Leonarda Glück
Fim de ano tem um Q de flecha na barriga, de cuspe cuspido
pra cima, de sol em Curitiba, o tanto que fica eu não sei, mas eu sei do quanto
que vai. Fim de ano é mescla torta de pesadelo com esperança, boas novas e
velhas más, é a viagem corrida, as meias que esquecemos de pôr nas malas, as
com alça e as sem. Fim de ano tem gosto de fios de ovos, frutas e ideias
cristalizadas, nem todas doces, nem só de salmão vive o sashimi, nem só de
dentes vive a boca. Fim de ano é um feriado promíscuo tentando apaziguar a
linha quente do horizonte, onde o astro rei morre toda vez só de tentar nascer,
é tempo de chuva morna e fina malparada na língua, é tempo de baile noturno, de
sorvete verde, uvas chupadas e pulinhos mil nas águas revoltas do mar. É tempo
de trovoada e de dizer eu te amo no meio dos relâmpagos, a vela acesa, o cheiro
das árvores, a família embrutecida, a mesa posta e os sorrisos planejados. Fim
de ano tem cara de ritual vespertino, as marionetes que sangraram o ano
inteiro, o estofo que a gente perdeu na estrada junto com o brio, o pó, a
descida e a neve. Fim de ano é o começo dum outro, mais novo — um número a mais
—, um amigo a mais, um cavalo a mais para montar.
E é nesse cavalo novo, preto de fogo, que eu vou encaixar as
ancas para o meu furibundo trottoir!
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