferreira Gullar. Quais chamam a sua atenção hoje?
Tenho estado a ler Rubem Fonseca, que é maravilhoso. Tem de haver uma onda Rubem Fonseca por todo o mundo porque adoro o modo, como vocês dizem, desenrolado e inteligente de ele dizer as coisas. Gosto do humor dele. Faça o favor de dizer no Brasil que estou apaixonado por ele. E minhas paixões brasileiras não ficam por aí. Tem sido importante a edição em Portugal dos livros do Chico Buarque, que os portugueses amam por inteiro desde sempre. Fiquei contente com o sucesso de Leite Derramado. Fico contente que ele assuma seu lugar de grande escritor, porque foi sempre um escritor genial que tinha de gastar mais tempo com os textos para eles virarem romances. E Marcelino Freire, gosto muito, Nelson Rodrigues, gosto muito, Marcelo Mirisola diverte-me muito (maravilhosa cabeça suja), Evandro Affonso Ferreira, muito exuberante, gosto muito, Bernardo Carvalho e Rubens Figueiredo, gosto muito.
Você já definiu seu livro A Máquina de Fazer Espanhóis, que também sai no Brasil este ano, como um “exercício de justificação para a vida depois de uma perda desta dimensão”. Como foi escrever sobre sensações da terceira idade estando tão longe dela?
Perdi meu pai e fui imaginação adentro buscando o que sobrava dele na minha vida. Foi assim. Procurei bem na minha imaginação como seria um homem de 84 anos e encontrei muitas possibilidades. Os leitores disseram que entendi. Chorei em sessões com o público porque é milagroso que pessoas com 80 ou 90 anos me digam que sou um deles, que estou entre eles como igual. Consegui, de alguma forma, conviver com a terceira idade de um homem que poderia ter sido o meu pai. Só não foi porque ele morreu antes de deixar de ser novo.
Fonte : O Estado de São Paulo.220111
Nenhum comentário:
Postar um comentário