Breves Considerações Acerca dos Açorianos
Marcelo Backes
Tenho tudo a perder, nada tenho a ganhar a não ser minha liberdade de dizer não. Fui eu que não recomendei a publicação de Como se moesse ferro de Altair Martins pela Editora Mercado Aberto. Depois disso, o autor lançou seu livro “cooperativamente” pela WS Editores e alcançou a glória de ser indicado à finalíssima da Categoria Contos do Prêmio Açorianos de 2000. É fato. Publicada no início do ano 2000, a coletânea de contos causou histeria na província e fez do autor um meteoro nos céus da literatura sul-rio-grandense. Charles Kiefer chegou a dizer que “Humano”, o mais bem-acabado dos contos do livro, é um dos três melhores da literatura gaúcha de todos os tempos.
O livro é mediano, vá lá. Ao já referido “Humano” eu inclusive – inclusive eu – alcanço adjetivos de muito bom com algum esforço. Mas tem algumas imperfeições e excessos e não pode, portanto, estar entre os três melhores da literatura gaúcha. “El espectro del sex appeal” e “Como se moesse ferro”, o conto que dá título à coletânea, chegam a ser bons, mas os restantes não passam de medíocres. Como obra, a coletânea se evidencia um ramo torto do realismo mágico, viciada de verborragia até a medula.
Se tem a virtude de tentar fazer algo psicológica e lingüisticamente novo na província, fugindo à temática histórica e alicerçada no enredo que caracteriza a literatura do Rio Grande Sul, Altair Martins está longe de ter alcançado êxito na empreitada. Esta é, inclusive, uma limitação que tem a ver com idade e obra, à qual poucos conseguem fugir. Não fosse a histeria tão grande, aliás, e eu me calaria. Afinal de contas, Como se moesse ferro é o primeiro livro do autor. Sendo como é, no entanto, algumas coisas tem de ser ditas para o bem do critério nas letras rio-grandenses.
Veja-se o conto “Humano”, por exemplo. Ele é bom mas não pode estar entre os três melhores da literatura gaúcha. E nem estou falando da dezena de contos de Sérgio Faraco melhores do que ele, do Negro Bonifácio de Simões Lopes Neto, de alguns contos de Dyonélio Machado; também não estou pensando em Aldyr Garcia Schlee e Moacyr Scliar – que nem sequer comparecem à lista kieferiana –, nem citarei contos de Lourenço Cazarré, Fernando Neubarth, Cíntia Moscovich e Amílcar Bettega Barbosa – para mencionar apenas alguns –, que tem contos melhores do que o “Humano” do Altair. Na mesma intenção, nem penso em citar os gaúchos que publicam sua obra fora daqui, como Fausto Wolff e Flávio Moreira da Costa, para contestar o julgamento de Kiefer. Quanto ao próprio Kiefer, contista premiado, eu me furto de lembrar seu nome, uma vez que ele próprio se auto-exclui da nata.
Fato é que “Humano”, de per si e tão-só pelo jeito que inicia, deveria ser sumariamente eliminado de qualquer lista tão sumária. Ora, principiar um conto repetindo três vezes o mesmo parágrafo – o que ademais sintetiza o excesso sengraçante do livro –, para em seguida declará-lo ruim numa piada auto-referente é pra matar. Se o que se vê depois supera o bom, ainda se vê excesso dispersivo. Eu sou daqueles que afirmam que frases curtas podem ser, muitas vezes, veículos de idéias curtas, mas isso não me leva a aprovar frases inteiras sem sentido, que não fedem nem cheiram para o enredo de um conto e muito menos para a história da literatura gaúcha. Falo de construções como: “Pois que naquela noite quente ele sentiu-se tão humano quanto a casca do fruto do limoeiro”. Tá, e daí? Depois disso, e ainda no mesmo conto, há imperfeições miúdas como a inversão de “já” e “até” na frase: “E enfim, vendo-o, ela já até gostava daquela dorzinha miúda”. Ora, invirta-se o “já” e o “até” e se verá como a frase adquire mais força e ritmo! Há outros excessos, mas há também frases de talhe esbelto, como “não cobriu a ferida da mulher com seus olhos pretos”. Mas ser um dos três melhores, barbaridade...
Mesmo no premiado conto “Como se moesse ferro” há excessos, redundâncias nefastas, metáforas pueris, humor sengraçante e pelanca poética por toda parte. Ou alguém vai dizer que a frase “Saíram da igreja em uma nuvem de feijões, porque o homem que batia ferro não gostava de arroz” é um achado inteligente, de humor adulto?! E na metáfora “o esmeril de sua pesada manápula”, então... Quem se atreve a declarar que o adjetivo não matou boa dose da poesia numa redundância tola! E o final do conto? Aquela brincadeira é uma facada no próprio ventre. No mais, as aliterações nauseabundamente excessivas estão longe de ser poéticas, e eu me furto do exemplo pela falta do espaço.
Nos outros contos há trocadilhos bobos como aquele que se refere a João Abelardo, o “Chefe de família” – um conto aliás previsível. Ora: “Caminha até com moderação. Embora falasse, não saberia como moderar um só verbo”. Isso chega a ser pueril! Por vezes, Altair destrói seus achados na prática do excesso, na verborragia, na gordura engordurada da poesia em prosa, ele diria. Uma frase como “João Abelardo poderia ser outro homem, sem pedras nos rins” seria boa, não viesse acompanhada do excesso repetitivo de “sem pedras nos rins, sem pedras no sapato, sem pedras no sofá e na cama da casa”.
Nos demais contos, que vão no meio-campo da obra, vê-se a ruindade daquilo que chamei de ramo torto do realismo mágico. São aglomerados de sensações sem sentido, às quais se arranca qualquer senso de realidade sem lhes dar um subsolo consistente de mito ou de psicologia. São amontoados de palavras altissonantes, coloridas a força, sem função em si e no contexto. De exemplo: “A roupa era sempre a mesma, de um branco que, com o tempo, passou a ser branco luminoso e perturbador. Era como se ele esperasse, calmo e seguro de si, uma hora sem hora marcada, que viria, sem cor ou branca”.
Voltando ao Prêmio Açorianos do princípio, é impressionante o número de livros que a WS Editores pôs na Final do Prêmio, derrubando editoras tradicionais como L&PM e Mercado Aberto. Nas categorias Conto e Narrativa Longa, três dos quatro finalistas foram editados pela WS e um pela Editora da Universidade.
Eu sou claro e direto, caro leitor, e nunca escondo as cartas da intenção na manga da situação. Por isso sou obrigado a dizer que a brasa da Mercado Aberto queimou sob meu assado em 1999. Mas que fede de estranho o fato de O dia em que o papa foi a Melo de Aldyr Schlee não ter aparecido na finalíssima da Categoria Contos, bem como o fato de Viagem aos Mares do Sul, de José Carlos Queiroga, não ter figurado na finalíssima da Categoria Narrativa Longa, ah, isso fede! A ausência do livro de Schlee – grande contista, miseravelmente esquecido por Kiefer em sua lista “entendida” –, imagino que tenha sido pelo fato mui significativo de ter apenas dez por quinze (em qualidade e unidade a obra supera Como se moesse ferro do apostrofado Altair). Já na Categoria Narrativa Longa, dá vontade de calar a boca e descansar a pena. Agora que Viagem aos mares do sul foi deixado de lado, no entanto, sobra dizer que dois dos maiores romances da década nem chegaram a ser indicados para a final do mais afamado prêmio literário do Rio Grande do Sul. Falo do já referido romance de Queiroga e de Tratado da altura das estrelas de Sinval Medina. Menos mal que o último alcançou justiça com os muito mais palpáveis 100 mil de Passo Fundo. Queiroga, provavelmente, será lançado ao esquecimento. Com isso não estou questionando a autoridade de um dos eleitos na Categoria Narrativa Longa, só de outro. A torta de girassol de Rosângela de Mello é, este sim, um livro novidadeiro, sobremaneira interessante e merece estar na final. Mas Lâmina Cega de Luís Dill é tão-somente um livrinho bom e até redondinho, como outras tantas e dezenas lançadas no Rio Grande.
Estou curioso para ver até onde vai a histeria na província. Vá lá saber, contudo, o que a eloquência de tantos louvores, capas e orelhas (tenho de dizer que a avaliação de Sergius Gonzaga na orelha do livro é equilibrada, faz reparos, é comedida e, de longe, a mais acertada que li até agora) pode alcançar. Mas isso é de direito e pode ser feito. A influência do “Clube do Livro”, mais uma vez unido para exalçar uma obra, que tem o agravante de nem ser grande coisa, tem de parar por aí. É definitivo: na busca coelhonetiana de produzir Rosa, a moagem do ferro deu pelanca poética.