domingo, 9 de agosto de 2015

O espelho



de camisa aberta
em frente a mim mesmo.

o espelho é a prisão profunda
de que somos vigias e presos,

condenados e carcereiros.
e no entanto o homem

é observado, triste alimária
de si mesmo. e no entanto

milhões de olhos o observam
atrás deste – de todos – os espelhos.

e no entanto (otnatne on e)
nada há de mais solitário

que o homem (povo estranho
e ninguém) num espelho.

2

nu, já vai
vestido
em pesada couraça
de nudez: imagem

linguagem
solidez permanente-
mente
líquida

apertar
a visão:
homem
inseto
árvore

num espelho
quantos
estilhaços
cabem?

3

o espelho de um narciso apóstata
reflete nos olhos suas costas.

o anonimato é a fundação
de meu espírito, arco árabe

de meu rosto. sou anônimo
como um cão vira-lata

condecorado com sarna, chagas,
laureado de moscas.

sou mais belo agora, cicatrizando
o tempo na carne a carne nas horas

do que quando fui belo bela criança
que se olhou no espelho de casa

como pássaro bebendo água (ingênuo
de imagem e essência) na poça.

superfície burra, sincera, óbvia,
ser é sermos é seres é: ?

4

o espelho, coisa mágica do vazio,
feito a arte, inventa volumes,

minha imagem é feita de carne
doce e arredia como perfume.

5

também reflito o espelho (eu, outro)
quando não há nada em sua frente.

o espelho, raso um bilhão de abismos,
fez-se a porta para a liberdade –

o espelho espelha a cidade,
o espelho raso como a página –


(vejo minhas vísceras no espelho)
infinito afora, além, por dentro

Rodrigo Madeira

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