sábado, 21 de janeiro de 2012

A Morte e o Beduíno

Não sou dos que veem no deserto um portal entre o céu e o homem, entre o inferno e o homem, embora ninguém duvide de que se trata do mais dramático e importante "teatro de religiões". A coisa me parece bem menos grandiosa; tenho fé em que seja bem mais simples e difícil e solitária: o deserto, imensa pátria baldia, é também um portal entre o homem e sua morte.



Seríamos deuses se não morrêssemos; não haveria necessidade de criá-los. (Recentemente, ouvi de Amós Oz algo de profunda exatidão inventada: Deus não acredita em religiões.) Atravessaríamos o deserto como quem vai entre árvores frutíferas e jasmineiros.

E se eu dissesse que o deserto é o mar que perdeu tudo, que perdeu rigorosamente tudo senão a fome feroz da existência, estaria falando apenas de um outro deserto que é a alma humana. E estamos sempre falando de um outro deserto que é a alma humana.

Por isso, paupérrimos, mesquinhos, os desertos são de tal maneira luxuriantes. Não existe espaço alegórico melhor, melhor geografia afetiva para nossa condição banal e extrema: quem pisa o deserto é de imediato um moribundo – não há quem pise o deserto sem que caminhe, coma, durma e ame à beira da morte, debaixo de um céu belíssimo e indiferente.

Digo isso tudo para dizer o contrário: mas, quando são sinônimos perfeitos imaginação e memória, tudo pode ser rápida e incoerentemente, como que por ventos contra-alísios, posto do avesso. Um exemplo, a fábula árabe que invento agora:



Tempo mítico, a areia emperrando o mecanismo do relógio, veio a Morte em missão ao deserto da Líbia. Buscava um certo beduíno, pouquíssimo visto, esquivo, reputado imortal pelos rumores. Por três anos e três noites (na medida arbitrária da eternidade), a Morte rastreou e farejou-o. Leu pegadas, deteve as caravanas, comeu carne de cobra e gafanhotos, bebeu água de cacto, cuspiu areia, espreitou semanas em oásis, chamou-o pelo nome...



As crianças tuaregues cantavam nas travessias



– a Morte te alcança

imortal beduíno

sob a luz da lua

sob o sol a pino –



os versículos de um arpoador de estrelas.





Jamais conseguiu alcançá-lo, nunca a menos de duas ou três horas de distância. Ainda assim, seu olhar agudo viu-lhe rebrilhando, quilômetros à frente nos gigantescos bancos arenosos, o alfanje prateado – de tão longe e perto, a Morte,

al-quebrada, às vezes tomou por vésper ou farol o brilho daquela lâmina.

A insolação por fim começou a enlouquecê-la. Dizem ainda que a areia é capaz de amontoar-se, frestas microscópicas adentro, na caixa craniana, na cava das órbitas, e parir um escorpião minúsculo que arruína a visão e ferroa o juízo. A Morte, derrotada, sentou-se nas areias, sorriu idiota contra a lua. Abandonou-se ali, agudamente viva, latejando. E hoje passa os dias, em pleno deserto, com modos ridículos de gaivota...



Se o desfecho das fábulas deve ser edificante, o vento prossegue edificando suas dunas (ou muros somente dos grãos dispersos de areia). E se fosse o nada, apenas ele, a moral da história?



***



Em tempo: suponho que o tal beduíno há muito já é morto; morte de outra qualidade, diga-se, debaixo do mesmo céu belíssimo e indiferente: arquetípica, encenada – um suicídio? de cujas minúcias e conclusão sabe-se apenas que não restam ossos.

Os mais exaltados, no entanto, juram que sempre fora e será o Vento. O vento vestido, sua carne mais fina que a cambraia mais fina. Túnica e turbante vazios flamulando no lombo de um cavalo.



Rodrigo Madeira




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