deus cuida de tudo, dizia e ia perdendo os dentes
nos intervalos. quando criança, eu achava que sussurrando uma canção bonita a
gente podia falar com ele. a ausência é o modo mais eficaz que deus tem para
provar que não existe. toda noite volto trazendo uma sacolinha com filmes e
algum livro na mochila. fico lendo na cama, em voz alta, distraio a insônia.
peço uma pizza, não toco nela. folheio revistas. os livros comprados em sebos
dividem espaço com latas de suco e embalagens de comida pretensamente saudável
(é exceção a pizza). posso lavar a louça outra hora. lá fora, escuto o ônibus
madrugueiro. buzinas, para que não esqueçamos onde estamos. nunca sei se está
sendo uma noite difícil. onde os cachorros da vizinhança? cansaram seus uivos.
abro a janela. o ar é frio e no céu estão entediados anjos da guarda. vem
entrando a manhã. gatos miam nos becos, ninguém dá por eles. esses gatos que
ouvimos chorar de madrugada são a reencarnação de crianças mortas
prematuramente.
Luiz Felipe Leprevost
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