sexta-feira, 4 de setembro de 2015

ESTRELAS E PROMESSAS


Otto Leopoldo Winck

Marília achou um artigo muito interessante no jornal. Enviou-o por email ao Dirceu: segundo Lacan, a culpa mais relevante e mais sofrida surgiria não por termos desobedecido a uma norma, mas por termos negligenciado nosso próprio desejo, por termos desistido de agir como queríamos.

Dirceu era casado, bem casado. Uma filha maravilhosa, já adolescente, notas altas na escola, responsável. Uma esposa maravilhosa, ainda bonita, independente, ganhando quase tanto quanto ele. Brigavam pouco e se davam relativamente bem na cama.

Marília era separada. Casara com o primeiro namorado: olhos claros, voz maviosa, promessas de felicidade... Ele a procurava uma vez por ano. Um dia ela descobriu uma camisinha no carro dele e se separaram. Teve outros homens, uns melhores (poucos), outros piores (muitos). Ultimamente estava envolvida com um taxista. Agarrara-o numa festa em que bebera além da conta. Encontravam-se uma vez por semana no apartamento dela, depois da meia-noite. Ele dava conta do recado e além disso era muito paciente para escutar as suas queixas. Nenhuma de suas amigas sabia desse relacionamento, óbvio.

Apresentados por amigos comuns, Marília e Dirceu começaram a se corresponder eletronicamente. Um encontro, dois cinemas, e passaram a dividir os lençóis dos motéis mais luxuosos e as mesas dos restaurantes mais caros da cidade. Uma rara afinidade os unia: gostavam das mesmas músicas, dos mesmos filmes, dos mesmos vinhos. Mas, por via das dúvidas, Marília não dispensou o taxista. Sincera, não escondia o fato de Dirceu. Afinal, não estava fácil arranjar homem e Dirceu era um homem casado.

A lua estava cheia, Dirceu viu pela janela do carro enquanto chegava em casa depois de mais um dia de reuniões nervosas e intermináveis na empresa. A temperatura, agradável. Olhou o celular: a bandida não ligou. Ora, ele também não ligaria: mulheres não gostam de homens fáceis. Ela devia estar com aquele motorista. Pensou em ligar para um amigo e convidar para uma cerveja.

– Aonde você vai, querido? – perguntou-lhe a esposa.

– Tomar uma cerveja com uns amigos.

– Se demorar, me liga.

– Não se preocupe.

O taxista não apareceu naquela noite – o carro não era dele e noite sim, noite não o patrão lhe exigia o plantão noturno. Marília não ligou para o Dirceu, afinal, ele tinha família e fazia tempo que o tratante não ligava ou escrevia. Mulher não pode dar mole.

Marília, então, depois de um longo banho, ligou a televisão e assistiu à novela. Depois, assistiu ao filme que passou depois da novela. Depois, ao jornal que passou depois do filme. Depois, a um outro filme. De meia em meia hora, espiava o computador e o celular para ver se não chegara uma mensagem nova. Uma amiga a convidava para sair, mas ela recusou: estava muito cansada. Lá fora a noite de verão esplendia cheia de estrelas e promessas.

A cerveja estava amarga. O amigo, um porre, se queixando da amante e elogiando a mulher – ou não seria o contrário? Dirceu só ouvia, às vezes fazia um comentário – não esquenta, mulher é tudo igual. Ele não era muito de se abrir, nem quando bêbado. Aí simplesmente achava a vida ridícula, e ele, um executivo de sucesso, um idiota. Mas não tinha jeito. A vida não apresentava outra saída. De meia em meia hora, ele olhava o celular: nada, nenhuma ligação ou mensagem dela. Só a esposa que lhe telefonou comunicando que ia passar a noite fora, na casa de uma amiga. Ele não se preocupasse, a filha também pernoitaria fora, numa colega da escola.

Depois de quase metade do segundo filme, Marília apanhou o telefone.
– Quero te ver – ela disse.

– Vou atender uma corrida. Já-já chego aí.

Marília transou como há muito tempo não fazia. O taxista até pensou: Meu Deus, está coroa está apaixonada! Se ela se casasse comigo...

Depois de inúmeras garrafas, Dirceu e seu amigo se separaram – este lançando impropérios contra a noite e as mulheres. Se voltasse para a casa agora, só um leito frio o aguardava. Circulou de carro pelas ruas desertas, enquanto a lua, visivelmente menor, se escondia entre os arranha-céus. Acabou ao lado de uma profissional, depois de uma insípida trepada.

Alguns dias depois a mulher, depois de muita tergiversação, veio com a notícia:
– Quero me separar. Apareceu outro homem, nos apaixonamos.

Marília não casou com o taxista. Ainda hoje se encontram semanalmente, sempre depois da meia noite, quando os porteiros parecem mais condescendentes com as aventuras dos condôminos. Nunca mais ligou ou mandou mensagem para o Dirceu. Nem ele. Olhando para o céu – estrelas e promessas –, ela sente um aperto no peito. Inúteis, as estrelas. Vazias, as promessas.

Depois de outro dia de reuniões nervosas e intermináveis, Dirceu está de novo no bar. Dessa vez, sozinho: o companheiro de noitadas há tempo se reconciliou com a esposa. Ou com a amante, não sabe bem ao certo. A lua está escandalosamente grande, ele percebe, olhando pela janela do estabelecimento. A temperatura, agradável. E ele, no quarto ou quinto uísque, adia o retorno à quitinete vazia. As pedras de gelo girando no copo, as espirais azuis da fumaça do cigarro... É, realmente, Lacan tinha razão.




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