POESIA VIVA Nº 44
Você vê, nos dias de hoje, a poesia digital concorrer com a poesia oral e escrita?
Vejo, nos dias de hoje e ontem, o ímpeto viciado da classificação a concorrer com a poesia, como se bastasse uma adjetivação, um atributo, para dar conta do que, substantivamente, segue na maioria das vezes impensado ou escamoteado por algum discurso retórico. Não basta falarmos em poesia digital, poesia oral, poesia escrita, se não houver, sempre e primeiramente, poesia. As classificações até podem importar sociológica e/ou antropologicamente; podem até conspirar em favor de alguma historiografia estética ou estilística, mas o pensamento substantivo, o pensamento do próprio da poesia, é sempre mais radical. A questão não me parece ter que seguir as modas e os modos tecnocráticos de produção poética, de tal maneira que pareça anacrônico o poeta que, no século XXI, ainda insista no poema, ignorando os bytes e pixels dos recursos atuais. O poeta não é obrigado a nada, a não ser a fazer poesia (ou, antes, ser feito por ela) Se, outrora, a forma fixa foi considerada ultrapassada pelo verso livre, em muitas discussões da moda parece pouco pop celebrar o verso: não só porque os hibridismos de toda espécie urgem atraentes (nas variações da prosa poética e do poema em prosa – novidade nenhuma na História, porque desde sempre existentes, embora sem a nomenclatura epistemológica). Difunde-se, muitas vezes, uma tendência à poesia performática, ao vídeo-poesia, ao poema-dança etc., como se alternativa e diversidade de produção significassem uma possível superação da poesia de papel e, principalmente, do livro impresso. Eu sei que, em tese, os palpiteiros alegam a não-superação e a importância da pluralidade, porque a praxe é, afinal, apelar para o discurso da democracia, da convivência harmoniosa. Mas isso me lembra o mito da cordialidade entre negros e brancos, no qual todo conflito e desequilíbrio se ocultariam na fala festiva da miscigenação.
O que significa a poesia em sua vida?
Para responder, eu precisaria saber o que vida significa. Como não sei, escrevo. E descubro, de repente, que vida faz sentido.
A experiência de publicar poesia é prazerosa?
Se eu disser que não é, mentirei, porque fomos e somos educados a valorizar o ego e este, se não quiser o rótulo do sado-masoquismo, terá de esforçar-se para ser feliz. No entanto, felicidade não é prazer: o hedonismo me parece um tanto circunstancial, parcial, frívolo e, uma vez mais, egoico. É pouco para justificar a publicação (mas, como nos agrada lançar mão do pouco, vale como justificativa, mesmo que seja uma justificativa vagabunda, e mesmo que sejamos nós os vagabundos sem vergonha de publicar qualquer vagabundagem). A felicidade é mais radical: perfaz-se no pleno, na completude, na doação e, como tal, não prescinde da experiência da morte, agora mesmo, aqui mesmo: já. Não houvesse o morrer, não faríamos da felicidade o sentido de toda uma vida, porque ser feliz é, de fato, se fazer infinito enquanto finito. Publicar tem muito que ver com essa promessa não cumprida de felicidade, com essa espera ou esperança, e logo, essa procura pela eternidade prenhe de despedidas que é o instante, ou seja, pelo memorável, pelo memorar, pelo comemorar disto que, vindo a ser (presente), imediatamente deixa de ser (torna-se esquecimento). Na publicação, o ego não é tudo: é quase nada. Fosse realmente tudo, já teria deixado de ser ego. Mas, publicada, a poesia nos dá a sensação de que ela é tudo para a gente, não é mesmo? Imensa, sem-limites, ainda que nos limites de um livro. Ou seja: a poesia se torna de todos e de ninguém. A poesia aparece anônima. E deixa o silêncio aparecer. É ele que comemoramos. Só alguém ou algo pode ser prazeroso ou não-prazeroso. O silêncio, para aquém e para além do dito e do que se diz, não se predica. Está em aberto. Chama-se: o aberto. E o aberto também tem este nome: abismo.
Como você se descobriu poeta?
Não alfabetizado, desenhava bonecos e lhes concedia histórias, contando-as à minha mãe. Mais tarde, a brincadeira virou novela. Todo dia, no mesmo horário, reunia-me com eles para mais um capítulo. Criava, inclusive, trilha sonora para cada personagem. De repente, dei para brincar de canto, dança, teatro. Ficava na calçada de casa, exibindo-me. Arrisquei os primeiros versos por volta dos nove anos e, ironicamente, escrevia-os no verso das provas da escola primária. Dois anos depois, após assistir a um filme, e ainda sem máquina datilográfica nem computador, parti a tecer enredos à mão. A partir daí, fizeram-se compulsivos os manuscritos. Antes de poeta, pensei-me novelista, roteirista, dramaturgo e romancista. Tive pouquíssimas aulas de literatura no colégio, porque, por razões adversas, migrei ao ensino técnico em Química, com uma grade curricular eminentemente tecnológica. Ali, nas ligações de carbonos e hidrogênios, estava o poético. Muito antes de tornado refém dos formalismos textuais e estilos de época ensinados pela teoria literária. E eu fui descobrindo aos poucos a poesia do ácido, da base, do sal.
Impregnar-se de experiências ou, ainda, ser continuamente alimentado pelos próprios poetas. Para que lado você mais se inclina?
Alimentar-se dos poetas é impregnar-se de experiência. Senão, terão sido só livros, dentro dos quais não nos teremos feito livres para ser o que lemos. Não teremos sentido seu gosto, nem aproveitado seus nutrientes, nem sentido as náuseas da má digestão, nem jogado fora os excessos. Por sinal, sabor e saber participam da mesma raiz etimológica. Mas conhecimento e sabedoria não dizem a mesma coisa. Saber é ser o que se conhece! Quando não culminam em experiência, em saber, as obras dos poetas são, no máximo, conhecimento. Permanecem objetos na estante ou na extensa lista das referências bibliográficas, sem que, contudo, se tenham misturado conosco, culminando no que nós mesmos somos após a metabolização. Assim também acontece na vida fora dos livros: se algo ou alguém for capaz de mexer conosco, de transformar-nos, de fazer-nos nascer, de criar-nos, terá sido um poeta na gente, um poeta da gente. Daí que me alimento dos poetas da feira, dos poetas que há dentro do fruto, da verdura, do legume; dos poetas do supermercado, dos poetas-jornaleiros e daqueles não-vistos ou invisíveis dentro das revistas. Participam de mim os poetas da praia, os poetas da serra, os poetas do hospital, quartel e igreja. Participam de mim até os falsos poetas: os que ensinam a escrita que eu não devo cometer. Tudo são livros à espera de leitura, escuta e fala. O átomo, em si, é a grande obra poética que a ciência não acabou nem acabará de ler. A poesia – um dos nomes para a Vida da vida – só acontece mesmo na experiência: seja do que for, com o que for, com quem for, quando, onde e como for.
No trabalho poético você se refere à poesia como construção. Seria um modo de perceber o processo criativo ?
A técnica não é tudo, mas, sem ela, não há nada. Só não devemos permitir que se reduza a um meio para chegar a um lugar já sabido desde o ponto de partida. A palavra grega para arte, techné, antes das apropriações retóricas e das sistematizações filosóficas, queria dizer um caminho de desabrochamento, de desvelo. Não um caminho sempre igual, mas o mesmo se desdobrando em vários, diferentes, irrepetíveis. Originariamente, a techné compreende a travessia do, no, pelo, entre e com o poético da physis, ou seja, da vida originária de tudo. Só depois, com a sobreposição do pensamento epistemológico sobre o ontológico, a tornar a poesia e o mito objetos de um sujeito, chegamos à acepção operativa e instrumental – a techné como travessia da, na, pela, entre e com a razão. Quando falo em "pensamento ontológico", refiro-me ao que a caminhada poética tem de consumação do ser no humano. Techné é, sempre e primeiramente, a peregrinação e/ou procura deste humano no ser. É por conta disso que o programa de mestrado e doutorado em Poética, na UFRJ, do qual provenho, tem por interesse não a poesia como forma ou gênero literário e, sim, como a dinâmica originária de humanização do homem, desdobrável em diversas possibilidades de manifestação e pensamento. Referir-se à poesia como construção significa, assim, não restringi-la ao texto, a menos que, na palavra "texto", se leia tecido, trama, pele, corpo – a nossa casa, o nosso habitat imediato, a partir do qual vida-poesia se constrói e se desconstrói a todo momento. A palavra ética vem daí. Ethos, em grego, quer dizer "morada". Desse modo, não é por moralidade ou imoralidade literárias – e, sim, por uma ética da poesia de cada poema, por uma ecologia de cada um ("eco" vem de oika: casa), por uma aprendizagem de sua habitação e construção – que opto ora pela forma fixa, ora pelo verso livre, ora pelo livre de verso. Há uma terceira margem entre tradição e traição, entre inspiração e transpiração, entre vigor e rigor, que me interessa mais. É na encruzilhada que os caminhos se abrem. É na encruzilhada que nos abrimos aos caminhos.
As vozes de ator, de jornalista, de poeta seguem linguagens diferentes?
Confesso-me atualmente surdo à voz do jornalista, na verdade emudecida em 2008, quando "me aposentei" precocemente como repórter. Ainda que publique resenhas em jornais, meus artigos não obedecem a nenhuma "regra" do jornalismo. Defendo uma escrita em que – seja reportando, seja resenhando – a palavra não seja instrumental. Se, ao comentar um livro, este não me permitir o desenvolvimento de uma crítica realmente literária (feita pelo literário), não emitirei juízo. Tenho que ser pego pela poesia na hora de ensaiar uma resenha; do contrário, serei só retórico. E mentiroso. O poema pode ser ajuizável, mas a poesia acontece ou não acontece. Se não aconteceu, como comentar o que sequer foi vivido? Acabarei comentando apenas de que forma determinado livro se adéqua ou não às formas e às fôrmas de alguma verdade teórica. Assim, abstenho-me de qualquer crítica que só se ocupe de – sadicamente – derrubar um pobre coitado que jamais esteve, algum dia, de pé. Quanto ao ator, este se encontra sempre por perto, por dentro. De fato, escrever é uma experiência corporal. Sentado no computador, meu corpo se contrai, sente dor, goza: é real. Dizer o poema oralmente é também atravessar a poesia em toda sua inteireza. Mesmo cotidianamente, quando penso e falo, transpiro, expiro, inspiro, suspiro, sorrio, suspendo as sobrancelhas, arregalo os olhos, arrepio-me com coisas que me descobrem na hora em que penso descobri-las. Ao lecionar, esse pensamento-corpoemoção faz acontecer o professor-poeta como aluno-ator.
Que tempo pesa mais em sua obra: ontem foi Sete mil tijolos e uma parede inacabada, hoje Zero ponto zero. E amanhã?
Embora publicado em 2010, zero ponto zero foi escrito em 2007 e, cronologicamente, também pertenceria ao "ontem" caso não perfizesse, junto com Sete mil tijolos e uma parede inacabada, de 2004, o meu presente. Eu sou todos esses anos e mais aqueles que, não vividos ainda, já se cumprem como possibilidade. O que pouca gente sabe é que escrevo mais ensaio e filosofia, sendo bastante bissexto na escrita de poemas. Mas, quando começo a arriscar algum, vem uma porção, um atrás do outro, como costura de um livro que nasce de uma ideia regente, de um lead para cada texto-tecido. Processo semelhante está a ocorrer agora, quando começo um poemário novo, dentro da mesma motivação: um tema se desdobra em vários fios e cada linha, afiada e desafiante, corresponderá ao mesmo apelo dos vãos, das aberturas da rede. Enquanto essa trama não se arremata, editam-se duas outras com data de publicação prevista para o segundo semestre de 2011. Dois livros ensaísticos, de cunho filosófico e que articulam as questões da arte, da religião, do mito e da ciência como experiências do sagrado. Detenho-me numa revisão das interpretações das narrativas bíblicas, dos mitos gregos e principalmente dos iorubanos, buscando, na leitura, uma libertação dos paradigmas tendenciosos da metafísica ocidental, nos quais – mesmo sem saber (e é isso que pretendo mostrar) – a própria antropologia e sociologia ainda se baseariam. Trata-se de um encaminhamento acerca da identidade e diferença pouco visitado pelo culturalismo.
O poeta, ora rodeado de muitos amigos, ora muito solitário. Essa oscilação é a própria vida?
Quer queiramos, quer não, o lançamento radical nas questões do homem nos obriga a um recolhimento. O falatório, a tagarelice, a gagueira da pressa impede uma intimidade maior com o silêncio dos pedestres, dos passageiros de ônibus, dos motoristas. Sem a escuta desse silêncio, saturamo-nos de clichês e turvamos os olhos do pensamento. Sozinhos, temos a chance de – no distanciamento– aproximarmo-nos mais e melhor do que nos espanta e de viver o espanto. Temos a chance de caminhar pelos nossos asfaltos, esquinas, cruzamentos, sinais de trânsito, atropelamentos, buzinas e revelarmo-nos construídos por infindas pessoas, lugares, vazios. Meus amigos, meus parentes, meus conhecidos e meus desconhecidos rodeiam-me a memória enquanto penso e escrevo. Por outro lado, quando supostamente junto deles, em mesa de bar, em festa, ou no trabalho, (a)parecemos todos, não raro, tão sós. Não atentamos para o elo que nos consagra amantes e amados pelo mistério que nos une. Não atentamos para a solidão do instante, este que nos pega no colo para que comunguemos com tudo. Se atentamos, corremos para o sozinho e algo escrevemos, nem que seja na mente-coração, nem que seja lavando as mãos na pia. Mas, deixada de lado a largura de um já, não nos estreitamos para agradecer o agora, para agradecer ao agora. O pensamento autêntico habita esses (hi)atos. Nele, não há antagonismo entre comunhão e solidão.
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