Mirante da morte
3
Meu amigo diz-me, às avessas do centenário do Poetinha, que
nenhum escritor e estudioso sério deve levar Vinicius de Moraes muito em conta.
Penso, com meu copo meio cheio e cobiçando duas moças que se beijam no lado de
fora do bar, o que eu tenho de seriedade pra ofertar.
*
1h59 e a noite de sábado não se recorda de mim: estou aqui,
solenemente só, pensando em você. Viver numa casa de habitante único é como ter
um relógio de pulso que não se rememora, encravado para sempre na mesma hora –
penso em como te mostrar, minha casa, a esta rainha africana de mãos agitadas e
delicadas. Com qual coração ela tocará suas fibras quando começar a chover
forte e o teto ameaçar desabar de sonhos?
*
Achei que a morte daria um bom tema de aula. Reli alguns
trechos de A Divina Comédia, conferi as estatísticas recentes de mortes
violentas na Vila Verde, revi alguns quadros do Salvador Dali, transpassei
minhas memórias e parti à sala, que, na verdade, é uma edícula que se traveste
de capela mortuária também. Inclusive, no fim de semana teve velório. Na
segunda-feira o chão estava vestido de líquidos que vazaram dos caixões e tinha
um cachorro decapitado na porta de entrada. Perguntei aos adolescentes de suas
primeiras lembranças. Um menino disse ser a morte do tio. Outra comentou o
atropelamento do cachorro. Um afirmou a morte da mãe, aos dois anos. Outra o
aborto de seu primeiro filho, aos 12 anos.
*
Poderia te contar de meu dia, meu amor, mas, ode à ausência,
por todos os lugares que percorri apenas deixei vestígios de quem inexistiu,
como um pássaro morto à luz do dia. Hoje não me pertenci e entreguei meu corpo
ao ato de quebrar, juntar e suturar-me calmamente em minhas melhores agulhas. Deixe-me
vestir seus óculos para enxergar-me ao menos uma vez na vida, conte-me de seu
passado até aquilo que você não fez, a nossa história é repleta de pequenos
assassinatos, impérios que caíram em ruas sem saída, mágoas que jantamos antes
das visitas chegarem e comentarem a nova mobília de nossos abraços.
*
Conheci a obra do paulistano Rafael Altério e estou
narcotizado numa canção chamada Quando o galo cantar, do álbum Santo de Casa.
Ouça, ouça, é incrível – ele anda com uma gente da estirpe de Jane Duboc,
Toninho Ferragucci, André Mehmari… A
grande canção deste trabalho é, sem dúvida, Dio Zambi, dele com Celso Viáfora,
que relata o processo semelhante à escravidão por qual passaram os imigrantes
italianos após a alforria dos negros no Brasil.
*
Não gostei do show do Lenine na Corrente Cultural, uma
barulheira eletrônica descomunal, atraso de quase uma hora, um anão contando
piadas ruins para entreter o público. Talvez seja um sintoma de velhice, mas
ando sem paciência com shows abertos, sem esferografia. É impossível ter
qualquer relação artística com a música quando mal se consegue ouvir o que o
sujeito canta. Entendo ser assim, entendo, mas não é pra mim. [Também preciso
urgentemente estudar mais sobre música para poder te escrever o que mais foi
mal neste show, estudar para traduzir tecnicamente o que foi evidente em meu
coração.]
*
Lembro-me de Verlaine e me lembro de você e me escoo neste
poema dele, que não lembro o nome e é mais ou menos assim:
Tenho muitas vezes este sonho estranho e penetrante
De uma mulher que amo e me ame
E que não é, de cada vez, nem completamente, a mesma
E me ama e me compreende
Seu nome? Lembro que é doce e sonoro
Como o dos seres amados que a vida exilou
Eu só queria que você estivesse aqui.
*
Talvez todo mundo saiba da bela crônica que Rubem Braga
escreveu sobre um ano da morte de Vinicius de Morais, em 1980. Chama-se Recado
de Primavera e também batiza a coletânea de 1984. Gosto mesmo desse livro, o
mais coeso de toda a trajetória braguiana. Tem uma história muito boa do
Poetinha:
O pombo
Vinícius de Moraes contava ter ouvido de uma sua tia-avó,
senhora idosa muito boazinha, que um dia ela estava na sala de jantar, em sua
casa do interior, quando um lindo pombo pousou na janela. A senhora foi se
aproximando devagar e conseguiu pegar a ave. Viu então que em uma das patas
havia um anel metálico onde estavam escritas umas coisas.
— Era um pombo-correio, titia. Pois é. Era muito bonitinho e
mansinho mesmo. Eu gosto muito de pombo.
— E o que foi que a senhora fez?
A senhora olhou Vinícius com ar de surpresa, como se a
pergunta lhe parecesse pueril:
— Comi, uai.
É bem como diz Braga, nós vamos ficando por aqui, vigiando
as ondas, o mar, os pássaros, lidando com nossas febres amorosas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário