Alceu Natali
Eu já nasci assustado, recapitulando fragmentos de sonhos
bizarros, com estigmas congênitos, sem a mínima noção de que um dia iria acabar
dando errado. Não pretendia ser o que Deus não queria que eu não fosse, nem
atinava para o que o simples fluir da vida escancara. E disse George que ela
segue fluindo dentro de mim e sem mim. E disse Lilian que, ao passar por mim,
ela fecundou-me com medo. Um elemento que quintessenciou meu espírito inseguro.
Eu tenho medo da água agitada do mar, da terra alheia com frutos para roubar,
do fogo da vela se apagar e do terror noturno que sufoca o ar. Por que abandonaram-me
por um velório à noite e sem nenhuma luz para guiar-me na escuridão habitada
por ventos uivantes? Num raro momento em que o temor descuidou-se de mim, eu
ceifei a visão que não pertencia-me e carreguei uma culpa que só dissipou-se
com outra. Por que no calor de uma festa de carnaval escolheram-me para ser
assombrado com uma máscara tão horrenda? O salto que todos nós estamos
condenados a dar da luz para o umbral, misteriosamente, levou embora de minhas
lembranças uma parte de minha maternidade. Um enigmático portal entre este e o
outro mundo levou-a daqui para sempre. Não espanta-me mais aquele prato de
comida espatifado contra o chão da cozinha, mas intriga-me, ainda, aquele
coelho branco enforcado na maçaneta da porta que frequentou minhas fantasias
tantas vezes. Eu corro atrás da vida. Corro para salvar uma vida em minha vida.
Mas é ela que leva-me e agarro-me ao primeiro tronco que flutua neste rio que
eu sei que vai desembocar no mar. Saio pelos afluentes, dou cabeçadas nas suas
margens e volto à correnteza mais forte sempre um pouco mais fraco. Olho-me no
espelho e vejo a morte pela primeira vez. Ela é companheira do meu pavor e
rouba-me tudo o que Deus desejava que eu fosse. O demônio oferece-me ajuda e os
anjos que sempre pressenti observam à distância. Vou morrer sossegado,
mergulhado na profusão de meus sonhos preciosos, mas com a marca do
arrependimento, com a nítida impressão de que tudo o que fiz de errado não pode
mais ser consertado. Pretendo ser tudo aquilo que satanás disse-me não ser proibido,
dando mais atenção à imobilidade das trevas. E disse John que minha vida foi
tudo aquilo que passou enquanto eu fazia planos para ela. E disse Lilian que,
ao passar por ela, deixei de cultivar os campos. Um de Vênus e outro de Marte,
sem deixar que florasse o que Deus plantou. Perdi o medo da natureza animada e
inerte, dos homens a sete palmos e de dedos engatilhados, de morrer e de matar.
Por que confundiram-me com uma convenção do cotidiano à revelia esperando que
eu soubesse quais portas abrem-se para o equilíbrio dos normais? Na minha
ingênua irresponsabilidade eu desperdicei todas as oportunidades que foram-me
oferecidas e sobrecarreguei incautos com uma perda atrás da outra. Por que no
embalo de minha ambição ofusquei a visão da simplicidade da vida com tantas
máscaras perecíveis? Um tenebroso abismo separa-me das melhores lembranças
abandonadas pela minha paternidade. Um inexorável ímpeto prende-me entre dois
mundos. Mais vale para mim uma mentira deslavada que sai de minha boca
desprevenida, mas não entendo porque esta vontade de viver perigosamente
continua perseguindo-me por tanto tempo. A morte corre atrás de mim. Corre para
arrebatar a última centelha de vida dentro de mim. É a morte que agora
impulsiona-me e sou arrastado a cada lembrança de fracassos que frequentam meu
sono nestas águas turbulentas que não sei onde vão dar. Afluem agonias para
minha mente onírica, meu ser vígil sufoca-se com as sequelas de seus
sofrimentos e sou empurrado cada vez mais para o fundo, cada vez mais distante
da superfície. Olho através de meus olhos e vejo minha alma pela primeira vez.
Ela ainda caminha ao lado do meu corpo, mas já desarmonizam-se os dois,
contrariando os planos divinos. O demônio oferece-me um preço por ambos e os
anjos acercam-se para fazerem seus lances.
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